terça-feira, 31 de janeiro de 2012

DO CIÚME


Aristóteles afirmava que tudo aquilo que acontece a uma pessoa é uma paixão, diferente da ação. A primeira tem sempre caráter passivo, a outra faz acontecer, é ativa. No séc. XVIII, do mesmo modo, dava-se o nome de paixões da alma a todos os fenômenos que a ela aconteciam, vividos passivamente. Estes fenômenos eram modificações nela causadas. Tocada de prazer ou de dor, sentindo ou imaginando este prazer ou esta dor, a alma se aproxima do primeiro (prazer) ou afasta da segunda (dor). No seu sentido mais comum, ciúme é uma tendência exagerada que se fixa no ser humano, tornando-se o centro de tudo. A ela tudo se subordina e tudo ela arrasta consigo. Além do mais, a paixão, quando se instala, paralisa a ação normal da razão; o ser humano não mais consegue comandar a sua conduta, determinar a sua vontade.

Um sentido normalmente atribuído à palavra paixão é o de sofrimento. Paixão vem de “pathos”, sofrimento, em grego. É sempre um fenômeno afetivo e intelectual muito poderoso que pode dominar a vida como um todo pela intensidade dos seus efeitos ou pela permanência de sua ação. Por isso, no amor, quando este sentimento aparece, ele costuma se tornar dominante, obsedante. Tumultuosas, veementes, incontroláveis, violentas são, dentre outros, adjetivos que usamos para falar das paixões.

O ciúme, como fenômeno passivo da alma, é uma paixão. A palavra ciúme veio para nós do grego, dzelos, passando pelo latim, zelumen, zelumis com o sentido de intensa paixão amorosa. Os franceses têm jalousie, sentimento vivo, intenso, sombrio, palavra que veio também pela mesma via acima apontada, dando na língua provençal gilos. Os espanhóis dirão celos, os italianos gelosia e os ingleses jealousy.

O ciúme, mais ainda, é um estado emocional complexo que se traduz por um sentimento penoso provocado por alguém ou por algo de que se pretende um amor exclusivo ou posse única. Receio, pavor, temor, desconfiança, tortura costumam se insinuar quando surge o medo da perda. Ou, então, sensação muito desagradável que experimentamos quando vemos algum possuir o que já possuímos.

Dos tormentos da alma, o ciúme talvez seja o mais avassalador. E isto porque ele não existe sem o querer, sem o gostar, sem o amar. Talvez ainda porque ele apareça sempre associado a outras emoções destrutivas como a dúvida, a angústia, a desconfiança, a mágoa, a solidão, o desamparo, o medo, a rejeição, a inveja, a paranoia, a necessidade de afirmação pessoal, a autodefesa, o amor próprio etc. Haverá alguém imune ao ciúme?

Inah foi a primeira namorada, a primeira noiva e a primeira desilusão de Lupicínio Rodrigues. Foi também a primeira e única mulata de sua vida. Depois, só teria problemas com louras, como ele mesmo declarou. Com Inah, o romance começou em Santa Maria, lá no Rio Grande do Sul, de onde ele era. Ambos muito jovens, a relação durou seis anos. Terminou porque Lupicínio não se decidia quanto ao casamento. Algum tempo depois de ter tudo findado o namoro, Inah se casou com outro. Quando Lupe, como era chamado, a viu de braço com o marido, sentiu um choque tremendo, um “misto de ciúme, amizade, despeito e horror”. Adquiriu, como disse depois, uma dor de cotovelo “federal”, daquelas que duram a vida inteira, diferente da “estadual” e da “municipal”, que também duram, mas passam. O resultado dessa dor de cotovelo “federal” foi “Nervos de Aço”, samba gravado por Francisco Alves (fig. dir), o primeiro grande sucesso de Lupicínio Rodrigues.
Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher
E depois encontrar esse amor, meu senhor,
Nos braços de outro qualquer.
Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
E por ele quase morrer?
E depois encontrá-lo em um braço
E nem um pedaço do meu pode ser
Há pessoas com nervos de aço
Sem sangue nas veias e sem coração
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, amizade, despeito ou horror
Eu só sei que quando eu a vejo
Me dá um desejo de morte e de dor. 

