sábado, 11 de setembro de 2021

QUESTÕES ALQUÍMICAS - A DISSOLUÇÃO

 

Nas primeiras décadas do século XIX, na Europa, apareceram doutrinas que procuravam fazer com que os interesses sociais prevalecessem sobre os individuais. Por volta de 1830, no mundo da filosofia, já estavam bem fixadas as ideias de que os interesses coletivos deviam se sobrepor aos particulares do então chamado liberalismo. Por essa época, às propostas de dissolução de fronteiras sociais que apareceram em muitos lugares deram-se os nomes de coletivismo, de socialismo e outros, muitos representados por movimentos político-sociais e artísticos de variados matizes. As ideias básicas desses movimentos, no campo da arte, com base no rompimento de limites e de formas adotadas, eram também as de aproximar, de coletivizar, de pôr tudo em comum. Entre os anos de 1860-1865, apareceu na França uma expressão, esprit du temps, para caracterizar as propostas "solventes" desse movimento. Esse nome, aliás, Esprit du Temps, lembre-se,  Edgar Morin daria a um livro seu, publicado pela Grasset em 1962. 

TUBOS  DE  TINTA , SÉCULO XIX
Desde os fins do século XIX, propostas “solventes” muito interessantes já haviam aparecido nas artes plásticas, na França, destacando-se a que procurava levar o pintor para fora dos ateliês, fazendo-o entrar em contacto direto com o exterior. Em 1841, o pintor John G. Rand inventou o primeiro tubo de tinta, feito de estanho e selado com uma tampa de rosca, tubo este que não vazava, que podia ser aberto e fechado a vontade e ainda permitia conservar a tinta por bastante tempo. 

POR  DO  SOL  EM  ÉTRETAT
(CLAUDE  MONET, 1840 - 1926)
Quanto à França isso queria dizer também levar o pintor para o litoral atlântico (Normandie, praias etc.). Essa proposta, ao mesmo tempo, libertava a pintura da tirania do Salão, até então a única possibilidade de reconhecimento oficial para um artista-pintor. O Salão, como se sabe, era uma reunião de personalidades ligadas à Arte que determinava os motivos pictóricos “aceitáveis”, recusando sumariamente qualquer desvio do que fosse por ele fixado. A nova proposta desse movimento renovador, como se sabe, apontava para uma visão muito mais espontânea da natureza, do mundo. 

Essa nova proposta, quanto às artes plásticas, deu origem a uma pintura que passou a ser chamada de impressionista, definida por um conjunto de características que incluíam contornos pouco nítidos, contrastes entre sombras luminosas, repletas de cores, registro dos tons das cores de acordo com a luz solar; pinceladas soltas. Mais: valorização da iluminação natural, misturas das tintas realizadas diretamente no quadro, representação de temas do cotidiano, composições inspiradas na fotografia etc.

CATEDRAL  DE  ROUEN
(CLAUDE  MONET)
Dentre outras características adotadas ao tempo, podemos destacar a grande valorização da iluminação solar por muitos artistas impressionistas, principalmente para Claude Monet. Exemplo disto é a série A Catedral de Rouen, pintada em 1890, composta por trinta e uma telas, para capturar a fachada da catedral em horas diferentes dos dias, mostrando como a luz afeta a aparência dos objetos pintados. Pintar ao ar livre e valorizar a luz do Sol eram as condições essenciais para representar o novo gênero artístico. Para mim, dizia Monet, uma paisagem não existe por si só, pois sua aparência muda a qualquer momento. 
A pincelada solta talvez seja o traço mais característico da arte impressionista. Isto porque, bem diferente das correntes anteriores que contavam com pinceladas cuidadosas, os impressionistas empregavam as pinceladas de modo muito mais espontâneo. Para eles, os movimentos rápidos e soltos dos pincéis conseguiam capturar a efemeridade do momento e também permitiam que eles experimentassem cores e formas diferentes. 


