sexta-feira, 13 de agosto de 2021

QUESTÕES ALQUÍMICAS : A SUBLIMATIO

        

ALQUIMISTAS

Apesar dos grandes trabalhos (Hegel, Freud, Jung, Castoriadis, Klein, enciclopédias etc.) que a abordam direta ou indiretamente, mais ou menos profundamente, a Sublimatio, do elemento ar, muito relacionada com as as Artes e a Psicologia, tem as suas raízes fincadas na antiga Alquimia, como uma das suas principais operações, ao lado da Calcinação (Calcinatio-Fogo), da Coagulação (Coagulatio-Terra) e da  Dissolução (Solutio-Água)), encontrando-se na Astrologia os melhores desdobramentos práticos de todas estas operações. 


A palavra sublimar quer dizer elevar, engrandecer, exaltar, passar pelo alto, sub = parte alta, limen = porta. Passar por cima do limite, isto é, ultrapassar, essa é a ideia. A sublimação também é entendida, principalmente na psicologia (psicanálise) como uma purificação de sentimentos e instintos inferiores. Só que a sublimação alquímica é diferente da sublimação da psicanálise.  Sublimar, na Astronomia e na Química, por exemplo, é a passagem do sólido ao gasoso, sem que haja a passagem pelo elemento líquido, como acontece com os cometas, na sua caminhada em torno do Sol (periélio) e no seu máximo distanciamento dele (afélio).  Quanto ao ser humano, duas hipóteses aparecem: a) sublimação via intelectual (do instinto à razão); b) sublimação pela via afetiva (do sentimento à compaixão). A primeira se dá pela mente: a segunda, pela empatia (fusão).

Um dos grandes símbolos alquímico da sublimação é a escada (veja o texto Mutus Liber) e, por extensão, tudo o que eleva, que leva ao alto, desde anjos, asas e torres a foguetes, balões, aviões, ascensores, elevadores etc. A escada, porque  nos aponta para uma ascensão gradual, é, sem dúvida, aqui, um dos símbolos mais perfeitos. A Alquimia recomenda sempre que toda ascensão seja feita progressivamente. Os símbolos da sublimatio, lembremos, como a escada, têm analogia com o vertical, de natureza qualitativa; seu oposto é o horizontal, de natureza quantitativa. 


No plano humano, a dominante terra tende invariavelmente a se expressar horizontalmente. Seus símbolos traduzem essa tendência, sempre ideias de ocupação do espaço, de peso, de densidade, de construtividade, de segurança, de algo firme, fundamental, básico. Já a dominante ar trabalhará naturalmente com ideias de elevação, de ascensão, de transcendência. A sublimatio representa o estado gasoso, fluido, impalpável, leve, volátil, que tende sempre para a difusão, para a expansão ilimitada em espaços cada vez maiores. 

MUTUS LIBER

Fisiologicamente, o ar corresponde ao temperamento sanguíneo, marcado pela predominância do aparelho respiratório (trocas com o meio exterior). Psicologicamente, o tipo humano em que predomina o elemento ar é um expansivo, que vive da mobilidade, das trocas, dos contatos, ao qual costuma se adaptar e assimilar espontaneamente.

Participam do ar, como qualidades primitivas, o úmido e o quente, como se viu. O quente tem relação com energia, atividade, vivacidade, iniciativa, imediatismo, expansão. Pela contribuição do úmido, os sentimentos tendem a se impor ao intelecto, provocando instabilidade, impressionabilidade, caprichos, espontaneidade, versatilidade, difusão, elevação, mudança. O elemento ar, como se constata, é formado por duas qualidades primitivas que se opõem, apresentando, por isso, conceitualmente, por princípio, uma contradição assim expressa: ao mesmo tempo que receptivo, o ar  busca sempre uma expansão. É por causa dessa contradição que os tipos humanos, principalmente naqueles em que o quente predomina sobre o úmido, encontram muita dificuldade para dar forma ao que experimentam e sentem.

Nas combinações em que o quente predomina notavelmente sobre o úmido estamos sempre em presença de uma poderosa tendência expansiva das impressões recebidas. Com a predominância do quente, as percepções (úmido), por mínimas que sejam, procuram sempre uma forma expansiva, principalmente através de relacionamentos, de conexões. 

