segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

PEIXES (3)

                                   
ILUMINURA   MEDIEVAL
Entre os gregos, atuavam no reino de Poseidon,  a grande divindade tutelar do elemento líquido, reino do qual faziam parte os oceanos, os mares, os rios, os regatos, as fontes e os lagos, certas divindades de nível inferior, conhecidas genericamente como ninfas (etimologicamente, aquela que vem
POSEIDON
coberta com um véu). Eram classificadas segundo o lugar de sua residência. Quanto às ninfas do elemento líquido, temos: as potâmidas, por exemplo, viviam nos rios; as creneias viviam nas fontes; as pegeias, nas nascentes; as limneidas, nos lagos e lagoas; as oceânidas viviam no alto-mar; as nereidas, nos mares internos; as náiades, nos ribeiros e riachos. Embora ocupassem na hierarquia divina uma posição inferior, eram, em determinadas ocasiões, admitidas no Olimpo, sendo inclusive honradas pelos mortais em cultos religiosos.

PLUTARCO
Suas atribuições eram múltiplas: tinham o dom da profecia e atuavam em oráculos; curavam doentes e, sob outros nomes,  velavam sobre as flores, os prados e os rebanhos. Embora divinas, não eram imortais. Plutarco atribuía a essas ninfas uma uma idade máxima de 9.620 anos. Tinham contudo o privilégio de, durante toda a sua existência, se manter sempre belas, pois se alimentavam de ambrosia. Geralmente benevolentes, podiam se tornar perigosas para os mortais que, por elas favorecidos, não as honravam devidamente. Muito semelhantes às russalkas eslavas na sua ação, arrastavam os ingratos para o fundo das águas, matando-os. Um exemplo: o do desventurado Hermafrodito, vítima da ninfa creneia Sálmacis. Outro, o do jovem Hylas, companheiro de Hércules.


RUSSALKAS ( IVAN NIKOLAEVICH KRAMSKOI , 1837 - 1887 )

Dentre as ninfas mais importantes da mitologia grega não podemos deixar de reter os nomes de Aganipe, ninfa creneia do Helicon, muito procurada por poetas; Cassotis e Castália, também creneias, viviam nas fontes  do Parnaso. Muito conhecida era Ciane, ninfa da Sicília (Siracusa), que se opôs ao rapto de Kore pelos deus
CALIPSO, 1869 ( ENRI  LEHMANN)
Hades. Uma das mais importantes ninfas era, sem dúvida, Calipso, que reinava sobre a ilha de Ortígia; ela acolheu Ulisses, atirado à praia depois de um vendaval; ela o protegeu por sete anos, oferecendo-lhe inclusive a imortalidade, se o herói ficasse ao seu lado. Não o conseguiu, pois teve de se curvar à ordem de Zeus, no sentido de liberá-lo, para que seu destino se cumprisse. O nome Calipso vem do verbo grego esconder (kalyptein), sendo a ninfa a personificação de todas as águas profundas que não as oceânicas.

De um modo geral, as ninfas, como divindades ligadas ao mundo natural, atuavam sobretudo através da umidade, aparecendo em bosques, vales férteis, florestas e grutas, sempre belas, nuas ou semi-vestidas. Seu poder era fertilizante e nutritivo e estendia salém do mundo natural. Os seres humanos podiam também se beneficiar de sua terna solicitude. Elas protegiam os amantes que mergulhavam em certas nascentes e fontes para obter a indispensável purificação quanto a uma saudável fecundidade. 


NEREIDAS , 1886  ( JOAQUIM  SOROLLA  BASTIDA )

Com relação às vastas extensões líquidas, oceanos e mares, obrigatória a menção das nereidas, filhas do velho Nereu e de Doris (oceânida), personificação das ondas infinitas de todos os mares. De linda cabeleira dourada, viviam as nereidas nas profundezas, sentadas em trono de ouro, a tecer, fiar e cantar, sempre sedutoras.  Têm relação com a arte. Camões as convocou para atuar no seu poema épico Os Lusíadas, no rio Tejo.

Filho de Urano e de Geia, o deus Oceano, antecessor de Poseidon, era a imagem da indistinção primordial. Unido à sua irmã Tétis, símbolo da fecundidade das águas oceânicas, gerou as oceânidas, ninfas às vezes confundidas com as náiades, responsáveis por numerosa prole. 