ELISEU  VISCONTI, 1866-1944
Estes novos artistas baseavam-se principalmente em assuntos do cotidiano para suas obras. Desse modo, os temas mais comuns eram paisagens, naturezas-mortas, retratos de amigos e familiares, cenas urbanas. Os artistas do impressionismo (pintores, gravuristas, gráficos etc.) de maior destaque foram os franceses Claude Monet, Pierre-Auguste Renoir, Édouard Manet, Edgar Degas, Pissarro, Berthe Morisot, Serov (russo) e, entre os brasileiros valha-nos o grande Eliseu Visconti.

Ao aproximar o Impressionismo como movimento artístico dos postulados da doutrina alquímica (uma profunda e saudável maneira de se ver e explicar o mundo), salta à vista que é da Solutio (dissolução) que ele se aproxima e é através dessa operação solvente que encontramos as maiores possibilidades de entendimento desse importante fato artístico, iluminado que fica de várias e profundas maneiras. Lembremos que quem fala em Solutio discorre sobretudo de água. Ou seja:  fala de formas que se desfazem constantemente, que podem se regenerar, purificar ou desfazer e muito, muito mais. 

A água (mares, oceanos, lagos, rios etc.), as nuvens, as flores, a fumaça, os nevoeiros, ressalte-se, foram eleitos no século XIX como temas privilegiados das artes plásticas, ao lado da figura humana, até então a única admitida. As formas tornaram-se evanescentes, o contorno rígido do desenho foi rompido, ganhando imprecisão. Foi um jornalista (Louis Leroy), inspirando-se numa tela de Claude Monet (Impressão, Sol Nascente) que qualificou o estilo posto em moda com o nome de Impressionismo. 


IMPRESSÃO  SOL  NASCENTE ( MONET, 1840 - 1926)

Em que pesem as diferenças entre os vários pintores que aderiram ao movimento impressionista, todos, de um modo ou de outro, procuraram pintar a natureza na sua verdade mutável segundo a luz, utilizando-se, sobretudo, para tanto, de novas técnicas de pinceladas. A ideia era a de captar todas nuances possíveis numa mistura ótica de cores que o olho do espectador reconstituiria. Aceitando inclusive a arte oriental, sob o nome de japonismo, os novos pintores passaram a utilizar todo o espaço da tela, suprimindo o cerne do claro-escuro e a perspectiva linear. O interesse pictórico se concentrou na busca dos efeitos fugazes da luz e do movimento, na despreocupação com relação aos contornos, na aversão aos tons sombrios e no uso de enquadramentos originais. Lembre-se que estas ideias alcançaram também a música, influenciando bastante o estilo das composições desenvolvido sobretudo por compositores como Debussy, Ravel, Satie, Roussel e alguns outros. No fundo, uma tendência de usar os sons como cores, empregar formas de caráter deliberadamente nebuloso, evitando a precisão nos ritmos e nas harmonias. 

SCHOPENHAUER, 1788-1860
Na literatura, as novas ideias deram substância a um movimento, sobretudo poético, que tomou o nome de Simbolismo. Escritores belgas e franceses, principalmente, agrupados em comunidades de caráter esotérico, de ensino fechado, para poucos, divulgaram suas obras com certo sucesso, fazendo chegar a nova estética, com forte acento musical, aos demais países europeus e às Américas. O ideário simbolista era de caráter idealista: um poema devia traduzir as “ideias primordiais”, não sendo os fenômenos concretos mais que manifestações exteriores e superficiais. O poema devia se constituir, com a ajuda do símbolo, num ponto de junção entre a ideia e o mundo. O Simbolismo se colocava assim sob a égide da filosofia idealista alemã e, em particular, de Schopenhauer, que concebia o mundo como “representação”, ou seja, segundo a visão subjetiva do agente que o percebia.

PARACELSO, 1493 - 1541
Muitos alquimistas consideram a Solutio (dissolução) como a principal operação da Opus alquímica, já que ela faz parte da sua síntese mais perfeita na fórmula: “Solve et Coagula”, ou seja, dissolve(-te) e coagula(-te), isto é, perde a tua forma e conquista outra, mais pura, melhor. Para todos os alquimistas a Solutio, numa visão mais rigorosa, sempre significou o retorno da matéria coagulada a um estado de indeterminação: o sólido se desfazendo completamente para voltar ao seu estado de indiferenciação original, voltar à chamada prima matéria, um retorno no qual estava implícita a ideia de renascimento. Fazendo suas as palavras de Paracelso, muitos alquimistas sempre entenderam que as transformações só poderiam ser feitas se, antes, os corpos passassem pela Solutio.

