quarta-feira, 20 de outubro de 2021

INFORMAÇÃO OU TRANSFORMAÇÃO ? II


SARTRE
Se o homem não é, mas se faz e se, em se fazendo, assume a responsabilidade por toda a espécie, se não há moral ou valores dados a priori, mas se, em cada caso, precisamos resolver sós, sem pontos de apoio, sem guias e, no entanto, para todos, como haveríamos de não sentir ansiedade quando temos de agir? Cada um de nossos atos põe em jogo o sentido do mundo e o lugar do homem no universo; através de cada um destes atos, mesmo contra a nossa vontade, constituímos uma escala universal de valores, e ainda se desejaria que não fôssemos possuídos de medo em face de tamanha responsabilidade?  (J.P. Sartre – Action)

MERLEAU-PONTI
O mundo não é o que penso, mas o que vivo, estou aberto ao mundo, comunico-me com ele de modo indiscutível, mas não o possuo, ele é inesgotável... Não temos que perguntar se percebemos verdadeiramente o mundo, mas dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que percebemos. No geral, não há que se perguntar se nossas evidências são verdades, ou se, por um vício de nosso espírito, o que é evidente para nós não seria ilusório com relação a uma verdade em si.  (M. Merleau-Ponty – Fenomenologia da Percepção – Prólogo)

Eu próprio me escolho, não no meu ser, mas na minha maneira de ser. (J.P. Sartre – O Ser e o Nada

Entre os antigos indianos hinduístas cada ramo do saber estava ligado a um modo de ser, a uma arte especializada, a uma forma de vida. O saber não era recolhido só dos livros, mas devia ser sobretudo obtido através de palestras, reuniões, debates e conversas, a melhor maneira de se abordar as relações entre espiritualidade e vida quotidiana, tendo-se em vista que o que se procurava, além de um desenvolvimento pessoal, era a promoção do desenvolvimento da sociedade como um todo. Assim, o estudo de todas as disciplinas, Gramática, Matemática, História, Geografia, Música etc., sempre procurou se voltar também para um aspecto filosófico-religioso que ia além do pessoal em direção do coletivo. 

RAMAKRISHNA
Este entendimento sempre significou, com relação ao ocidente, uma maneira bem diferente de se considerar o mundo natural e, socialmente, o próximo. Para o Hinduísmo, no dizer de Ramakrishna, a natureza inteira, o ser humano e mesmo Deus, se dele tivermos necessidade, são produtos da diferenciação cíclica do Brahman, do Absoluto, estando todos, por isso, mais ou menos interligados. 

Seguindo esse entendimento, o homem, consequentemente, não sentiria, como no ocidente, que para viver teria que se envolver com uma humanidade invejosa, hostil, contra a qual teria de levantar sempre as suas defesas. Para o Hinduísmo, o cosmos deve ser considerado como uma grande família. Nela, o homem deverá viver sem luta nem competição, com o sentimento de uma vasta colaboração ordenada e harmoniosa. Só a ignorância da consciência humana, a consciência da dualidade, separa o homem dos outros homens, do cosmos ou mesmo de Deus, se quisermos. 

Lembremos que na Filosofia ocidental o conceito da dualidade ganhou a sua primeira e permanente formulação nas propostas da lógica aristotélica. Os princípios lógicos aristotélicos, considerados fundamentais, não têm, segundo os filósofos, necessidade de demonstração alguma, já que são evidentes por si mesmos, “garantia absoluta de sua legitimidade”. Eles são, na filosofia ocidental, os primeiros princípios do conhecer e da realidade. Os dois mais importantes destes princípios são o da não contradição e o da identidade. Quanto ao primeiro: não é possível que a mesma coisa convenha e não convenha a um objeto ao mesmo tempo. Ou seja: A não é não - A. Quanto ao segundo,  uma coisa é idêntica a si mesma (A = A). Ou seja: uma coisa não pode ser ela e outra ao mesmo tempo. 

TEXTOS     ANTIGOS 

Na Índia clássica e até recentemente ainda, ao lado do ensino básico (escrever e ler), de qualquer instrução primária, dava-se grande importância ao cultivo da memória, meio pelo qual foram conservados e transmitidos por centenas de anos muitos textos, verdadeiros monumentos literários. Tais textos só começaram a ser vertidos para o papel a partir do séc. XIX por solicitação ou exigência dos europeus. 

Importante lembrar que a criança, nesse contexto, não era um ser novo, alguém que deveria ser instruído a partir do nada, uma página em branco, como a consideram a Medicina e a Psicologia ocidentais. Ao contrário, para o Hinduísmo todo ser que chegava à vida era uma alma (atma) que já trazia uma longa experiência, muitas vezes maior que a de seus próprios pais. Esta criatura, esta criança, não era um aprendiz que entrava pela primeira vez numa sala de aula, num ateliê. Esta criatura era (fora) alguém, um artífice?, um comerciante?, um professor? um shudra? que talvez até já tivesse praticado alguma coisa do que iria “aprender” na nova encarnação.