 

GÊMEOS            LIBRA               AQUÁRIO    

Na Astrologia, os signos de ar (Gêmeos, Libra e Aquário) representam as três grandes etapas dos inter-relacionamentos humanos. O primeiro é o signo dos relacionamentos informais, acidentais, causais; o segundo tem a ver com os relacionamentos íntimos, com as associações formais, legais; o terceiro se relaciona com amizades, com ideais comunitários, com companheirismo, ligações que se estabelecem por livre e espontânea vontade. Como grandes faltas ou deficiências atribuídas a esses signos temos: indecisão, adaptabilidade, dualidade, volubilidade, dispersão,  excessivo alheamento, teorização exagerada etc. Negativamente ainda, a dominante ar aponta para grandes dificuldades com os elementos terra (vida material) e água (sentimentos e emoções). 

SCHUMANN
Um exemplo interessante da dificuldade de uma dominante ar trabalhar com o elemento terra (dar ao tipo terra um pouco de chão) nós o encontramos no geminiano Robert Schumann, grande compositor alemão do séc. XIX. A vida de Schumann, como sabemos, foi dominada pela divisão, pela dualidade, desde cedo (dupla vocação: literatura-poesia e música), por pseudônimos, sósias e duplos de si mesmo que ele foi criando. Esta dualidade foi representada, sobretudo, por ele, por dois heterônimos, que, tragicamente, na vida artística, o puxaram em direções contrárias. A um, de natureza terrestre, ele deu o nome de Florestan; ao outro, de natureza celeste, ele deu o nome de Euzebios. 

AQUÁRIO
Dos três signos de ar, o mais quente é o de Aquário, o que oferece maior diversificação aos tipos humanos nos quais aparece pelo Sol, pelo Ascendente, por certas combinações do planeta regente do signo, Urano, ou por planetas na décima primeira casa. A diversificação aquariana, positivamente, tanto pode se apresentar na maneira de pensar, nos relacionamentos (associações) ou na sua capacidade mental de organizar, aperfeiçoar ou inventar. Raros e brilhantes são os aquarianos em que a sua originalidade, reforçada por relacionamentos adequados, costuma se voltar para o futuro. Quanto isto acontece, temos os inventores, os que redimensionam repertórios, os que criam linguagens novas, o make it  new. Aquário está sintetizada no provérbio latino Ad augusta per angusta, a resultados sublimes por caminhos estreitos.

As melhores expressões aquarianas aparecem quando o esforço individual se integra ao social, isto é, quando o aquariano se dedica a uma causa como um servidor da humanidade, através de reformas, inovações ou revoluções. Não nos esqueçamos que o lema da revolução francesa de 1789 é de clara inspiração aquariana: liberdade, igualdade, fraternidade.

Quando o úmido prevalece sobre o quente, a disposição de se dar alguma coesão às impressões recebidas sempre aumenta. Isto se deve ao fato de o volume de impressões recebidas se sempre muito significativo, incessante, muitas vezes; fica difícil lhes dar uma unidade, coesão, um sentido. Daí, nessa combinação, nas suas expressões mais malogradas, sempre presente a ameaça de um constante jogo de harmonizações, de um interminável balanceamento das impressões recebidas. É por essa razão que o signo de Libra, apesar de masculino, tem fortes traços femininos. 

É notória, nos exemplos que estamos expondo, a tendência que o tipo médio libriano apresenta no sentido de se inclinar alternadamente para a espontaneidade, para o receio, para o abandono, pelo recuo diante da vida, para um dar-se e um recolher-se, comportamentos que acabam por caracterizá-lo como um indeciso, um ser muitas vezes incapaz de tomar decisões.

A sentimentalidade desse libriano médio costuma tomar dois caminhos. Quando extrovertida (venusiana), temos ideias de disposição simpática, vontade de estabelecer uma rede de laços e afeições com o mundo, de dar livre curso à generosidade dos seus impulsos. Quando introvertida (saturnizada), a disposição sentimental costuma se concentrar numa única pessoa. Isto torna evidentemente o libriano muito mais frágil, inquieto, temeroso e inquieto, pelo medo de perdas afetivas, que, ocorrendo, podem precipitar verdadeiras tragédias. Neste caso, o libriano costuma se mostrar muito reservado, aparentemente tranquilo. Visto mais de perto, conhecendo-o um pouco mais profundamente, não será difícil perceber essa aparência em termos de uma sensibilidade dolorosa que encobre geralmente paixões agudas.