Encontradas em outras mitologias, estas dividades guardam entre si uma grande semelhança muito grande.  Uma notável aproximação poderá ser feita, por exemplo,  entre as sereias e as ondinas, da mitologia germânica, das quais a mais conhecida é Lorelei.

LORELEI  ,  EM  ASSMANNSHAUSEN  ,  ALEMANHA
Lorelei, lembre-se, é, na origem, o nome de uma falésia situada às margens do rio Reno, na Alemanha. Temida pelos marinheiros, era dessa falésia que a ondina atraía com seu canto os marinheiros, fazendo com que seus barcos se espatifassem contra os rochedos. Popularizada, esta história está na literatura (Brentano e Heine) e na música (F.Silcher). As ondinas são ninfas que gostam de atuar em éguas perigosas, brumosas,  oferecendo-se para ajudar os marinheiros. Ao invés de ajudá-los, porém, causam a sua perdição, levando-os à morte muitas vezes.


Na mitologia indiana, podemos aproximar das sereias as apsaras, as celebradas ninfas do céu do deus Indra. O nome apsara significa aquela que se move nas águas como uma dançarina. São conhecidas também como sumad atmajas, filhas do prazer.
APSARA
Descendo à Terra, as
apsaras procuram as águas para viver, de modo especial lagos e lagoas onde viceja o lótus. Pelo seu grande poder de sedução, elas tentam sempre desviar a atenção dos ascetas dos seus exercícios espirituais. A mais bela história de amor da literatura indiana, o poema Kalidasa (500 aC.), de autoria de Vikramorvasi, tem por tema os amores da apsara Urvashi pelo rei Pururavas.

ULISSES  E  AS  SEREIAS
Numa leitura mais atenta da Odisseia, podemos perceber que as sereias (muito famosas por causa desse texto) propunham não só alegria como a possibilidade de aquisição de um maior conhecimento. Estas eram as iscas oferecidas aos incautos marinheiros, propostas que justificavam uma das etimologias admitidas para o nome, parecida com a anteriormente citada. Seirá, nome grego de onde viria sereia, quer dizer liame, laço, nó, cadeia, tudo com o sentido de enredar, de prender, algo profundamente pisciano, como se pode depreender sob o ponto de vista astrológico. Lembremos que a sedução pelo saber é uma característica exclusiva da sereia grega.

Assegurando que tudo sabiam, as sereias de Homero não são desmentidas pela ação de Circe, que alerta Ulisses contra o seu poder de destruição, mas ela não as acusa de enganar. O que parece claro é que elas jamais revelam o saber de que dispõe; seu canto o anuncia, mas esse saber nunca chega a ser enunciado. O canto da sereia, para os gregos, não era falso; trazia mais uma ideia de ilimitado, sempre algo muito perigoso, destruidor, agindo elas como uma espécie de antimusas. Ela, a sereia, prometia conduzir o navegante a um espaço onde o canto e o saber estavam.


PLATÃO
No décimo livro de A República, obra em que Platão desenha a concepção socrática de uma sociedade ideal, aparecem as sereias girando nos círculos exteriores do fuso da Necessidade (necessário: o que não pode não ser), cantando em uníssono uma melodia perfeita. Observe-se que Sócrates reitera nesse último livro o propósito de excluir os poetas da República já que não têm eles outro talento que o de imitar, mediante certa coloração de palavras e expressões figuradas. São, por isso, supérfluos. A República, como sabemos, procura de certo modo reproduzir a ordem cósmica, em cuja alegoria as sereias ganham posição junto às Moiras. Ali, entoando hinos, ficariam elas, junto dos fusos, com o propósito de seduzir as almas que ali comparecessem.

HANS  C.  ANDERSEN
Sabemos que os desenhos animados produzidos pelos estúdios de Walt Disney divulgaram a imagem das sereias tomando como ponto de partida o conto de Andersen. Neste, a sereia já não apresentava perigo. Devido à sua desmedida paixão por um príncipe, que ela não conseguia cativar, e à sua aspiração por uma alma imortal, por sua bondade também, a sereia deixa de ser uma filha do mar e, depois de virar espuma, eleva-se à condição de filha do ar, com a possibilidade de adquirir a imortalidade com que tanto sonhara. Nesta proposta não há morte ou sedução, nenhum perigo havendo no diálogo entre vida terrestre e marinha. Isto acontece também em outros filmes americanos em que as sereias passeiam pela tela de maneira explícita ou metafórica. Migrando da tela para o supermercado, as sereias hoje podem ser encontradas nas secções de brinquedos. A banalização que os meios de comunicação impuseram ao mito, o cinema americano e os desenhos animados sobretudo, trouxe a anulação do poder das sereias, poder que ficou  neutralizado, anestesiado. Em outras palavras: não há perigo nenhum na convivência entre o mundo terrestre e o mundo oceânico.



