sábado, 9 de outubro de 2021

A ELEGIA

                                                                

As primeiras poesias gregas que tomaram o nome de elegias (do grego, elegeia,  canto triste,  de luto, plangente, lamentoso) tinham relação com antigos cantos de guerra, de natureza épica, nos quais se destacavam os valores nacionais, a vida guerreira, as façanhas de heróis mortos. Tecnicamente, a poesia elegíaca foi se formando aos poucos pela transição desses temas épicos para temas exclusivamente líricos, entendendo-se estes como composições monódicas (cantadas a uma só voz) ou corais (cantadas em grupos), com versos de dez sílabas, sempre carregadas de muito sentimentalismo e enlevo, inclusive com acompanhamento de instrumentos musicais. 

No século VII aC, esta transição, ao que parece, já estava completa, designando-se como elegíacos os poemas  de alguns poetas como  Arquíloco, Tirteu, Callimacus  e outros. Do ritmo dos versos heroicos passou-se para o ritmo dos chamados versos pentâmetros ou elegíacos, que foi a característica mais notável, mais visível, exterior, desta transição, além de, naturalmente, dos sentimentos, da tristeza e da melancolia quanto ao conteúdo que carregavam. 

ARQUÍLOCO
Dentre os poetas acima citados, Arquíloco de Paros (712-648 aC) se destaca por ser o representante mais conhecido do chamado lirismo pessoal. Nascido na Trácia, era filho de um grego aristocrata decaído que lá vivia como colono e de uma escrava. Extremamente individualista, Arquíloco levou uma existência miserável, de mercenário, e cantou inicialmente a vida do guerreiro, a brutalidade que a cercava e as suas breves alegrias. Ao mesmo tempo alegre, melancólico e apaixonado, foi sempre Arquíloco um empedernido individualista. Ficou famoso por suas invectivas impiedosas contra a bela Neóbula e seu pai, que lhe recusara entregar a moça em casamento. Tanto fez Arquíloco, atazanando-os, que levou ambos, pai e filha, ao suicídio. Quanto ao seu talento, é, com toda a razão, considerado como um dos maiores, o maior talvez, dos líricos jônicos e iniciador da lírica monódica. Muito espontâneo na sua expressão, Arquíloco ficou famoso por seus iambos satíricos, tornando-se muito popular a sua poesia, cantada por  rapsodos, sendo, por isso, no seu tempo, colocado por muitos em pé de igualdade com Homero. 

SOLON
É de se lembrar, para ampliar o entendimento que tomou o caminho da poesia elegíaca, que no poema Salamina, Sólon (640-558 aC), o futuro legislador, embora  mantendo o espírito lírico dessa poesia, voltou a se aproximar da tradição épica para transmitir ideias de coragem e de destemor aos atenienses quando de seus revezes nas lutas que travaram, principalmente para recuperar a ilha de Salamina em poder de Mégara. 


MIMNERMO
Foi o poeta Mimnermo, porém, como tudo indica, quem, ao final do referido século, fixou a forma que os poemas elegíacos tomariam a seguir, forma através da qual chegariam aos tempos modernos, como poemas do amor, da saudade, do sofrimento e da reflexão melancólica. As elegias guerreiras de Mimnermo, ainda que ligadas aos antigos temas heroicos, já apresentavam, no geral, uma linguagem terna e apaixonada, abrindo caminho para o lirismo nostálgico que as impregnaria desde então. Nostalgia, registre-se, é palavra nova, criada no século XVII (1678) pelo médico suíço J.J. Harder, da Basileia, que uniu para formá-la, do grego, nostos (regresso) e algia (dor), ou seja, dor, sofrimento, por não se poder voltar mais ao passado.  

Nascido em Colophon, Mimnermo foi poeta e músico; viveu entre os séculos VII e VI aC, sendo considerado também como criador da elegia erótica. Seus cantos, chamados Nanno, além dos de inspiração heroica, se constituem, diante da ideia do nada, do aniquilamento de tudo, num forte apelo aos prazeres sensuais.

Não pode ser esquecido neste contexto também o poeta Simônides de Ceos, que viveu entre os séculos VI e V aC, autor de elegias e de epigramas. No concurso aberto para celebrar a vitória de Maratona, Simônides venceu Ésquilo, o grande poeta trágico, além de ter seu renome enaltecido pelas composições que publicou sobre as batalhas de Artemisium e de Salamina. A par dessas glórias poéticas, devemos acrescentar a elas talvez a maior, o reconhecimento que os gregos conferiram a Simônides como o incomparável poeta das expressões elegíacas patéticas, acontecimento literário que certamente definiu melhor o novo gênero, afastando-o das influências épicas. Realmente, não conheceram os gregos desse tempo nada mais triste que a poesia de Simônides de Ceos que escreveu usando várias formas poéticas, epigramas, cantos corais, hinos, odes, marchas fúnebres e ditirambos, tudo para louvar os heróis gregos e enaltecer a sua participação em várias baralhas contra os persas. É importante lembrar, quanto à poesia arcaica grega, que os seus melhores intérpretes foram os sofistas, já que para eles o canto (música) era a melhor força modeladora da alma.  