INVEJA
Muito parecido com o ciúme é a inveja. Nos dicionários passam por sinônimos. Inveja vem do verbo latino invidere, olhar de modo malévolo, mau olhado, o famoso malòcchio dos italianos. No caso da inveja, o olho se transforma num emissor da energia que está nos sentimentos ruins que experimentamos porque o outro possui alguma coisa que desejamos ou passamos a desejar quando o vemos com ela (ele) e nós não. Este mau olhado recebeu dos italianos o nome de gettatura, do verbo gettare, arremessar, lançar longe.

Já os gregos antigos chamavam a inveja de phtonos, com o sentido de mágoa, dor, uma sensação muito desagradável produzida pela felicidade merecida ou não de alguém da qual não participamos. Phtonos era alegorizada sob a forma de um demônio, um espírito maléfico, que vivia em companhia de muitos outros, no Hades (Bosque de Perséfone), o inferno grego.

Dzelos era o nome que os gregos davam a um ciúme especial. Quando este tipo de ciúme se instalava chamavam-no de dzelotymia. Nesta palavra, junta-se o termo tymia a zelos, a primeira tendo relação com afetividade, emoção (a glândula timo representa em muitas tradições a sede da vida afetiva; corresponde, por exemplo, no Yoga ao chacra anahata). Dzelos era, pois, para os gregos, uma espécie de ciúme positivo, uma inveja saudável, ao levar aquele que a experimentava a tentar se igualar a alguém ou a superá-lo, uma forma de emulação. Uma competição sadia sem sentimentos baixos, sem falsidade. Seria uma forma de cuidado diligente, vigilante, precavido, cauteloso aplicado a um desempenho emulador.

De dzelos saiu negativamente a palavra zelote: aquele que finge ter zelo, que simula comportamento zeloso, falso. A palavra adquiriu também o significado de fanático. O ciúme negativo, a inveja, o mau olhado e todos os demais sentimentos ruins eram designados pela palavra phtonos. Tutelava estes sentimentos o demônio da Invidia dos romanos, um espectro feminino representado com serpentes na cabeça ao invés de cabelos, de olhos vesgos, magérrima, com um réptil roendo-lhe o coração.

É na literatura, evidentemente, que encontramos os melhores exemplos do ciúme. Na literatura, o tema é tratado de modo admirável por Tolstoi, em A Sonata de Kreutzer (1891). A mulher de Pozdnychev o engana com um violinista e ele a mata. Esta história de adultério permitiu a Tolstoi expor as suas ideias sobre o quão nefasto pode ser amor físico. Shakespeare também tratou do tema em Otelo, o Mouro de Veneza. Ele estrangula Desdêmona, sua esposa, convencido pelo pérfido e traiçoeiro Yago de que ela o enganava.


                                    OTELO E DESDÊMONA

Corneille (séc. XVII), dramaturgo francês, dizia: O ciúme, que parece ter por objeto apenas a pessoa que amamos, prova na verdade que amamos só a nós mesmos. Oscar Wilde (séc. XIX): As não bonitas são sempre ciumentas de seus maridos; as bonitas nunca! Não têm tempo. Estão sempre ocupadas com o ciúme em relação aos maridos de outras mulheres. E Proust arremata; Para aquela (mulher) que é objeto de ciúme, ele passa a ser considerado como desconfiança injuriosa e, por isso, é uma autorização para enganar o ciumento.

Qualquer que seja o ângulo pelo qual o examinemos, o ciúme é sempre um sentimento intenso, hostil, sombrio, que se pode experimentar também quando se vê alguém se aproveitar de algo que não possuímos ou que desejaríamos possuir com exclusividade. Ou, ainda, inquietação que nos toma quando temos de abrir mão de algo que muito prezamos ou estimamos em proveito de outra pessoa.

BALZAC

Balzac, seguindo os gregos, dizia que o ciúme e a inveja se transformavam em emulação nas pessoas superiores; nos inferiores, se transformava em ódio. O campo emocional do ciúme é vastíssimo, tem muitas nuances, formas expressivas. Freud, a partir da inveja e do ciúme, criou a expressão “inveja do pênis” para designar um elemento constitutivo, segundo ele, da sexualidade feminina, que pode se apresentar de diversas formas, indo do desejo frequentemente inconsciente dela própria possuir um pênis à vontade de gozar do pênis no coito. Lembremo-nos de Mafalda (personagem do grande Quino) ao ver um menino fazendo xixi: Maman, mira maman, que cosita más práctica, comprame una?