Lembre-se que as ideias acima, quanto à cultura ocidental, se aproximam muito daquilo que os antigos gregos chamavam de caos tanto na sua mitologia como nas primeiras formulações da sua filosofia pré-socrática. O caos (etimologicamente, é palavra que lembra o bico de um pássaro se entreabrindo) não é uma divindade, mas um princípio representativo de uma espécie de protomatéria, massa confusa e desordenada, que antecede a ideia de criação e que elidia os conceitos de tempo e de espaço. Dotado de força prolífica, conforme o mito grego sustenta, o caos, num determinado momento, se movimentou parar gerar, nesta ordem, Geia, a Terra, o Tártaro, o mais profundo do mundo subterrâneo, Eros, a energia que tudo une, Érebo, as trevas inferiores, Nix, a Noite, as trevas superiores, e Urano, o Céu. Céu (Urano) e Inferno (Hades) são simétricos com relação a Geia, pois a distância que separa o Tártaro de Geia é a mesma que a separa de Urano.


EROS

Uma referência especial a Eros (etimologicamente, abrasar, queimar, arder), divinizado como Desejo. Foi a partir da união entre estas cinco entidades nascidas do Caos, uniões promovidas por Eros, que foram criados o universo material, os deuses e os humanos, definindo-se, com relação a estes últimos, os conceitos de existência (estar fora) e de cosmos (ordenação). Existir, pois, será sair da indeterminação, conquistar uma individualidade e entrar na ordem universal (Caos – Existência - Cosmos), ideias que estão na base das várias doutrinas psicológicas que procuram ajustar a existência, os estados e processos mentais do ser humano no que se refere à sua interação com o ambiente físico e social em que vive.

ANAXIMANDRO
Quanto à filosofia pré-socrática, de natureza cosmológica nas suas formulações iniciais, o jônico Tales de Mileto, o mais antigo dos filósofos gregos, atribuía à água a origem de tudo o que entrava na existência. Para Anaximandro, discípulo de Tales, o princípio primeiro das coisas era o apeiron (etimologicamente, indeterminado, ilimitado), uma espécie de energia em infinita atividade, no que lembrava muito o Brahman dos hindus. Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, considerou o ar como o elemento original enquanto Heráclito de Éfeso, chamado de O Obscuro, que viveu algum tempo depois dos anteriormente mencionados, ao optar pelo fogo, afirmava que no universo tudo flui, tudo está em permanente movimento, num processo dialético infinito. 

EMPÉDOCLES
Quanto ao que nos toca mais de perto, a visão mais interessante sobre os elementos constitutivos do universo é a de Empédocles de Agrigento (490-435 aC). Para ele, a natureza era uma síntese de quatro deuses ou elementos (raízes, como ele os chamava): Nestis ou Perséfone (Água), Hera (Terra), Zeus (Ar) e Hades (Fogo). A mistura deles era chamada por ele de nascimento e à sua separação dava ele o nome de morte. Quem os juntava era o Amor (Filia) e quem os separava era a Discórdia (Neikos). A multiplicidade da vida cósmica, produzida pela união dos elementos, se realizava na Esfera. Neikos permanecia fora dela, mas conseguia muitas vezes romper a sua unidade, invadindo-a. Filia tentará sempre, num processo infinito, conciliar novamente os elementos separados. Isto explicava para Empédocles porque as criações se desagregavam e se recompunham eternamente. 