LAMARTINE
O que mais distingue Libra de Gêmeos é que este representa relacionamentos acidentais, de uma natureza informal, os chamados relacionamentos “ombro a ombro”, enquanto os do outro têm uma natureza mais formal, contratual. Em Libra, a união só se tornará possível se as partes compreenderem as bases da associação e concordarem voluntariamente com elas. Como isto raramente é conseguido, pois é da dinâmica da vida, o jogo equilíbrio-desequilíbrio, os librianos vivem no geral mergulhados em sofridas hesitações e indecisões. Na poesia, o mais representativo exemplo de Libra é, sem dúvida, Alphonse de Lamartine, um sentimental amoroso que sempre escreveu o que o seu coração ditava.

COCTEAU, 1916 ,MODIGLIANI

Em Gêmeos, como se sabe, há o predomínio do quente sobre o úmido, com contribuição do seco. As impressões (úmido) ganham não só dinâmica (quente) como alguma expressão concreta (seco). É isto que traz um desejo constante de variação ao tipo básico do signo. Para ilustrar o que aqui se coloca, podemos nos voltar, na literatura, dentre outras, para duas personalidades muito significativas: Jean-Paul Sartre e Jean Cocteau. 


SARTRE
Quem, por exemplo, representa o signo na mitologia são os Aswins (Índia) ou os Dioscuros (Grécia). Entre os gregos eram eles Castor e Polideuces (Pólux), o primeiro, astrologicamente, descreve um tipo mais primário, sanguíneo/emotivo, terrestre, e o segundo mais secundário, sanguíneo-não-emotivo, celeste. O tipo Castor, Jean Cocteau, é mais horizontal; já o tipo Polideuces, Sartre, é mais vertical. 

Dentre as histórias mais emblemáticas da sublimatio alquímica, a de Jacob, o ultimo patriarca judeu, filho de Isaac, neto de Abraão, é uma das mais representativas. Jacob é o adepto a ser despertado do seu sono, da sua inércia (lembre-se da prancha de abertura do Mutus Liber). Ele sonhou com uma escada que ligava a terra ao céu, uma escada de setenta e dois degraus (lembre-se também das especulações astrológicas que fizemos sobre este número), por onde transitavam continuamente os anjos, unindo os dois planos, o terrestre e o celeste.  

ABADIA DE SAINT NICOLAS-LES-CÎTEAUX
À CÔTE D'OR, DIJON, BOURGOGNE

A escada, como sabemos, é símbolo de ascensão progressiva e de valorização, representando a passagem de um nível de existência a outro, um itinerário espiritual comportando diversos estados de consciência figurados pelos degraus, lembrando ascensão de um mundo material (da base, terra) à espiritualidade (ao topo, céu). A escada sempre simbolizou, em todas as tradições, um ideal de elevação. Como exemplo, cito os mosteiros cistercienses (fundados no séc. XII) que, na Europa medieval, eram chamados de “escadas de Deus” (Scalae Dei).

Ao lado da escada, a asa é outro importante símbolo da sublimação, pois a ela sempre aparecem associadas ideias de elevação, de liberação, de ascensão, de espiritualização, em todas as tradições. Um exemplo é o tema das asas na literatura: o condoreirismo, movimento literário surgido no fim do Romantismo na Europa e no Brasil. O símbolo do movimento era o condor, ave das Américas, dos Andes. Como grandes patronos do movimento, tivemos, na França, Victor Hugo e, no Brasil, Castro Alves e Tobias Barreto. Esse movimento, entre nós, nasceu na Faculdade de Direito do Recife, por volta dos anos 1860. Caracteriza-se ele por produções poéticas “elevadas”, que adotam uma linguagem grandiloquente, pomposa até, e temas que falam de fraternidade, de liberdade, de campanhas cívicas, patrióticas. Verbalizado, o condoreirismo  é sempre declamatório.  Irradiou-se o movimento de Recife para a Bahia e, dali, chegou a São Paulo (Faculdade de Direito). 

Empresas aéreas, publicitários e empresas de viagem também usam bastante o tema da sublimação. A proposta é a de transformar o homem comum, preso a um quotidiano desinteressante, massacrante, alienante, nas grandes cidades, pelo breve período de suas férias, numa ilha, de preferência, num ser “olímpico”. 