JAN   SVANKMAJER

Por oportuno, entendo, quanto ao parágrafo acima, transcrever o que Jan Svankmajer, o grande mestre surrealista tcheco do desenho e da animação, falou sobre o artista americano: Disney está entre os maiores fabricantes de "arte para crianças". Eu sempre sustentei que nenhuma arte especial para crianças simplesmente existe, e o que passa por ela incorpora a bétula (disciplina) ou o lucro (lucro). "Arte para crianças" é perigoso na medida em que compartilha da domesticação da alma da criança ou da educação dos consumidores da cultura de massa. Receio que uma criança criada com produtos atuais da Disney ache difícil se acostumar com tipos mais sofisticados de arte, e assumirá seu lugar nas fileiras dos telespectadores de séries de TV idiotas. 


A   PEQUENA   SEREIA  ,  EM   FILME  DE   WALT   DISNEY  ,  1989

Com a vitória do cristianismo, como se sabe, todos os deuses, heróis, monstros e seres teriomórficos da mitologia grega foram satanizados indiscriminadamente. A patrística afirmava que todos esses demônios do paganismo (mundo greco-romano) se alimentavam das canções dos poetas, fazendo coro a Sócrates. Os banquetes com música e canto eram condenados, comparando-se os seus participantes a marinheiros que se atiravam contra rochedos ao ouvir as sereias. A sereia, entretanto, sobreviveu à sanha perseguidora dos primeiros padres da igreja. Continuaram a simbolizar a sedução, mais literariamente talvez do que de fato, porém. Entraram também nos bestiários e através da arquitetura foram parar nos capitéis medievais, pisos, colunas, frontões e fachadas, fazendo parte, sem muita ênfase, da galeria das tentações demoníacas.


Onde a sereia conseguiu se refugiar melhor foi no conto de fadas. No referido conto de Andersen, A Pequena Sereia, há uma barganha diabólica: a heroína perde a sua língua para sempre em
CLAUDE  DEBUSSY
troca da forma humana e da vida sobre terra. Andersen, como se sabe, escreveu esse conto entre 1.836/7, com base em vários contos orais e escritos, tanto da tradição ocidental como oriental, contos em que a sereia poderia viver na terra como mulher e ter um mortal como companheiro se observasse determinadas condições. Esse mesmo tema inspirou em parte o drama poético Pelléas et Mélisande, de Maurice de Maeterlinck, para o qual Claude Debussy compôs uma música (ópera).




PÉLLEAS  ET  MÉLISANDE , OPÉRA   NATIONALE  DE  PARIS , 2015

SEREIA  EM  COPENHAGUE
O conto de Andersen, bastante mórbido, aliás, consagrou o tema. A cidade de Copenhague, em 1913, ostenta hoje, como monumento nacional, uma estátua de bronze da pequena sereia perto do mar. Ao narrar o conto para crianças, Andersen alterou o seu caráter original, acentuando a pregação moral sobre o dever e o amor, sobre o auto-sacrifício e sobre a expiação femininos. Isto pode ser notado por um pequeno trecho do conto, que transcrevo, o da resposta da bruxa quando a pequena sereia lhe pede ajuda: mas terá que me dar algo em troca! E o preço não é baixo. Sua voz é a mais bela de todas no fundo do mar e se você acha que vai encantar o príncipe com ela engana-se,  pois sua voz é tudo o que você tem para me dar. Venha, estique a sua pequena língua para que, cortando-a, eu receba meu pagamento; então terá a minha poderosa poção!

A sereia mutilada do conto de Andersen tornou-se logo um personagem amado, aprovado. A sua transformação em ser humano foi entretanto muito dolorosa: a sua cauda se encolheu e dividiu, ganhou lindas pernas, que, ao andar, lhe causaram muita dor; seus pés sangrando sempre. Ela, contudo, não reclamou. Ao final, recuperará a sua forma original, recusando-se a atacar o príncipe, origem do seu mal. Com o coração partido, atirou-se ao mar, na “mortalmente fria espuma do mar”, dissolvendo-se no vento. A mensagem do conto é a de que para sermos salvos precisamos não só cortar a língua, mas, inclusive, chegar à auto-anulação, à dissolução. 