Psicólogos, espíritas, médicos, umbandistas, terapeutas, operários, fanáticos de novela na TV, religiosos, conselheiros espirituais, exorcistas, políticos safados, pais-de-santo, poetas, músicos, donas de casa, cartomantes, membros de torcidas organizadas, protestantes, praticantes de Yoga, evangélicos, gente que tem conta no exterior em paraísos fiscais, todos e muitos mais têm sempre o que dizer sobre o ciúme, cada um a seu modo, sem dúvida.

Uma das visões mais lúcidas do tema está na que Astrologia conscientemente praticada oferece. É no eixo Touro-Escorpião, signos fixos, sempre mais sujeitos às paixões, que temos os melhores exemplos do que aqui se trata. É óbvio que o ciúme, tanto num como noutro caso, se manifesta sobretudo, mais agudamente, nos tipos malogrados de ambos os signos. O que aqui observamos quanto aos dois mencionados signos não exclui, contudo, a possibilidade de encontrarmos manifestações de ciúme em outros signos. Quem poderá se declarar imune a esse tipo de paixão? Em Machado de Assis, sempre sutil e refinado, encontramos observações como esta (Relíquias da Casa Velha): Havia nela tanta modéstia e recato que o ciúme dele podia dormir com as portas abertas. Se quisermos mais do nosso Machado temos que ir a uma de suas obras máximas, Dom Casmurro, onde ele analisa de modo magistral o ciúme de Bentinho por Capitu, deixando-nos dúvidas que discutimos até hoje.

No caso de Touro, do elemento terra, o ciúme se liga invariavelmente a um desejo de posse material do ser ou do objeto amado, algo sempre traduzido fisicamente no sentido agarrar, de reter, de conservar, de empalmar, de tocar. Qualquer ameaça a este desejo de posse, sobre o qual repousa em grande parte a segurança física e psíquica do taurino, o ciúme, latente sempre, acaba se mostrando.




Já quanto ao escorpiano (elemento água), a segurança está ligada ao emocional. Costumam os escorpianos viver a sua afetividade de modo total, absoluto, na base do tudo ou nada. Muitos escorpianos, quando amam, desejam do outro o corpo, a alma e o resto... Em ambos os casos, o ciúme, com facilidade chega à obsessão, à ideia fixa, podendo o sentimento tomar um caminho destrutivo (se não possuo, ninguém possuirá), patológico. É evidente que quanto maior o número de astros nos signos apontados, principalmente os chamados planetas pessoais, além do ascendente, maior a ênfase passional. Não é por acaso que encontramos nesse eixo as figuras mais emblemáticas da paixão e, consequentemente, do ciúme e da inveja, seja pela sua vida pessoal e/ou pela obra que deixaram sobre o tema. Como exemplos, basta citar: Stendhal (fig.esq.), Eurípedes, Lupicínio Rodrigues, Balzac, Goethe, Jean-Paul Sartre, Richard Wagner, Picasso, Racine, Restif de la Bretonne, Albert Camus, Henri Georges Clouzot, André Malraux, Freud, Hitler, Kant, Marx etc.



Roland Barthes, semiólogo francês, em “Fragmentos de um discurso amoroso”, disse, tentando colocar o ciumento contra a parede: como homem ciumento eu sofro quatro vezes: por ser ciumento, por me culpar por ser assim, por temer que meu ciúme prejudique o outro, por me deixar levar por uma banalidade; eu sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.

A Bíblia é um dos maiores repositórios de exemplos das paixões humanas: o ciúme de Caim; o de Sara, que induziu Abraão a expulsar Agar e seu filho Ismael; as relações entre Esaú e Jacó; a traição de Judas (ciúme de Pedro); a venda de José, como escravo, aos egípcios; o ciúme de Lia diante da beleza de Raquel; o ciúme de Satã por Deus ter criado Adão e muito mais.

O ciúme e a inveja costumam andar juntos com o ódio, já diziam os gregos. E completam: acompanha-os, de longe, o Arrependimento, sob a figura de uma mulher de luto, com as roupas esfarrapadas, os olhos lavados de lágrimas, em desespero, a procurar com os olhos a Verdade. Uma das melhores ilustrações deste entendimento dos gregos nos foi deixada pelo pintor Apeles (séc. IV aC), amigo e retratista de Alexandre Magno.

No mundo grego, quem melhor falou sobre o sentimento humano foi Eurípedes, conhecido pelo apelido de “pintor das paixões”, nas suas tragédias, com os seus personagens femininos, dentre os quais se destaca Medeia. Transtornada pela traição de Jasão, ela se vinga, assassinando o rei Creonte, sua filha Creusa e os próprios dois filhos: nada morderá mais rijo o coração de meu marido.