PROPÉRCIO
Em Roma, ficaram famosos, no século do imperador Augusto, por seus versos elegíacos, poetas como Gallus, Ovídio, Tibulo e Propércio, ainda que  discutam os especialistas se cabível incluir a obra de todos como poesia exclusivamente elegíaca. De Gallus, por exemplo, só chegaram até nós alguns fragmentos de seus versos. O que temos de mais consistente com relação a ele, quanto a este aspecto, lembremos, é o grande elogio que lhe fez Virgílio na sua sexta bucólica e a opinião de Quintiliano, que o considerava como um dos melhores poetas elegíacos latinos. 


CATULO
Famoso pela ternura dos seus versos, por sua sensibilidade quase feminina, Tibulo não pode ser esquecido. Foi um poeta pacifista, de estilo clássico, sempre saudoso dos antigos costumes camponeses, muito ligado a Horácio, Virgílio, Propércio e Ovídio.  Quanto a Catulo, embora ele não possa ser incluído no grupo dos quatro poetas elegíacos citados, ele deixou dois poemas no gênero que devem obrigatoriamente fazer parte do levantamento que se fizer das melhores elegias romanas, uma dedicada a Manilius e outra sobre a morte de seu irmão.

A tradição elegíaca greco-latina encontrou na poesia francesa a sua melhor expressão, talvez, em Ronsard (Contre les bûcherons de La Forest de Gastine), um lamento lírico contra a destruição dos velhos e sagrados carvalhos. Em Malherbe, acrescente-se, embora com alguma diferença dos greco-latinos, encontramos também, com tinturas mitológicas, a velha nostalgia elegíaca. A forma mais bem acabada da elegia, de inspiração pagã, entretanto, entre os franceses, só iria aparecer lá pelos fins do século XVIII nas obras de alguns poetas e, de modo mais interessante, nos diferentes versos de André-Marie Chenier, dentre os quais destacamos um fragmento de Néère, no qual temos expresso o triunfo do Amor sobre a Morte:

ANDRÉ-MARIE CHENIER
Au coucher du soleil, si ton âme attendrie

Tombe en une muette et molle rêverie.

Alors, mon Clinias, appelle, appelle-moi:

Je viendrai, Clinias, je volerai vers toi;

Mon âme vagabonde, à travers le feuillage,

Frémira; sur les vents ou sur quelque nuage.


Ao lado dos versos acima, poderíamos indicar também como fazendo parte do gênero elegíaco, muitos outros, de períodos posteriores, como os de Lamartine, Victor Hugo, de Mme. Desbordes-Valmores, Girardin etc. Indo a outras literaturas, poderíamos lembrar ainda a mesma presença dos temas do gênero na literatura espanhola (Garcilaso de La Vega), na italiana (Petrarca e imitadores), na portuguesa (na qual Camões e Sá de Miranda ocupam lugar privilegiado), e na literatura inglesa (Thomas Young).

Na virada do século XIX para o XX a elegia, no que tinha de mais tradicional, devido principalmente à poderosa influência de Rainer Maria Rilke, voltou a ter, ainda que com alguns ingredientes novos, grande destaque. Temas como a tristeza, a melancolia, a saudade, os sentimentos despertados pela morte, impregnavam-se agora de misticismo, de ideias de salvação e de temas angelicais, versos carregados de sentimentalismo e crise existencial. É famoso o verso com o qual Rilke, desesperado, inicia a sua primeira elegia, perguntando: Quem, se eu gritasse, me ouviria entre as hierarquias dos anjos? 

R.M. RILKE
 (WESTHOF, 1891-1977)
No século XX, realmente, não há como deixar de se citar, como maior representante das tradições do gênero elegíaco, pela grande influência que exerceu não só sobre a mentalidade literária do tempo como sobre o fazer poético, o boêmio-austríaco Rainer Maria Rilke (1875-1926), sempre considerado como um dos mais importantes poetas de língua alemã. Ele compôs os seus versos no castelo de Duino, perto de Trieste, lá hospedado a convite da princesa Marie Von Thurn e Taxis. Desde então, com Rilke, o gênero elegíaco, no século XX, parecia ter encontrado novos temas, matizados agora por uma sentimental e sedutora espiritualidade (o espírito do tempo?), da qual os poetas modernos não poderiam fugir,   sob pena de, não o fazendo, se virem solitários, abandonados. Será?

Indo à produção de alguns modernos poetas brasileiros (Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes e Mário Quintana), que ousaram escapar do modelo rilkeano, considerado o excepcional veio elegíaco de suas obras,  cito dois poemas deles (Quintana e Drummond) para os possíveis interessados no que aqui se discute: 





UMA SIMPLES ELEGIA.
                              Mário Quintana

Caminhozinho por onde eu ia andando
E de repente sumiste,
-- o que seria que te aconteceu?
Eu sei ... o tempo ... as ervas más ... a vida ...
Não, não foi a morte que acabou contigo
Foi a vida.
Ah, nunca a vida fez uma história mais triste
Que a de um caminho que se perdeu


CARLOS  DRUMMOND  DE  ANDRADE


ELEGIA  1938.
                                  C.D. de Andrade


Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.


Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.


Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.


Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.


Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.