quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A CIDADE QUE EU TENHO

             A cidade que eu tenho não está nos monumentos oficiais, nos discursos políticos nem nas saudações de praxe. A cidade que eu tenho é tangível e cheia de imperfeições. Ela está nos guindastes do cais que se movimentam, no gelo que chega antes para o pessoal do peixe, nos ruídos de engates que vêm com a noite. São bairros



que vão se degenerando, vazios de benefícios humanos, ruas que o porto engole – Valongo, Paquetá, Macuco, Ponta da Praia –, lugares onde um dia se pegaram rãs. Minha cidade real é conversa fiada e competição crua para os irmãos que chegam do Norte. 



Não está certamente nos luminosos do Gonzaga ou no mau gosto dos edifícios da orla, inclinados ou não. Está antes nos velhos que veem televisão e que esperam o pão, em braços enfraquecidos que levantaram sacas de café. Sobrevive no futebol de várzea, se alvoroça nas praias. A cidade que eu tenho é calor e moleza, bafo quente do noroeste. Não é a pompa nem mostruário, mas é cheia de vida e de fermentações.

Ela chega com os rumores da tarde, se mostra nas meninas que expõem as coxas e que ficam à espera, lá para os lados da Xavier da Silveira. Minha cidade vive nos trilhos encobertos, na madrugada das feiras, nas filas do Instituto, nas grades de ferro de velhos sobrados.


Minha cidade é cruzamento e mistura, mas também pode ser proteção e prudência. Ela está na canoa do caiçara que chega,
CAPELA DO MONTE SERRAT
permanece na memória dos ex-votos da capela do Monte Serrat.  Minha cidade tem muitas portas, é jardim bonito, tem resedás e chapéus-de-sol, areia pura e mar calmo. Siris, tainhas, peixinhos nos cais, muitos barcos que se vão. Ela não é templo nem supermercado,   é    rampa  do  mercado com as catraias que saem para o Itapema (que me desculpe Vicente de Carvalho!).


A cidade que eu tenho é fragmentária e contraditória, e nunca estará provavelmente nos folhetos de turismo.

CATRAIA
É  encruzilhada de raças, espreme-se nos cortiços e nos arrabaldes onde se amontoam famílias, na luz mortiça dos porões abafados, nas vozes desagradáveis de mães chamando filhos. Minha cidade se alastra pelos morros onde viveram os ilhéus – Nova Cintra, Fontana, Saboó, Bufo, nomes para os quais
MORRO NOVA CINTRA
poderíamos até encontrar rimas, com tanta poesia que há lá em cima, se não fosse o viver difícil. Minha cidade é ar saturado, espessura de hábitos, cheiro de frutas e cereais apodrecendo, mistura de água e óleo que a proa do barco rompe, formando desenhos que sempre me lembram Debussy. Minha cidade tem heróis solitários. Vozes distantes, rastros luminosos. Minha cidade é céu vivo de estrelas, não tem começo nem fim, é feita de apreensão e temor, mas também de firmeza e ternura.