Não é de estranhar, por exemplo, que no nosso Brasil colonial algumas enciumadas sinhás (tratamento que as escravas davam às patroas) mandassem quebrar os dentes das “negrinhas roliças” ou, então, que mandassem cortar seus seios para servi-los, assados e temperados, aos maridos. Uma dessas piedosas senhoras, irritada com os elogios que seu marido fizera aos olhos de uma “mulatinha” os serviu em calda, como sobremesa. Por aí, vemos que Peter Greenway não exagerou quando mostrou em seu filme O cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante o marido servindo à esposa o amante morto, temperado e enfeitado numa cerimônia cheia de requinte.

O COZINHEIRO, O LADRÃO, SUA MULHER E O AMANTE

O cinema, aliás, é pródigo em filmes sobre o ciúme. Um deles, por exemplo, é Carmem, baseado no romance de Prosper de Merimée e na ópera de Ceorges Bizet. Grandes nomes do cinema se voltaram para essa fascinante personagem, Chaplin (1916), Lubitsch (1918), Otto Preminger (1954), Peter Brook (1983), Carlos Saura (1984), Godard (1983) e Rossi (1984). Destaque ainda para outros filmes, alguns igualmente importantes: A Caixa de Pandora (Pabst), A Teia de Chocolate (Chabrol), Amar Foi Minha Ruína (Stahl), Atração Fatal (Adrien Lyne), Infielmente Tua (Zieff) etc.

A poesia luso-brasileira guarda preciosidades sobre o tema. De Castro Alves:



Nas ruínas desta alma a raiva geme.
E cresce o cardo – a morte
Ciúme! Dor! Sarcasmo! Aves da noite!
Vós povoais-me a solidão sombria.


Um dos maiores textos sobre o ciúme é, sem dúvida, o pequeno poema Cidra, Ciúme, de Soror Maria do Céu (1658-1753), esquecida autora do Barroco português, também atingida pela insidiosa paixão:
É ciúmes a Cidra,
E indo a dizer ciúmes disse Hidra,
Que o ciúme é serpente,
Que espedaça seu louco padecente,
Dá-lhe um centro de amor o apelido,
Que o ciúme é amor mas mal sofrido,
Troquem, pois, os amantes, e haja poucos,
Pelo zelo de Deus, ciúmes loucos.



Até em obras aparentemente tão inocentes como na história da Branca de Neve podemos encontrar o veneno do ciúme infiltrado: “A madrasta: Dize a pura verdade, dize, espelho meu, há no mundo mulher mais bela que eu? O espelho: Aqui neste quarto sois vós, com certeza, mas Branca de Neve possui mais beleza.”

Nada melhor, porém, entre nós, do que o encontrado em doutos tratados que sobre o tema se produzem, como o samba brasileiro para nos falar sobre o ciúme. O patrono dessa produção é, par droît de conquête, o eterno Lupicínio Rodrigues, imbatível no gênero. É nesse espaço da cultura popular que encontramos obras em que se fixaram expressões como “dor de cotovelo” e “dor de corno”, e conceitos como o de “cornitude” (gênero lítero-musical), todos a discorrer sobre os males das paixões.

É de Caetano Veloso um dos clássicos no gênero, Dor de Cotovelo. Seus primeiros versos nos dizem:

O ciúme dói nos cotovelos
Na raiz dos cabelos
Gela a sola dos pés
Faz os músculos ficarem moles
E o estômago vão
E sem fome
Dói da flor da pele ao pó do osso
Rói do cóccix até o pescoço.
Para terminar, do grande mestre Lupicínio Rodrigues, Vingança, que bem poderia passar por uma homenagem a Medeia (fig. abaixo, Mucha, Praha), a fada-madrinha de todos os que mataram, matam e matarão por paixão:

Eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que lhe encontraram chorando , bebendo,
Na mesa de um bar
E que quando os amigos do peito
Por mim perguntaram
Um soluço cortou sua voz
Não lhe deixou falar
Ai, mas eu gostei tanto
Tanto quando me contaram
Que tive mesmo que fazer esforço
Pra ninguém notar

Mas enquanto houver força em meu peito
Eu não quero mais nada
Só vingança, vingança, vingança
Aso santos clamar
Você há de rolar como as pedras
Que rolam na estrada
Sem ter nunca um cantinho de seu
Pra poder descansar.