sexta-feira, 30 de agosto de 2019

PERMANÊNCIA DA MITOLOGIA GREGA.


UNIVERSIDADE  DE  ATENAS ( FRONTÃO )

A Grécia nos deixou uma vasta herança que se confunde com toda a cultura ocidental: sua arquitetura, sua escultura, seus elementos linguísticos, sua busca de perfeição e equilíbrio na arte, a loucura de seus heróis, a amoralidade e a crueldade dos seus deuses, suas escolas de filosofia, suas receitas políticas e científicas, um imenso legado, enfim, que está presente em todos os campos do conhecimento humano e também na vida do homem comum em sua vida diária.

Quantas palavras, oriundas da mitologia grega, estão nos nossos dicionários? De um levantamento começado e abandonado, retive algumas, umas muito conhecidas e usadas, outras nem tanto e umas poucas jamais as vi empregadas por alguém. Dentre as conhecidas, destaco, por exemplo, eólico, afrodisíaco, ambrosia, selênio, anfitrião, museu, uranografia, titânio, ninfa, hélio, erótico, apolíneo, atlas, carisma, atropina, bacanal, momo, narcisista, olímpico, nióbio, nano, sibilino, satírico, psique, hermético, odisseia, iridiscente, crônico, pitonisa, hipnose, hermafrodito, ciclópico, quimera. Os nossos dicionaristas, por exemplo, com base em Tântalo, um dos grandes criminosos da mitologia grega, registram o verbo tantalizar (torturar, prometer e não cumprir etc.).

 RIO  ESTIGE , TÁRTARO , 1861  ( G. DORÉ )

É de se lembrar que os grandes criminosos da mitologia grega que estão no Tártaro (a camada mais profunda do Hades, o Inferno grego) lá permanecerão até o final dos tempos submetidos a penas terríveis. Tais penas apresentam uma característica cruel: o criminoso ficará preso a situações absurdas que o obrigarão a repetir eternamente um gesto, um suplício que não termina nunca. Nenhuma possibilidade de mudança, de transformação, de mudança. As Danaides, por exemplo, lá estão no Tártaro a encher de água para todo o sempre toneis sem fundo ou, segundo outros, a carregar água numa peneira de um lado para outro. Não foi por outra razão que Platão interpretou este suplício como uma entrega insaciável do ser humano a paixões eternamente insatisfeitas. 

SÍSIFO , 1920 ( FRANZ VON STUCK )
Algo semelhante ocorre com Sísifo, o mais astuto e inescrupuloso dos mortais, que tentou enganar os deuses. Está condenado, até o final dos tempos, a rolar uma imensa pedra montanha acima na esperança de um dia, quem sabe, fazê-la atingir a outra vertente, livrando-se da pena. Mas tal não acontece, as forças lhe faltam sempre que ele está quase conseguindo realizar o seu intento. Terá o nosso herói que recomeçar a sua obrigação diariamente, que há de durar até o final dos tempos. Sísifo: uma imagem da condição humana? Essa, sem dúvida a razão pela qual Albert Camus o utilizou (Le Mythe de Sysiphe) para ilustrar as suas teses sobre a filosofia do absurdo. O absurdo de uma existência desprovida de sentido e de transcendência, num mundo ininteligível, que requer sempre nosso esforço.

É pelos mitos das várias tradições que o ser humano pode iluminar e compreender melhor o seu presente. Ou seja, diacronicamente ir a eles, no passado distante, trazê-los para o presente e, com eles, sincronicamente, explicar melhor o que acontece, sobretudo com relação à sua conduta e às daqueles com os quais convive. Todo mito oferece, em última instância, sob uma forma alegórica, explicações do inexplicável. Este entendimento se fez presente quando, por exemplo, os nossos cientistas, bem assessorados, não há dúvida, recorreram ao nome do desditoso e orgulhoso Tântalo para designar um metal recentemente descoberto.

