Nas primeiras décadas do século XIX, na Europa, apareceram doutrinas que procuravam fazer com que os interesses sociais prevalecessem sobre os individuais. Por volta de 1830, no mundo da filosofia, já estavam bem fixadas as ideias de que os interesses coletivos deviam se sobrepor aos particulares do então chamado liberalismo. Por essa época, às propostas de dissolução de fronteiras sociais que apareceram em muitos lugares deram-se os nomes de coletivismo, de socialismo e outros, muitos representados por movimentos político-sociais e artísticos de variados matizes. As ideias básicas desses movimentos, no campo da arte, com base no rompimento de limites e de formas adotadas, eram também as de aproximar, de coletivizar, de pôr tudo em comum. Entre os anos de 1860-1865, apareceu na França uma expressão, esprit du temps, para caracterizar as propostas "solventes" desse movimento. Esse nome, aliás, Esprit du Temps, lembre-se, Edgar Morin daria a um livro seu, publicado pela Grasset em 1962.
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TUBOS DE TINTA , SÉCULO XIX |
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POR DO SOL EM ÉTRETAT (CLAUDE MONET, 1840 - 1926) |
Essa nova proposta, quanto às artes plásticas, deu origem a uma pintura que passou a ser chamada de impressionista, definida por um conjunto de características que incluíam contornos pouco nítidos, contrastes entre sombras luminosas, repletas de cores, registro dos tons das cores de acordo com a luz solar; pinceladas soltas. Mais: valorização da iluminação natural, misturas das tintas realizadas diretamente no quadro, representação de temas do cotidiano, composições inspiradas na fotografia etc.
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CATEDRAL DE ROUEN (CLAUDE MONET) |
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ELISEU VISCONTI, 1866-1944 |
Ao aproximar o Impressionismo como movimento artístico dos postulados da doutrina alquímica (uma profunda e saudável maneira de se ver e explicar o mundo), salta à vista que é da Solutio (dissolução) que ele se aproxima e é através dessa operação solvente que encontramos as maiores possibilidades de entendimento desse importante fato artístico, iluminado que fica de várias e profundas maneiras. Lembremos que quem fala em Solutio discorre sobretudo de água. Ou seja: fala de formas que se desfazem constantemente, que podem se regenerar, purificar ou desfazer e muito, muito mais.
A água (mares, oceanos, lagos, rios etc.), as nuvens, as flores, a fumaça, os nevoeiros, ressalte-se, foram eleitos no século XIX como temas privilegiados das artes plásticas, ao lado da figura humana, até então a única admitida. As formas tornaram-se evanescentes, o contorno rígido do desenho foi rompido, ganhando imprecisão. Foi um jornalista (Louis Leroy), inspirando-se numa tela de Claude Monet (Impressão, Sol Nascente) que qualificou o estilo posto em moda com o nome de Impressionismo.
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IMPRESSÃO SOL NASCENTE ( MONET, 1840 - 1926) |
Em que pesem as diferenças entre os vários pintores que aderiram ao movimento impressionista, todos, de um modo ou de outro, procuraram pintar a natureza na sua verdade mutável segundo a luz, utilizando-se, sobretudo, para tanto, de novas técnicas de pinceladas. A ideia era a de captar todas nuances possíveis numa mistura ótica de cores que o olho do espectador reconstituiria. Aceitando inclusive a arte oriental, sob o nome de japonismo, os novos pintores passaram a utilizar todo o espaço da tela, suprimindo o cerne do claro-escuro e a perspectiva linear. O interesse pictórico se concentrou na busca dos efeitos fugazes da luz e do movimento, na despreocupação com relação aos contornos, na aversão aos tons sombrios e no uso de enquadramentos originais. Lembre-se que estas ideias alcançaram também a música, influenciando bastante o estilo das composições desenvolvido sobretudo por compositores como Debussy, Ravel, Satie, Roussel e alguns outros. No fundo, uma tendência de usar os sons como cores, empregar formas de caráter deliberadamente nebuloso, evitando a precisão nos ritmos e nas harmonias.