De um modo geral, o caos, porque indeterminado, ilimitado e desordenado, é normalmente representado pelo elemento líquido, a água, considerada por isso como fonte e símbolo da vida, assim cultuada em todas as mitologias, a ela se atribuindo três aspectos nessa condição: como origem da vida, como meio de purificação e como meio de regeneração. Quanto ao primeiro aspecto, esclareça-se que os elementos biogênicos existentes no universo (carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e enxofre), ao se combinarem entre si através de infinitas reações bioquímicas, só podem dar origem à vida sob temperaturas que permitam a existência de água em estado líquido. Todo o mundo natural (vegetais, animais e seres humanos) depende da água para viver. O ser humano, por exemplo, antes de entrar na existência é formado e se desenvolve num meio líquido materno, o chamado líquido amniótico. O âmnio (etimologicamente, a palavra vem de amnos, carneiro) é uma membrana que se desenvolve em torno do embrião dos vertebrados superiores, formando uma espécie de bolsa, na qual está o líquido amniótico, que protege o referido embrião de choques e aderências e lhe garante a vida nessa condição.

CALDEIRA DE ÁGUA BENTA
Como meio de purificação, a água lava, limpa, razão pela qual sempre foi usada em todos os rituais religiosos seja como água benta, água batismal, ablução, água lustral, banho ritual etc. Como meio de regeneração, voltar à água é desfazer-se da antiga forma para se tomar outra forma. Entretanto, se a água como massa indiferenciada representa um infinito de possibilidades regeneradoras, ela, por outro lado, pode se constituir numa ameaça de reabsorção, de dissolução, de aniquilação e de morte.

Constituem a água, sob o ponto de vista das qualidades primitivas, o frio e o úmido. O primeiro atua por retração, por interiorização, por absorção, enquanto o segundo é receptivo, adaptável, difuso e permeável. Lembrando penetrabilidade e plasticidade, o úmido favorece a fusão das partes numa totalidade maior, diferente. O frio, ao contrário, lembra reserva, atuando por contração (enroscamento, encerramento em si próprio, recalque). Unidos para formar a água, o frio entra com a retenção e o úmido com a ligação, levando a estados que significam amolecimento, mistura, assimilação, inflação, enchimento, dissolução, interiorização, indiferenciação, tudo numa só massa.

Fisiologicamente, a água corresponde ao temperamento linfático, caracterizado pela predominância do aparelho digestivo e da função da nutrição, assegurada pela linfa e pelo plasma sanguíneo. A linfa é um líquido orgânico originado do sangue, composto de proteínas e lipídios, que circula nos vasos linfáticos e transporta glóbulos brancos, especialmente linfócitos. Já o plasma é a porção líquida do sangue, na qual estão suspensos os componentes particulados. Na dominante água, o regime que prevalece é o do estado vegetativo, do repouso, da inércia, do sono, tendendo a morfologia dos tipos linfáticos para o dilatado e o átono. 

Psicologicamente, com a água dominando, a importância maior é dada ao instinto conservador e à memória, às recordações, aos hábitos, às impressões recebidas, ao que foi adquirido, ao que entrou e ficou. Destaque para a renúncia quanto ao movimento, à ação, com o consequente abandono à vida interior, com entrega à fantasia, à imaginação, ao sonho, aos estados contemplativos e inconscientes.

Astrologicamente, a água forma os signos de Câncer, Escorpião e Peixes, cada um com a sua dinâmica. O primeiro abre o verão; o segundo marca o auge do outono: o terceiro tem relação com o fim do inverno. Câncer, no ciclo anual, corresponde à formação das sementes e aponta para o triunfo das forças geratrizes maternas através de conceitos como concepção, gestação, maternidade, alimentação e digestão. De natureza lunar, simboliza Câncer as águas-mães no momento do ano em que a seiva vegetal permeia os tecidos do mundo natural. A esse signo se associam símbolos como a gruta, a caverna, a concha, a prata. O complexo maternal determina a vida psíquica dos nascidos neste período, complexo que sempre nos lembra vida vegetativa. De um modo geral, o canceriano é um sonhador, um hipersensível, um imaginativo, que tende à esquizoidia, à submissão passiva e feminina. Seus tipos humanos mais representativos tendem a se apegar à infância, a se identificar com a figura materna, à família, às recordações, preferindo sempre o dentro (vida interior) no lugar do fora (vida exterior). 

PROUST
O signo é bem representado por escritores como Montaigne e Marcel Proust ou por músicos como Gabriel Fauré, embora outros, bizarros e caprichosos, em lugar do sedentarismo, se vejam empurrados para o nomadismo, tenham uma vida instável, como Franz Schubert, Rainer Maria Rilke, Lord Byron e Ernest Hemingway. 