A sereia no mito grego, como se pode perceber, é um símbolo da sedução, ou seja, de Afrodite enquanto esta deusa é dona da enkrateia, um poder que vence resistências. O mundo machista não aceita este poder, a sua sedução é sempre condenada. Há deusas gregas que se opõe abertamente a este poder de Afrodite, Deméter e principalmente Palas Atena, por exemplo. Em Atenas,  polis tutelada por esta última, Afrodite era conhecida como a “estrangeira” ou a “prostituta”. Homero fala que a canção da sereia é “líquida” e que quem a ouve estará perdido.

A psicanálise freudiana, como se sabe, aproxima o sexual do digestivo, o que nos permite entender, usando o universo pisciano para tal, que a descida ao ventre incubador pode se fazer indiferentemente (nos contos folclóricos, lendas etc.) pela boca ou pela vagina, ocasião em que ela, a descida, tanto numa como noutra hipótese, pode se transformar em prazer. É de se lembrar que o ato sexual é representado pelo beijo, relação que nos remete ao símbolo do signo, em que temos dois peixes unidos pela boca por uma espécie de cordão umbilical. Antigas tradições, por essa razão, sempre associaram o signo de Peixes ao beijo.


DANTE  ALIGHIERI
( DOMENICO DE MICHELINO, 1417 - 1491 )
A boca fechada forma uma linha; aberta, forma um círculo, o lugar, segundo o poeta italiano Dante Alighieri (séc.XIII), onde o amor, que começa nos olhos, acaba. Sob o ponto de vista simbólico, a boca é muito mais que o órgão que nos permite comer, por onde passa o sopro vital ou que nos permite falar. Ela tem relação, como se sabe, astrologicamente, com a nossa segurança. Inseguros, precisamos agarrar, levar algo à boca. Daí, a grande imagem do seio materno ou a relação que podemos estabelecer entre a boca e a vulva, equivalentes metaforicamente, pois ambas têm lábios. A primeira coisa que sentimos na vida nos chega através do paladar, o leite materno, acompanhado geralmente de amor, afeição, carinho, sensação de segurança, calor, bem-estar. Essas associações são poderosas e não desaparecem facilmente.

A fome sexual e a fome física sempre andaram juntas. Não é por acaso que usamos tantas palavras ligadas ao paladar no jogo amoroso. Pessoas são deliciosas, gostosas, apetitosas. Fazer sexo e comer são equivalentes. De alguém delicado, cordato, falamos que é um doce. As francesas usam mon petit chou (meu repolhinho) quando se referem carinhosamente ao namorado.  Os ingleses usam
CRUMPET
a palavra crumpet (uma espécie de bolo, leve, macio, semelhante a um muffin, tostado levemente e lubrificado com muita manteiga) para falar de uma mulher muito atraente. Os alimentos têm uma íntima e impressionante ligação com o mundo de Vênus. Há vegetais que lembram o órgão fálico (mandrágora, alho-porro, cenouras, bananas, pepinos, espigas de milho); outros lembram o órgão genital feminino (figos, ostras); os pêssegos lembram traseiros calipígios; a cantárida recheava os bombons do marquês de Sade etc...

Quando falamos com uma pessoa pelo telefone celular ou pela Internet, só usamos o mental (Mercúrio e Urano), jamais Vênus ou Netuno, mesmo que quanto a este último modo de comunicação usemos o Skype. A comunicação mercuriana sem o componente venusiano é incorpórea, não há toque, é algo assim como se falássemos ao vento. Quando falamos pessoalmente, com presença física, olho no olho, podemos não só tocar a pessoa como, sobretudo, penetrar temporariamente nos seus sentimentos. Por isso, muito importante que nos encontros pessoais entre a comida e a boca, um ato simbólico que nutre tanto o corpo quanto a alma.

Comer, sugar, sorver, chupar, lamber são verbos válidos tanto no amor como na alimentação. Marcas roxas e sinais de mordidas, produzidos por chupões e dentadas podem ser sinais de amor... Entrando a boca, há sempre uma ideia de integração, de fusão, de descida ao interior, de incorporação, algo voraginoso que lembra transformação, apagamento de limites e fronteiras. Entrando Netuno, a fusão é máxima. O princípio que explica os alimentos enteógenos: “transformamo-nos no que comemos”, pode ser procurado também no amor. A exaltação de Vênus em Peixes, permite entender porque em tantas tradições os deuses dos alimentos governavam os corações e as vidas de muitas pessoas.