VIVEKANANDA
Era a partir destas bases metafísicas que os hindus procuravam  não encher a criança de informações, mas a fazer com que viesse à superfície o que nela já se encontrava em germe ou, como diziam os mestres, fazer evoluir o que nela se encontrava involuído. Mestres hindus comparavam esta atividade com a do papel desempenhado pelo Sol nascente que fazia a flor de lótus se abrir pela manhã. Vivekananda dizia: a criança deve fazer a sua própria educação. A função dos pais consistirá em lhe fornecer oportunidades para isso, bem como a de lhe ajudar a afastar obstáculos na sua caminhada.

Para os antigos hindus, o discípulo trazia dentro dele certas marcas de vidas passadas que o mestre, ao qual ele prestaria reverência como depositário de um conhecimento superior, ajudaria a revelar e karmicamente resolver. A instrução oral era priorizada, suplementada teoricamente por textos, se necessário. Muitas vezes, o discípulo vivia na residência de seu mestre, para ajudá-lo no seu trabalho, qualquer que fosse ele. As técnicas, se necessárias, eram aprendidas sempre praticamente. O mestre era uma espécie de matriz através da qual o discípulo ia sendo moldado.

 A transmissão das informações, sempre acompanhada por um forte acento prático, era completada por uma forma de vida a ser adotada segundo a personalidade do discípulo, encaminhando-se ele, basicamente, para uma das cinco principais formas do Yoga existentes: Raja, Hatha, Gnana, Karma e Bhakti. Esta concepção pedagógica hinduísta procurava, como se pode ver, integrar personalidade, conduta e ensinamento. Este entendimento, segundo os hinduístas, nos diz que a verdadeira aquisição de uma pessoa, em termos existenciais, tem que ser confirmada pela vida que ela leva. Ou, de outro modo: o valor das palavras ou dos escritos de alguém, de suas teorias, de sua filosofia, depende, em termos de vida, do nível em que eles são demonstrados através de sua existência. 

O meio necessário que os mestres utilizam para que o discípulo transcenda a ilusão fenomênica do mundo (Maya) está, antes de tudo, na percepção de que no universo há coisas permanentes e impermanentes. Somente o Brahman é permanente, afirmam os mestres e os textos filosóficos; tudo o mais é impermanente. Os objetos do mundo podem ser agradáveis aos sentidos, podem nos dar poder, prazeres de qualquer tipo, mas todos são transitórios. Eles nos chegam como resultado de nossas ações (karma), mas podem ser efêmeros, perdidos, também como resultado de nossas ações. 

A segunda atitude que o discípulo do Vedanta deve procurar é o desligamento de qualquer ilusão, desde que assim tenha sido ela entendida por ele. Isto significa na prática o desapego do resultado de nossas ações, com a percepção de que os problemas humanos não estão neles, nos resultados, mas, sim, nas causas das ações. Para chegar a tanto, algumas atitudes, muito trabalhadas interiormente, são necessárias. Uma delas é o que hindus chamam de sama, que podemos traduzir como quietude mental, apaziguamento das paixões. Uma conduta que procura manter a mente livre das perturbações provocadas pelos objetos dos sentidos, pelo que nos entra através dos chamados “cinco portões do Inferno”. 

Com isto, será possível se pensar num certo autodomínio que nos ajude a desenvolver virtudes como as da resistência e da paciência, que permitem suportar as vicissitudes e contrariedades que o mundo oferece. Nada de lamentações, de choradeiras, de queixumes,  no geral cenas lamentáveis, quando se tiver que lidar com as oscilantes marés da vida. Ideias de discriminação, de renúncia, de controle são, dentre outras, meios que o discípulo procura conquistar para chegar a um estado que os hindus chamam, não de conhecimento filosófico, mas de sabedoria filosófica, inspiradora de uma forma de vida superior.

É no sentido acima que a filosofia dos hinduístas se torna uma forma de vidya, ou seja, um conhecimento que implica um fim prático por meio do qual o filósofo se torna dono de sua mente, de seu corpo, controla as suas paixões e reações, tornando-se alguém que, ao viver e agir no mundo, está sempre colaborando para a melhoria do Todo. A filosofia que não traga consigo essa possibilidade de se transformar em vida que leve ao benefício do Todo é irrelevante.  