O simbolismo de Escorpião, auge do outono, se liga, na natureza, ao fim do mundo vegetal, à queda e à decomposição, à destruição do mundo objetivo e das formas exteriores, um mundo onde se impõem as fermentações, a desagregação e a putrefação. Os mais característicos tipos escorpianos movimentam-se em climas interiores angustiantes e são animados por pulsões violentas e tendências absolutistas, por um querer total. Sua alquimia interior é complicada, dela fazendo parte estados mórbidos, sentimentos absurdos, ideias de morte, sadomasoquismo, culpabilidade, autopunição, fobias e obsessões. A obra de Jean Racine é, sem dúvida, um dos melhores exemplos desta tipologia. 

No universo escorpiano, temos dois tipos básicos: o individualista rebelde, indisciplinado, avesso a qualquer tipo de coação, revoltado, antissocial, que se entrega aos seus instintos muitas vezes na intemperança, na dissipação e mesmo na autodestruição. De outro lado, temos o tipo contido, sóbrio, aferrado às regras, maníaco e formalista, crítico, neurótico, laborioso, reprimido e disciplinado, farejador, que vive num mundo de odores e desconfianças, uma curiosa consciência faustiana suprarracional. 

POE, 1809-1849
Às vezes, as duas tendências acima, presentes alternadamente num mesmo ser, criam o terceiro tipo escorpiano: amante da ordem, mas caótico; burguês e revolucionário; procurando sempre o asseio físico (TOC), mas moralmente “sujo”, ou vice-versa; hipócrita e profundamente ético, ao mesmo tempo; destrutivo, ferino, venenoso, em muitas circunstâncias, e criativo, regenerador, em muitas outras; mortal e fecundo. Lembremo-nos de Edgar Alan Poe: Eu só pude amar onde a Morte / misturava seu sopro ao da Beleza / ou então onde o Himeneu, o Tempo e o Destino / caminhavam entre ela e eu.

O terceiro signo de água é Peixes, associado ao fim de inverno, através do qual se faz a passagem para a primavera. Implícitas, pois, claramente, mais que nos outros, as ideias de dissolução (solutio) e de renascimento. Em Peixes, a umidade prepondera sobre o frio, ao contrário de Escorpião, onde o frio se impõe à outra qualidade, produzindo, neles, escorpianos, um grande acúmulo de percepções (traduzidas em emoções), que criam uma rigidez que leva os tipos deste signo a confundi-la com a vontade. Em Peixes, devido à grande permeabilidade, é praticamente impossível pôr uma ordem ao que entra, gerando-se muitas vezes uma sensação de caos e de impotência.

Por isso, a plasticidade psíquica dos piscianos é enorme: maleabilidade, impressionabilidade, vulnerabilidade, receptividade e infiltrações emotivas são dominantes. Do pisciano Georges Bernanos (1888-1948): Fico feliz por ter construído tão mal a minha vida. Acrescento, ainda, que não lamento ter deixado tantos caminhos pelo mar, já que nele encontrei, se não a causa dos meus sonhos, ao menos a que mais se parece com a minha vida. As portas não têm fechadura, as janelas não têm vidro, os quartos não têm teto e essa ausência de teto faz com que descubramos tudo o que nos outros está escondido.”

Sob o ponto de vista psicológico, uma das mais sedutoras formas da solutio costuma aparecer quando, para tentar escapar ou suavizar de algum modo as desagradáveis pressões que a vida presente traz, manifestam os tipos humanos com ela o premente desejo de voltar a certas fases da existência ou a lugares nos quais julgam ter sido felizes. Muitos procuram mesmo perigosamente se fixar nessas fases ou nesses lugares, voltar a eles, visitá-los, ler ou ver filmes sobre eles, se aproximar de pessoas que os lembrem, tentando, como imaginam, ali encontrar alguma satisfação, algum bem-estar, algum conforto, que o presente lhes nega.