Com efeito, por sua grande inércia, o tântalo logo se tornou um metal que está no centro da mais sangrenta guerra civil de que se tem notícia nos tempos modernos, na República do Congo. O tântalo, chamado também de ouro azul, é imune à corrosão e entra na confecção de dispositivos eletrônicos portáteis. Por essa razão, é considerado como um dos metais mais importantes até hoje descobertos sob o ponto de vista científico, industrial, comercial e estratégico. Por trás da guerra civil no Congo, onde já morreram cerca de cinco milhões de pessoas, sob o silêncio da grande imprensa mundial, estão as grandes potências estrangeiras de sempre, poderosas multinacionais e grupos regionais. Fica, então, a pergunta: por qual razão se deu o nome de tântalo a esse metal?
O TORMENTO DE TÂNTALO , 1731
( BERNARD PICART )
Tântalo, como está acima, foi condenado a viver até o final dos tempos no Tártaro, submerso até o pescoço, submetido ao suplício da fome e da sede. Os alimentos e a água estão ao alcance de suas mãos. Quando ele estende a mão para pegá-los ou para saciar a sua sede, tudo lhe escapa, inexplicavelmente. Mas Tântalo, embora sofrendo eternamente, não morre. Por sua grande capacidade de sobreviver deste modo é que a ciência moderna lhe prestou a tão significativa homenagem, dando seu nome a esse metal absolutamente imune à corrosão.   
   
MEDUSA  (G.L. BERNINI, 1598-1680)
Os nossos dicionaristas bem poderiam, numa próxima revisão que fizerem, indo à mitologia de várias tradições incluir no nosso léxico, por exemplo, honrando a monstruosa  Medusa, o verbo medusar. Os franceses já o registram desde o século XIX, méduser, com o sentido de estuporar, assombrar, paralisar. Poderíamos criar, para gente mais interessada em cultura, obviamente, o adjetivo sisífico para designar tarefas que, embora não o sejam, possam parecer sem sentido ou inúteis, um trabalho sísifico. Registrar um adjetivo com base no nome das Danaides, danáidico, talvez, que significasse um trabalho que, executado, só nos causa frustração, pois nenhum resultado é obtido. 

Para dar um certo ar cultural a um personagem que tem papel importante no mundo da homossexualidade, tão infestado hoje de termos anglo-americanos, poderíamos, com a inestimável colaboração da mitologia grega, incluir no nosso léxico a palavra catamita. A língua inglesa já a registra. Lá está no Webster: catamite: a boy kept for pederasty. Explico-me: os latinos, conforme está no Dicionário Ilustrado Latim-Francês, de Félix Gaffiot, deram o nome de Catamitus a Ganimedes atribuindo-lhe o significado, como está em Plínio e Cícero, de homme debauché, mignon. 


GANIMEDES
 (P.P.RUBENS, 1577-1640)
Ganimedes foi um príncipe troiano, raptado por Zeus na forma de uma águia e levado ao Olimpo para ser não só seu escravo sexual como para servir na nobre função de escanção (o que serve o vinho) dos deuses nas festas do Olimpo. Inflamado pela beleza do jovem, sobretudo pelas suas esplêndidas coxas, como disse o poeta, Zeus o presenteou com um galo, um anel e um par de asas. O primeiro, ave fálica, afasta as trevas, anunciando a aurora; o segundo é um emblema de totalidade; as asas, símbolos de liberdade e de ascensão espiritual.


O mito de Ganimedes, nome que lembra o jorro do vinho, era muito popular na Grécia antiga e em Roma. A história foi muito usada para justificar a prática de homens adultos tomarem como amantes jovens machos de grande beleza. Foi durante a Idade Média que o nome Ganimedes tornou-se equivalente a homossexual. O banquete, entre os antigos gregos, era realizado em muitas ocasiões, como festa de casamento, como cerimônia fúnebre e como evento social e cultural. Neste último, o banque, de modo especial, se integrou à filosofia através de Platão: uma reunião durante a qual os convidados bebiam vinho e sobretudo conversavam sobre variados temas artísticos e filosóficos. Este banquete era chamado de symposiom (posis, em grego, é ação de beber, gole de bebida), sendo presidido por um symposiarkhes (simposiarca), encarregado de manter as conversas animadas, dosando, para isso, o teor alcoólico do vinho distribuído entre os convivas. 

DIONISO , MÁRMORE ANTIGO
O vinho, enquanto “sangue” da vinha nos remete a uma ideia de princípio vital considerado sob o ponto de vista espiritual, isto é, da totalidade. Assim como o sangue, através da circulação arterial, energiza os órgãos do corpo, fazendo-os funcionar corretamente em benefício do todo, assim o vinho, bebida da imortalidade, leva à transcendência do individual em direção do coletivo, da humanidade. Astrologicamente, não podemos esquecer que Urano, planeta regente do signo de Aquário, se exalta em Escorpião, signo no qual “vive” Dioniso, o deus  inventor do vinho. Aliás, o vinho, em todas as tradições, sempre teve um valor cultural, muito superior ao da cerveja, favorecendo aqueles que sabem consumi-lo numa forma de convívio inteligente e culto. 