PERSPECTIVISMO
A sublimação tem o poder de nos elevar acima das questões e problemas cotidianos que temos de enfrentar na nossa vida diária, libertando-nos das nossas pressões mais concretas e pessoais. A proposta é a de que, elevando-nos, conseguiremos ter uma visão suficientemente ampla da complexidade desse viver, uma visão que, de algum modo, possa nos ajudar a agir melhor sobre o que percebemos, permitindo-nos dar, inclusive, um outro sentido a eles, bem diferente daquele que dávamos quando neles mergulhados. A filosofia idealista despreza obviamente este modo de ver as coisas, ao qual damos o nome de Perspectivismo, uma teoria ou doutrina, se quisermos, que afirma ser o conhecimento inevitavelmente parcial (mas nem por isso necessariamente falso), limitado e determinado pela perspectiva particular segundo a qual o sujeito vê o mundo (parcialidade e limitação).  

A sublimação, de um modo geral, permite que o confuso, o denso e o pesado se tornem mais leves, presente sempre a ideia de que tudo, com ela, se torna mais claro, mais flexível, mais compreensível. A liberdade da sublimação participa daquilo que chamamos de sutil. Sutil quer dizer “o que passa pela tela”, subtela, ou seja, o que atravessa a tela. Figuradamente, sutil é o que tem grande capacidade de percepção, que é agudo, apurado, fino. Os antônimos são: espesso, pesado, tolo, grosso.

É destas ideias que sai a chamada Hermenêutica (etimologicamente, do deus Hermes e do verbo grego hermeneuein, interpretar), a arte de interpretar signos, sinais. A hermenêutica é uma reflexão filosófica sobre os signos, os discursos humanos em geral e por extensão dos mitos, das religiões e das mais variadas formas de expressão. A hermenêutica é uma noção central da filosofia moderna, de modo especial da fenomenologia existencial. Uma das técnicas hermenêuticas mais conhecidas é a Hiponoia (etimologicamente, sentido subjacente, significado oculto), muito usada para a interpretação dos mitos.

SAN JUAN

Na psicanálise, a sublimação designa a transformação de tendências ou instintos inferiores em sentimentos superiores e elevados. Por exemplo, as tendências sexuais podem ser sublimadas em tendências estéticas ou religiosas (veja a obra de San Juan de La Cruz e de Santa Teresa de Ávila). A sublimação lida com sentimentos brutos, com pulsões extremamente primitivas e negativas, com ideias de que se esses sentimentos prevaleçam, pode nos rebaixar como seres humanos.


San Juan de La Cruz e Santa Teresa de Ávila, ambos carmelitas (Ordem de N.S. do Monte Carmelo, fundada no séc. XII), sob o ponto de vista alquímico, orientaram toda a sua obra poética pelo fogo (calcinatio) e pelo ar (sublimatio). San Juan, por, exemplo, chamou a sua ascensão mística de  “a subida do monte Carmelo”. O Carmelo é um promontório rochoso que fica em Israel, na Samaria, perto de Haifa

A grande meta da sublimação é o céu, que é elevado, infinito, inacessível, transcendente, como lugar de manifestações inesgotáveis. Em todas as tradições, o céu sempre foi colocado acima da Lua. É no mundo sublunar que vivem os seres humanos e tudo o que está sujeito à transformação, ao devenir e à morte. Acima da Lua fica o céu dos deuses, a região etérica, dos seres que se alimentam de luz, eternos. Lembremos que morrer, nas religiões patriarcais, é “ir para o céu.”

PARACELSO
Como operações auxiliares da sublimação podemos citar a mortificação (já mencionada na coagulatio), a ela se associando operações como a moagem, a malhação, a separação, a extração e outras. A mortificação, como se viu, é a mais negativa operação alquímica, representada pelo negro, pela morte, pelo apodrecimento. Sobre esta última fase, por exemplo, Paracelso, médico e alquimista suíço (sécs. XV-XVI), deixou-nos a observação de que se o homem deseja se transformar ele deve procurar, antes, voltar a um estado de indiferenciação (massa pastosa) para daí  conquistar um nova forma (construção de um novo eu). Através da putrefação, o negro se torna branco, é uma das mais conhecidas máximas alquímicas. 