FERNANDO PESSOA

Geralmente, este desejo de voltar ao passado se caracteriza por uma forma de regressão, um retorno à matriz, à fonte da vida, às origens. Como exemplo, cito um dos mais interessantes movimentos culturais de Portugal, reunido em torno da revista Águia, que durou de 1910 a 1932. Uma das vertentes desse movimento era o chamado Saudosismo, do qual faziam parte Jaime Cortesão, Álvaro Pinto, Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa. Cultural e literariamente o movimento, como um todo, deu forma a uma atitude perante a vida que propunha um retorno a certos valores do passado para que se tornasse possível a reconstrução do país, minado, à época, por dissensões republicanas de toda ordem. O movimento procurava no passado, nas fontes genuínas da nacionalidade, a inspiração para um futuro renovado.


No séc. XXI, um grupo de intelectuais portugueses fez a revista renascer, dando-lhe o nome de Nova Águia, ajustados os seus propósitos aos tempos de hoje, com destaque, como um imperativo ético, para um decidido combate ao dogmatismo da cultura tecnocrática, aniquiladora da liberdade de opinião, de expressão e de ação (a solutio cibernética). Um tema caro aos fundadores da primeira revista, como Fernando Pessoa o cunhou, Minha Pátria é a Língua Portuguesa, foi retomado agora: O Mar e a Lusofonia, tendo como mote a frase de Vergílio Ferreira, Da minha língua vê-se o mar. 

A propósito do que está acima, lembremos de Eça de Queiroz, 1845-1900, o genial escritor português, que não podemos literariamente considerar um saudosista. Ele escreveu sobre tema semelhante uma de suas obras-primas, As Cidades e as Serras, desenvolvida a partir de um conto, Civilização, publicado em 1892, que tinha como personagem principal o famoso personagem Jacinto de Thormes.

Nos mitos, são símbolos desse mundo das origens as cavernas, as grutas, geralmente lugares sombrios e profundos, localizados na base das montanhas, todos arquétipos da matriz original. Esses lugares aparecem tanto nos momentos iniciais da criação (cosmogonias) como nos ritos de iniciação ou de agregação, como referências analógicas ao atanor (o forno dos alquimistas), ao caldeirão céltico, sempre objetos ligados a ideias de transformações e de renascimentos.


ATANOR


Para os primeiros seres humanos, a caverna, em todas as tradições, sempre foi considerada um reservatório de energias e de lembranças que dela devem emergir a fim de que, no plano do psiquismo, o consciente seja libertado dos complexos, dos sentimentos mais ou menos confusos que se agitam no inconsciente. Todos estes símbolos matriciais, como cavernas, grutas e águas originais, são equivalentes, lembrando sempre receptáculos de vida, lugares de proteção, aos quais retornamos quando ameaçados, inseguros ou insatisfeitos.

O urso, por exemplo, é um dos grandes símbolos desta ameaça. O urso, na Alquimia, representa a vida instintiva, as fases iniciais da vida humana. Violento e brutal, descontrolado como a prima matéria, ele pode, contudo, se mostrar suscetível a alguma evolução, a alguma disciplina, embora sempre presentes as temíveis possibilidades de uma regressão instintiva.

A maior parte da humanidade se deixa abandonar, não luta para se libertar dos poderes da gruta, o que sempre é muito tentador. É a isto que chamamos de retomada da criança pela Grande-Mãe. O investimento que o filho fez para sair da sua solutio com a mãe em busca de autonomia (conquista de um ego independente) se vê ameaçado. São várias as descrições em que a mãe, indiferente às tentativas de resistência do filho, o devora (Édipo e Jocasta). 

A ameaça das origens, das matrizes, que todo ser humano carrega como um fascínio inconsciente, como os mitos nos revelam, acaba gerando tendências involutivas nos egos mais fracos, podendo paralisar muitas vezes o seu desenvolvimento. Há toda uma literatura que nos aponta para os cenários dominados pela saudade, pela nostalgia, pelo memorialismo, quando pensamos na regressão.