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SCHOPENHAUER, 1788-1860. |
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PARACELSO, 1493 - 1541 |
Lembre-se que as ideias acima, quanto à cultura ocidental, se aproximam muito daquilo que os antigos gregos chamavam de caos tanto na sua mitologia como nas primeiras formulações da sua filosofia pré-socrática. O caos (etimologicamente, é palavra que lembra o bico de um pássaro se entreabrindo) não é uma divindade, mas um princípio representativo de uma espécie de protomatéria, massa confusa e desordenada, que antecede a ideia de criação e que elidia os conceitos de tempo e de espaço. Dotado de força prolífica, conforme o mito grego sustenta, o caos, num determinado momento, se movimentou parar gerar, nesta ordem, Geia, a Terra, o Tártaro, o mais profundo do mundo subterrâneo, Eros, a energia que tudo une, Érebo, as trevas inferiores, Nix, a Noite, as trevas superiores, e Urano, o Céu. Céu (Urano) e Inferno (Hades) são simétricos com relação a Geia, pois a distância que separa o Tártaro de Geia é a mesma que a separa de Urano.
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EROS |
Uma referência especial a Eros (etimologicamente, abrasar, queimar, arder), divinizado como Desejo. Foi a partir da união entre estas cinco entidades nascidas do Caos, uniões promovidas por Eros, que foram criados o universo material, os deuses e os humanos, definindo-se, com relação a estes últimos, os conceitos de existência (estar fora) e de cosmos (ordenação). Existir, pois, será sair da indeterminação, conquistar uma individualidade e entrar na ordem universal (Caos – Existência - Cosmos), ideias que estão na base das várias doutrinas psicológicas que procuram ajustar a existência, os estados e processos mentais do ser humano no que se refere à sua interação com o ambiente físico e social em que vive.
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ANAXIMANDRO |
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EMPÉDOCLES |
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CALDEIRA DE ÁGUA BENTA |
Constituem a água, sob o ponto de vista das qualidades primitivas, o frio e o úmido. O primeiro atua por retração, por interiorização, por absorção, enquanto o segundo é receptivo, adaptável, difuso e permeável. Lembrando penetrabilidade e plasticidade, o úmido favorece a fusão das partes numa totalidade maior, diferente. O frio, ao contrário, lembra reserva, atuando por contração (enroscamento, encerramento em si próprio, recalque). Unidos para formar a água, o frio entra com a retenção e o úmido com a ligação, levando a estados que significam amolecimento, mistura, assimilação, inflação, enchimento, dissolução, interiorização, indiferenciação, tudo numa só massa.
Fisiologicamente, a água corresponde ao temperamento linfático, caracterizado pela predominância do aparelho digestivo e da função da nutrição, assegurada pela linfa e pelo plasma sanguíneo. A linfa é um líquido orgânico originado do sangue, composto de proteínas e lipídios, que circula nos vasos linfáticos e transporta glóbulos brancos, especialmente linfócitos. Já o plasma é a porção líquida do sangue, na qual estão suspensos os componentes particulados. Na dominante água, o regime que prevalece é o do estado vegetativo, do repouso, da inércia, do sono, tendendo a morfologia dos tipos linfáticos para o dilatado e o átono.
Psicologicamente, com a água dominando, a importância maior é dada ao instinto conservador e à memória, às recordações, aos hábitos, às impressões recebidas, ao que foi adquirido, ao que entrou e ficou. Destaque para a renúncia quanto ao movimento, à ação, com o consequente abandono à vida interior, com entrega à fantasia, à imaginação, ao sonho, aos estados contemplativos e inconscientes.