Para se entrar num processo de mortificação, na perspectiva alquímica, temos que ter um conhecimento razoável da nossa sombra, temos que saber o que destruir, algo que complica bastante esta operação. Destruir a velha forma, a velha natureza, não é fácil. A sombra é a nossa segunda natureza, sem duvida, a alquimia deixa isso claro. A sombra, a rigor, é tudo o que recusamos a conhecer, ou admitir, mas que se impõe contra a nossa vontade. A sombra é, muitas vezes, o que eu “sou” e que não entendo, é o que não sei de mim (veja o conto de Hans Cristhian Andersen, A Sombra).

É no capítulo das mortificações e na sua variante, a crucificação ( que estudamos também, por exemplo, expressões comportamentais dolorosas tipificadas pelo complexo de Héstia ou por temas como os de autopiedade, de autocomiseração, de autoflagelação, de sadomasoquismo e de sacrifícios de toda a espécie, além de muitos casos que na Astrologia costumam aparecer por quincúncios (aspectos de 150º). 

O final da mortificatio, em alguns casos, é a putrefactio, à qual se ligam, na sua expressão mais degradante, imagens de vermes, fezes, excrementos, imagens que apontam para ideias de podridão, decomposição, etapas preparatórias da dissolução final. Três seres do mundo animal, dentre outros, associam-se especificamente com a putrefactio: o escorpião, a hiena e o corvo. O primeiro serve de símbolo, no zodíaco, para representar o oitavo mês (o oito é o número da morte), no qual temos um dia dedicado aos mortos, mês que marca o início do retorno ao caos da matéria bruta e se prepara o húmus que permitirá, mais adiante, na primavera, o renascimento da vida. Já a hiena, que espalha sempre por onde anda um odor sepulcrorum, é o mais conhecido dos carnívoros necrófagos, um animal dos cemitérios, animal charognard (cadáver de animal em decomposição) no dizer dos franceses. Quanto ao corvo, necrófago também, os alquimistas sempre o associaram à fase da putrefação e à matéria negra.    

Há um número, o 40, cujo simbolismo se liga à putrefactio. O número significa tanto o fim de um ciclo como a passagem a um outro modo de ação, de vida. Na maioria das tradições religiosas, só quando decorridos quarenta dias da sua morte uma pessoa pode ser considerada realmente morta. É a chamada quarentena, que, uma vez terminada, determina o momento da realização dos ritos mortuários (desaparecimento da carne e limpeza dos ossos para colocá-los num lugar definitivo) e de purificação dos parentes do defunto.

O número 40 caracteriza também, nas tradições religiosas, as intervenções sucessivas de Deus que determinam a mudança de ciclos. O dilúvio, que precede a aliança com Noé, durou quarenta dias. Moisés passou quarenta dias conversando com Deus no Sinai. Jesus passou quarenta dias no deserto, submetido às tentações diabólicas. Ele se mostrou aos seus discípulos por quarenta dias, tempo que antecedeu a sua ascensão.

ECKHART
Uma variante da sublimação é a operação chamada separatio, separação, ou seja, toda elevação, toda transcendência implica normalmente uma separação. São de mestre Eckhart estas palavras sobre a separatio: Eu não vim à terra para trazer a paz, mas a espada para cortar todas as coisas. Para te separar do teu irmão, do teu filho, da tua mãe e do teu amigo, que na verdade são teus inimigos. Pois, na verdade, aquele que te adoça a vida é teu inimigo. Se o teu olho vê todas as coisas, teu ouvido ouve todas as coisas e teu coração se lembra de todas as coisas, na verdade, em todas essas coisas, a tua alma é destruída!  

A conquista de uma vida consciente é produto de uma separatio constante. A construção de um eu consciente não é algo que se realize de uma vez para sempre. Nossa consciência está permanentemente  ameaçada de dissolução, por ataques internos e externos: conteúdos inconscientes que vão se coagulando e que impedem que nossa consciência se realize em toda a sua plenitude. 

Símbolos da separatio: espadas, lâminas, facas, tudo que corta é tema da separação alquímica.  O maior símbolo (instrumento) da separatio é, todavia, a língua, que tem a forma de uma lamina que corta pelos dois lados.  Filosófica e psicologicamente, falar é separar (relação entre Logos e Separatio). Ou seja, nomear é separar, dar nomes é sair da indeterminação. A Alquimia nos permite entender claramente que os que não sabem nomear vivem mergulhados numa solutio permanente. Os sufixos lys e lit nos remetem a ideias de separação, de afastamento: análise (separação pela palavra), ansiolítico (separação da ansiedade). Falar, discriminar, é saber separar, classificar, categorizar, diferenciar. Se não nos separamos, não temos opinião própria. Desde a criação do chamado cyber espaço, tudo foi posto em comum, tudo passou a ser transmitido em tempo real. Por esse processo de globalização, entramos numa solutio cósmica. Difícil, hoje, trabalhar no sentido contrário, inclusive no campo da arte. Na Astrologia, lembremos, o signo da separatio é Virgo. 