A GRANDE MÃE
Muitas formas da chamada vocação religiosa, é o caso, não passam no fundo de um desejo inconsciente de retorno à Grande Mãe, uma espécie de autodissolução, de abandono, uma autoentrega, mais que uma volta ao seio materno. Um retorno ao âmnio, a uma vida vegetativa, inconsciente, morna, sob a tutela materna, que passa a ser vista então como saciedade, calor, segurança, carinho, amor, compreensão. A Mãe como proteção e refúgio que nos põe a salvo das tempestades e das desilusões da vida. Não é por acaso, aliás, que no catolicismo se dá à Igreja o nome de Santa Madre, onde ela aparece também com os títulos de Esposa amantíssima (de Cristo) e Santa Mãe que gera filhos amados por Deus através do sacramento do batismo, que os alimenta com a eucaristia, que através da crisma os confirma. Como fatores determinantes da volta ao passado (perda da firmeza do ego), dois sentimentos em especial costumam aparecer associados à regressão, o remorso e a culpa. O primeiro é um tenaz e persistente sentimento de dor moral causado pela consciência de se ter agido mal (rompimento da solutio). Remorso, etimologicamente, vem do verbo remordere, tornar a morder. Culpa, psicologicamente, é uma emoção penosa resultante de um conflito interior. Por exemplo, entre um impulso, um desejo ou fantasias que alimentamos e normas individuais ou sociais. 

O nosso processo de individuação, como a Astrologia o descreve, dá-se pela nossa saída da gruta lunar (quarta casa, signo de Câncer) e o nosso ingresso na quinta casa (signo de Leão). Esta passagem equivale simbolicamente à separação entre a Lua e o Sol, representando aquela o nosso lado inconsciente e este o nosso lado consciente (tomar consciência é separar-se, qualquer psicólogo sabe disto). No laboratório alquímico, quem resolve esta separação dos dois elementos do amálgama prata-ouro é o mercúrio, símbolo do intelecto. Nem sempre porém esta separação é tranquila. Em termos psicológicos, muito presente a ameaça de regressão, devido a pressões internas e externas. A perspectiva de voltar à gruta, à indiferenciação, é causa de muita apreensão, de muita ansiedade. A autonomia do Sol, obtida no geral com muito sofrimento e esforço, se vê sempre ameaçada de dissolução (ataques do inconsciente ao consciente). 

BAIXO RELEVO EM ELÊUSIS

A imersão consciente, a descida à água, é uma renúncia à forma existente. Quando a imersão é procurada espontaneamente, falamos de uma solutio purificadora, regeneradora. Ela tem, no caso, um valor iniciático, ajudando-nos a dissolver os estados fixos e estáticos da nossa personalidade para que uma outra forma seja obtida (Mistérios de Elêusis). Sonhos com banhos, mergulhos no elemento líquido, em piscinas, visita a fontes, lagos, a mares, mania de limpeza (TOC, washer), de desinfecção etc., podem anunciar desejos inconscientes de purificação ou de regeneração.

Neste particular, é bom lembrar que o Cristianismo cercou o banho de muitas restrições, vendo-o como um atentado ao pudor, contrário ao espírito cristão. Banhos quentes, então, jamais; sempre foram considerados nos antigos meios cristãos como busca desenfreada de uma baixa sensualidade. Afastar-se deles, pois. Toleráveis, só os banhos frios e, mesmo assim, poucos. Cultivar sempre a pudicícia, a qualidade do que é casto, uma virtude sobre tudo feminina. 


SÃO JERÕNIMO, C.1605 ( MICHELANGELO CARAVAGGIO)
 

São Jerônimo sempre combateu o hábito dos banhos, considerando, mesmo os frios, como ataques à pureza, uma imoralidade.  Os banhos públicos para o Cristianismo dos primeiros tempos eram lugares de depravação, pecado, proibidos aos bons cristãos. Mais drásticas ainda, certas tradições católicas chegaram a negar radicalmente o uso da água. Clemente de Alexandria tentou dar ordem à prática, definindo a questão em banhos: 1) de prazer; 2) para o aquecimento; 3) de limpeza; 4) por questão de saúde; 5) femininos (admitidos sob autorização especial, sem abuso). Santo Agostinho tolerava os banhos quentes uma vez por mês. De um modo geral, a imersão em água fria era recomendada apenas como mortificatio; quanto mais glacial o banho, melhor, maior a agressão à carne, sempre pecaminosa.