Astrologicamente, a água forma os signos de Câncer, Escorpião e Peixes, cada um com a sua dinâmica. O primeiro abre o verão; o segundo marca o auge do outono: o terceiro tem relação com o fim do inverno. Câncer, no ciclo anual, corresponde à formação das sementes e aponta para o triunfo das forças geratrizes maternas através de conceitos como concepção, gestação, maternidade, alimentação e digestão. De natureza lunar, simboliza Câncer as águas-mães no momento do ano em que a seiva vegetal permeia os tecidos do mundo natural. A esse signo se associam símbolos como a gruta, a caverna, a concha, a prata. O complexo maternal determina a vida psíquica dos nascidos neste período, complexo que sempre nos lembra vida vegetativa. De um modo geral, o canceriano é um sonhador, um hipersensível, um imaginativo, que tende à esquizoidia, à submissão passiva e feminina. Seus tipos humanos mais representativos tendem a se apegar à infância, a se identificar com a figura materna, à família, às recordações, preferindo sempre o dentro (vida interior) no lugar do fora (vida exterior).
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PROUST |
O simbolismo de Escorpião, auge do outono, se liga, na natureza, ao fim do mundo vegetal, à queda e à decomposição, à destruição do mundo objetivo e das formas exteriores, um mundo onde se impõem as fermentações, a desagregação e a putrefação. Os mais característicos tipos escorpianos movimentam-se em climas interiores angustiantes e são animados por pulsões violentas e tendências absolutistas, por um querer total. Sua alquimia interior é complicada, dela fazendo parte estados mórbidos, sentimentos absurdos, ideias de morte, sadomasoquismo, culpabilidade, autopunição, fobias e obsessões. A obra de Jean Racine é, sem dúvida, um dos melhores exemplos desta tipologia.
No universo escorpiano, temos dois tipos básicos: o individualista rebelde, indisciplinado, avesso a qualquer tipo de coação, revoltado, antissocial, que se entrega aos seus instintos muitas vezes na intemperança, na dissipação e mesmo na autodestruição. De outro lado, temos o tipo contido, sóbrio, aferrado às regras, maníaco e formalista, crítico, neurótico, laborioso, reprimido e disciplinado, farejador, que vive num mundo de odores e desconfianças, uma curiosa consciência faustiana suprarracional.
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POE, 1809-1849 |
O terceiro signo de água é Peixes, associado ao fim de inverno, através do qual se faz a passagem para a primavera. Implícitas, pois, claramente, mais que nos outros, as ideias de dissolução (solutio) e de renascimento. Em Peixes, a umidade prepondera sobre o frio, ao contrário de Escorpião, onde o frio se impõe à outra qualidade, produzindo, neles, escorpianos, um grande acúmulo de percepções (traduzidas em emoções), que criam uma rigidez que leva os tipos deste signo a confundi-la com a vontade. Em Peixes, devido à grande permeabilidade, é praticamente impossível pôr uma ordem ao que entra, gerando-se muitas vezes uma sensação de caos e de impotência.
Sob o ponto de vista psicológico, uma das mais sedutoras formas da solutio costuma aparecer quando, para tentar escapar ou suavizar de algum modo as desagradáveis pressões que a vida presente traz, manifestam os tipos humanos com ela o premente desejo de voltar a certas fases da existência ou a lugares nos quais julgam ter sido felizes. Muitos procuram mesmo perigosamente se fixar nessas fases ou nesses lugares, voltar a eles, visitá-los, ler ou ver filmes sobre eles, se aproximar de pessoas que os lembrem, tentando, como imaginam, ali encontrar alguma satisfação, algum bem-estar, algum conforto, que o presente lhes nega.
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FERNANDO PESSOA |
Geralmente, este desejo de voltar ao passado se caracteriza por uma forma de regressão, um retorno à matriz, à fonte da vida, às origens. Como exemplo, cito um dos mais interessantes movimentos culturais de Portugal, reunido em torno da revista Águia, que durou de 1910 a 1932. Uma das vertentes desse movimento era o chamado Saudosismo, do qual faziam parte Jaime Cortesão, Álvaro Pinto, Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa. Cultural e literariamente o movimento, como um todo, deu forma a uma atitude perante a vida que propunha um retorno a certos valores do passado para que se tornasse possível a reconstrução do país, minado, à época, por dissensões republicanas de toda ordem. O movimento procurava no passado, nas fontes genuínas da nacionalidade, a inspiração para um futuro renovado.