A malhação e a moagem se ligam evidentemente a conceitos de purificação e de sublimação, como operações que procuram alterar a organização da matéria na forma em que se encontra. Malhar era, basicamente, na metalurgia, bater o metal aquecido para torná-lo mais flexível e, assim, ir se lhe impondo uma forma desejada. Já na atividade agrícola malhar é processo pelo qual se separam os cereais da espiga, debulhar. Figuradamente, malhar, como se sabe, é surrar, espancar. 

HEFESTO

O malho (martelo) é um atributo do deus Hefesto e da iniciação cabírica (metalurgia), sendo um emblema da atividade demiúrgica. Simbolicamente, em muitas tradições esotéricas, era com ele que o mestre modelava o noviço. Demiurgo quer dizer construtor, artífice. Todo o trabalho psicoterapêutico (relação médico-paciente), com as suas várias técnicas, está incluído figuradamente na noção de malhação e de moagem do nosso psiquismo. 

A malhação adelgaça, torna mais leve, mais delgado, mais leve e mais flexível o que era denso e pesado. A malhação e a moagem estão ligadas ao abrandamento do material, à transformação do grosso em fino. Sem a sovação (malhação), por exemplo, o pão não fica bom. Já moer (britar, triturar, esmigalhar) é transformar em pequenos fragmentos, técnica que sob o nome de análise foi parar nos consultórios de psicologia analítica. Analisar, neste sentido, é moer, fragmentar, reduzir a pedacinhos para enfraquecer o todo. Tudo dependerá, é claro, de como usamos o “martelo”. O que sobra da malhação é o fino, o residual, o pó, que equivale na alquimia às cinzas, aquilo que vem depois do que foi queimado, malhado, triturado. As cinzas significam sempre o ponto de partida para uma reorganização futura. As cinzas simbolizam a renúncia a uma vida anterior. É por essa razão que os penitentes, os romeiros, esfregam cinzas no seu corpo, um símbolo de renúncia às vaidades, abandono do material. O pó tem um valor residual, lembra semente, o pólen, e, como tal, é ponto de partida para a conquista de novas formas. Misturando-se o pó à água, está criada a possibilidade da obtenção de uma nova forma. Como variante da malhação, temos, por exemplo, a esfoliação, outro processo alquímico de purificação. Esfoliar é transformar em folhas, laminar, técnica que simbolicamente significa retirar os excessos, comprimir, no fundo, um processo de limpeza.

Uma das operações menos estudadas da Alquimia é a circulatio, a alternância entre repetidas descidas e subidas ou entre polaridades, pois, viver, afinal de contas, é mudar constantemente de posição, já que procurar o céu (fixar-se apenas numa polaridade) como meta final da sublimação pode ser desastroso. Uma das máximas alquímicas nos lembra que devemos sempre sublimar o corpo e coagular o espírito, processo que, na existência humana, devemos repetir várias vezes. As melhores explicações sobre a circulatio ou alternatio nós as encontramos nos sete princípios da doutrina hermética (Caibalion): mentalismo, correspondência, vibração, polaridade, ritmo, causa e efeito e gênero. É pela circulatio que podemos entender que o homem será sempre responsável pelo que faz de si mesmo, deve ser um constante fazer-se. Esta a única maneira de ele poder se considerar vivo, livre. Está implícita para tal maneira de pensar (doutrinas fenomenológicas) a necessidade permanente de fazer escolhas. Esta necessidade é para tais doutrinas a postura autêntica diante da vida, apesar de toda a angústia que isto possa causar. É por estas escolhas, traduzidas obrigatoriamente em ações (ou omissões), que o homem será julgado. Agindo ou deixando de agir, fazendo as suas escolhas, o homem criará os seus valores, que não poderão ser criados em função de um bem ou de um mal absolutos, já que o homem é um ser histórico que vive em situação, no tempo e no espaço.