Qual o ponto de partida para uma melhor compreensão do que está acima? Para nós, ocidentais, é algo escandaloso, sem dúvida, que a chamada espiritualidade hindu se recuse a aceitar como final e unicamente aceitável, para explicar o universo, o testemunho dos sentidos humanos e dos seus acréscimos tecno-científicos. Este testemunho dos nossos sentidos vem afirmando há milênios que a morte é um acontecimento que põe fim à vida. Não aceitam também os ocidentais, diante do que a sua ciência afirma, como a espiritualidade hindu pode “defender” ideias reencarnacionistas, conceitos como os de samsara, karma e outros. Incomodam-se também os ocidentais pelo fato de os hindus “acreditarem” que embora não punidos por faltas e crimes cometidos numa encarnação sentirão certamente as consequências de seus atos, segundo os conceitos de karma e dharma, numa próxima. 


KARMA

Voltemos, porém, diante do que acima se expôs, às teses ocidentais e às propostas hinduístas, tentando explorá-las um pouco mais, comparativamente, nos seus desdobramentos filosóficos e ético-morais. De início, fica aqui a observação de que o ocidente sempre encontrou muita dificuldade, impossibilidade mesmo, de conciliar suas aspirações espirituais e morais com as suas ambições materiais. Por isto, resignaram-se os filósofos ocidentais a encerrar a vida humana num certo número de compartimentos estanques. Assim, temos, há muito, cada um destes aspectos, transformados em ciência: vida interior, religião, economia, política, vida pública, moral individual, filosofia etc., tendo cada um destes departamentos, a seu modo, muitos “incomunicáveis”, uma vida própria, mas todos, cada um na esfera de sua atuação, geradores do caos individual e coletivo no qual onde hoje nos debatemos em termos globais.

Este caos decorre basicamente da nossa tendência de querer definir tudo com precisão, de classificar com rigidez, de catalogar, de etiquetar tudo o que entra nos domínios da vida humana. Irritamo-nos mesmo quando a natureza se nega a entrar nas categorias que procuramos sempre estabelecer e impor. Esta tendência, como se sabe, é alimentada pelo que os filósofos ocidentais, a partir dos gregos, chamaram de epistemologia. Epistemologia, num sentido amplo, é um ramo da Filosofia que se ocupa do conhecimento científico; é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências, com a finalidade de determinar seus fundamentos lógicos, seu valor e sua importância.

Os hindus sempre caminharam no sentido contrário desta maneira de pensar. Para eles, no cosmos em que vivemos, conforme a consciência que dele se tem, temos o fragmento de um vasto continuum que abarca todas as espécies de planos, de estados possíveis e de modos de consciência. Para eles, ciência, filosofia, religião e vida prática não são isoláveis tanto uns com relação aos outros como na sua aplicação e utilização pelo ser humano. É claro que podemos estudá-los isoladamente numa certa perspectiva, mas eles só adquirem um sentido quando os compreendemos à luz de sua interação. 


HINDUÍSMO

É preciso descobrir, entre todos os aspectos a considerar, o que eles têm em comum, planos e modos, qual a coerência que há entre eles, segundo uma consideração intelectual. É evidente que os aspectos levados em consideração são sempre muito complexos, mas é exatamente por isso que os filósofos hinduístas adotam uma lógica diferente da nossa. No Ocidente, a lógica que herdamos de Aristóteles e de Descartes costumar ser aplicada apenas isoladamente, em cada departamento, a cada aspecto. Ficamos satisfeitos ao agir dessa maneira. No Hinduísmo, quando se trata de obter uma visão de conjunto, são levados em conta não só os aspectos visíveis, mas sobretudo os “invisíveis”. Por isso, a lógica ocidental é sempre parcial, insatisfatória. As visões lógicas ocidentais são invariavelmente incompletas, e, por isso, deformadas e contraditórias. 

No Hinduísmo, seus filósofos não opõem por isso a verdade ao erro. Eles, verão, em cada etapa, em cada caso, porém, um certo número de verdades fragmentárias, umas mais complexas e profundas que outras, mas todas “agindo” complementarmente, umas com relação às outras. Para eles, a lógica é assim diferente: A poderá ser B, C, D ou outra coisa qualquer. E mesmo esta maneira de entender não esgotará todas as possibilidades possíveis de se considerar o resultado final do que se está a considerar.

DARSHANA
Para o Hinduísmo, a lógica é diferente, talvez muito mais “lógica” e rigorosa que a nossa. Os mestres hindus costumam segui-la com firmeza, pacientemente como é comum, quaisquer que sejam as consequências, jamais se pensando em heterodoxia ou absurdo. Não devemos perder de vista este entendimento quando pensamos nas filosofias da Índia. O termo hindu para designar escola de Filosofia é darshana, palavra que vem de uma raiz que significa ver. Por isso, as escolas de Filosofia no Hinduísmo não são mais que visões, maneiras de se olhar a realidade, visões percebidas segundo determinados ângulos, todos válidos. Algo como fotografias de uma mesma pessoa, tomadas inclusive em idades diferentes, em posições diversas, com roupas variadas. Todas as fotos se completam mutuamente para permitir ao que estuda formar uma imagem de conjunto mais verdadeira. O que se disse também não impedirá que este ou aquele estudante tenha preferência por esta ou aquela foto, por este ou aquele ponto de vista, época da fotografia etc.