Nos mitos, são símbolos desse mundo das origens as cavernas, as grutas, geralmente lugares sombrios e profundos, localizados na base das montanhas, todos arquétipos da matriz original. Esses lugares aparecem tanto nos momentos iniciais da criação (cosmogonias) como nos ritos de iniciação ou de agregação, como referências analógicas ao atanor (o forno dos alquimistas), ao caldeirão céltico, sempre objetos ligados a ideias de transformações e de renascimentos.
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ATANOR |
Para os primeiros seres humanos, a caverna, em todas as tradições, sempre foi considerada um reservatório de energias e de lembranças que dela devem emergir a fim de que, no plano do psiquismo, o consciente seja libertado dos complexos, dos sentimentos mais ou menos confusos que se agitam no inconsciente. Todos estes símbolos matriciais, como cavernas, grutas e águas originais, são equivalentes, lembrando sempre receptáculos de vida, lugares de proteção, aos quais retornamos quando ameaçados, inseguros ou insatisfeitos.
O urso, por exemplo, é um dos grandes símbolos desta ameaça. O urso, na Alquimia, representa a vida instintiva, as fases iniciais da vida humana. Violento e brutal, descontrolado como a prima matéria, ele pode, contudo, se mostrar suscetível a alguma evolução, a alguma disciplina, embora sempre presentes as temíveis possibilidades de uma regressão instintiva.
A maior parte da humanidade se deixa abandonar, não luta para se libertar dos poderes da gruta, o que sempre é muito tentador. É a isto que chamamos de retomada da criança pela Grande-Mãe. O investimento que o filho fez para sair da sua solutio com a mãe em busca de autonomia (conquista de um ego independente) se vê ameaçado. São várias as descrições em que a mãe, indiferente às tentativas de resistência do filho, o devora (Édipo e Jocasta).
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A GRANDE MÃE |
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BAIXO RELEVO EM ELÊUSIS |
A imersão consciente, a descida à água, é uma renúncia à forma existente. Quando a imersão é procurada espontaneamente, falamos de uma solutio purificadora, regeneradora. Ela tem, no caso, um valor iniciático, ajudando-nos a dissolver os estados fixos e estáticos da nossa personalidade para que uma outra forma seja obtida (Mistérios de Elêusis). Sonhos com banhos, mergulhos no elemento líquido, em piscinas, visita a fontes, lagos, a mares, mania de limpeza (TOC, washer), de desinfecção etc., podem anunciar desejos inconscientes de purificação ou de regeneração.
Neste particular, é bom lembrar que o Cristianismo cercou o banho de muitas restrições, vendo-o como um atentado ao pudor, contrário ao espírito cristão. Banhos quentes, então, jamais; sempre foram considerados nos antigos meios cristãos como busca desenfreada de uma baixa sensualidade. Afastar-se deles, pois. Toleráveis, só os banhos frios e, mesmo assim, poucos. Cultivar sempre a pudicícia, a qualidade do que é casto, uma virtude sobre tudo feminina.
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SÃO JERÕNIMO, C.1605 ( MICHELANGELO CARAVAGGIO) |
São Jerônimo sempre combateu o hábito dos banhos, considerando, mesmo os frios, como ataques à pureza, uma imoralidade. Os banhos públicos para o Cristianismo dos primeiros tempos eram lugares de depravação, pecado, proibidos aos bons cristãos. Mais drásticas ainda, certas tradições católicas chegaram a negar radicalmente o uso da água. Clemente de Alexandria tentou dar ordem à prática, definindo a questão em banhos: 1) de prazer; 2) para o aquecimento; 3) de limpeza; 4) por questão de saúde; 5) femininos (admitidos sob autorização especial, sem abuso). Santo Agostinho tolerava os banhos quentes uma vez por mês. De um modo geral, a imersão em água fria era recomendada apenas como mortificatio; quanto mais glacial o banho, melhor, maior a agressão à carne, sempre pecaminosa.