Os mestres se esforçam sempre para traçar um painel de conjunto, pondo sistematicamente em relevo tudo o que é comum, se não a todos os grupos, pelo menos à sua grande maioria. Isto se deve particularmente à circunstância de que os hinduístas consideram que as ideias que representam os fatos são sempre representações inadequadas da verdade. Não passa pela cabeça de um “verdadeiro” hinduísta que mesmo fórmulas e palavras sagradas tenham uma importância capital, absoluta. Sua importância decorrerá, sim, das ressonâncias ou evocações que puderem despertar em nós. Assim, não pensarão que na busca espiritual, atestada acima de tudo pela vida vivida, será possível nos colocarmos de acordo através de palavras ou fórmulas diferentes, por mais “sagradas” que sejam. 

SHIVAISTA
Para os hinduístas, nada há que se estranhar quando pessoas até com divergências radicais, que adotam concepções diversas (shivaístas, vishnuístas, adeptos de Yogas diferentes etc.) possam atingir espiritualmente (benefício do Todo) os mesmos resultados, perfeitamente identificadas. Entre os hinduístas, nenhum constrangimento em se admitir que diversas pessoas expressem uma e mesma coisa com termos absolutamente diferentes, sem uma aparente ligação visível entre eles. 

Outra constatação importante a destacar é que para os hindus todas as disciplinas, quaisquer que sejam elas (religiosas, morais, científicas, ascéticas, literárias, artísticas etc.) têm, acima de sua finalidade específica imediata, uma finalidade comum, essencial, que é o desenvolvimento espiritual, cuja preocupação maior é a de fazer com que as pessoas que participam de tais disciplinas se relacionem com o Brahman e a ele possam retornar. Mesmo a ginástica ou o simples estudo de gramática serão sempre meios que o discípulo encontra para se aproximar da verdade e de se tornar um yukta. 

Na índia antiga, cada ramo do saber estava ligado a uma arte, a um modo de vida, a uma concepção de mundo. Este saber (ainda hoje em certos grupos mais fechados às influências modernas) não devia ser colhido só nos livros, mas por meio da aprendizagem com mestres competentes. Procurava-se também com este processo, talvez acima de tudo, uma espécie de transferência psicológica entre mestre e discípulo que deveria ocorrer. O que se procurava era um desenvolvimento gradual do discípulo dentro de um molde disciplinar. 

YOGANANDA
Essa disciplina educativa era acompanhada pela prática de uma forma de vida  (Yoga) que poderia contar para a sua maior eficiência com formas simbólicas, religiosas ou não, cuja função era a de direcionar melhor o pensamento e as ações. É neste sentido que na Índia, com relação ao Hinduísmo, sobretudo, identidade de personalidade, conduta e ensinamento se interligam. A verdadeira aquisição era somente aquela que se encontrava confirmada pela vida vivida. O valor das palavras e dos escritos de alguém dependia do que vida desse alguém demonstrasse com relação às suas  palavras e escritos. 

É importante observar que os preceitos e pontos de vista acima expostos estão presentes em muitas tradições e culturas, inclusive no ocidente. Abafados por razões políticas, religiosas e econômicas, temos, entre nós, nessa situação, a chamada tradição hermética, de fundo greco-egípcio, uma compilação de ensinamentos que apareceu no início da era cristã na cidade de Alexandria.

Os sete princípios sobre os quais se baseia esse conhecimento, constituindo o chamado  Hermetismo, são os seguintes: 1) Mentalismo; 2) Correspondência; 3) Vibração; 4) Polaridade; 5) Ritmo; 6) Causa e efeito; 7) Gênero. 

Ou, de outro modo: 1) O Todo é mente; o universo é mental; 2) O que está acima é como o que está abaixo e vice-versa; 3) Nada está parado; tudo se move e vibra; 4) Tudo é duplo, tudo tem dois polos. Tudo tem o seu oposto; o igual e o desigual são a mesma coisa; os opostos são idênticos em natureza, mas diferentes em grau; 5) Tudo tem fluxo e refluxo; tudo se manifesta por ações compensadas; 6) Toda causa tem o seu efeito, todo efeito tem a sua causa; o acaso é o nome dado a uma lei não conhecida; 7) O gênero está em tudo, tudo tem o seu princípio masculino e feminino.