É nesta perspectiva que se coloca a obra (diálogos) de Platão, de modo especial o seu Symposiom, O Banquete, em português, que tem por cenário uma reunião patrocinada pelo poeta Agatho, da qual participam os seus amigos. Nessa reunião são abordados temas referentes ao amor à ciência e ao belo. Cada um dos convivas faz um elogio a ambos os temas, tomando Sócrates depois a palavra para fazer uma reflexão aos belos corpos, às belas almas e à beleza de um modo geral, encerrando-a com uma louvação à vida espiritual superior.  

O meu destaque vai neste trabalho para os temas míticos. Obrigo-me, porém, antes a fixar melhor o que entendo por mitologia. Como o próprio nome sugere, mitologia é um conjunto de mitos. Mitos são relatos fantásticos de tradição oral, depois registrados por escrito, geralmente protagonizados por seres que encarnam, sob forma simbólica, as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana. São também lendas, fábulas, narrativas dos tempos heroicos encontrados em todas as culturas, que sempre guardam um fundo de verdade. O mito, porém, ressalte-se, não é grego nem pertence a uma cultura específica. Ele existe desde sempre, nasceu com o homem, aparecendo em todas as culturas e sendo apresentado sob variadíssimas formas.

Até hoje, sentimos a presença dos deuses e heróis gregos como parte de nossos pensamentos e anseios. Estudiosos, desde a antiguidade, e modernamente os terapeutas da mente, apoderaram-se dos mitos, esmiuçaram seu simbolismo e, principalmente, suas implicações psicológicas. Criaram, por exemplo, o conceito de arquétipo e abriram a possibilidade da percepção das relações entre a vida consciente e inconsciente do homem. Para as correntes junguianas, por exemplo, arquétipo é o conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade, evidenciável nos mitos e lendas de um povo ou no imaginário individual, especialmente em sonhos, delírios, manifestações artísticas etc. 

Nesta linha de pensamento, o inconsciente coletivo é parte do inconsciente pessoal e contém ideias inatas ou a tendência a organizar a experiência vivida em padrões predeterminados, comuns a todos os homens. Não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. O conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar.

Esse sistema psíquico, de caráter coletivo, não pessoal, coexiste com o chamado inconsciente pessoal. Ele não se desenvolveu individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquetípicas, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência.  O mito é, pois, uma narrativa que explica as causas primeiras (cosmogonias e teogonias) e relata como uma realidade chega à existência.  

É como diz Fernando Pessoa, em Ulisses:

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo-
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
FERNANDO  PESSOA

Este eu aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos creou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Embaixo, a vida, metade
De nada, morre.


PROMETEU (NICOLAS-SÉBASTIEN ADAM, 1705-1778)

Das várias mitologias que penetraram, teceram e permearam a cultura ocidental, a grega é, sem dúvida alguma, a mais notável. E isto apesar da apropriação indevida que muitos, já na antiguidade, dela fizeram. Platão é um conhecido desfigurador de mitos, como se sabe. Utilizou ao todo dezessete deles, modificando-os para que coubessem nos seus argumentos. Um dos exemplos mais notáveis do que aqui afirmo foi o que ele fez com o mito de Prometeu.

Ao longo dos séculos, desde a antiguidade, sobretudo para fins econômicos e políticos, certos filósofos, escritores, poetas, músicos e, mais recentemente, muitos roteiristas que escrevem argumentos para o cinema, descaracterizaram-nos, distorcendo-os e rebaixando-os à vontade, seja por ignorância ou por má-fé, com a finalidade de manipular a mente de leitores e de espectadores, no geral, totalmente desatentos e desinformados.

GUERRA  NAS  ESTRELAS
Um dos exemplos mais interessantes do que está acima foi o que ocorreu com um dos maiores blockbusters do cinema americano de todos os tempos, Guerra nas Estrelas (Stars War), dirigido por George Lucas. Sabemos que este diretor se inspirou bastante nas ideias de Joseph Campbell para realizar principalmente os filmes IV, V e VI da série que teve início na década de 1970 para se transformar num negócio de 30 bilhões de dólares. Ao que consta, Campbell, durante meses, hospedou-se no
SKYWALKER  RANCH
rancho de Lucas, o Skaywalker Ranch, “alimentado-o” (ele e a sua equipe) de suas ideias sobre a mitologia. Um dos mais perversos objetivos deste filme foi, para os mais atentos, é claro, o de dar um substrato mítico ao Projeto Guerra nas Estrelas, para transformá-lo em mass communication, projeto criado originalmente no governo Reagan (1983) com a finalidade de manter um estado de beligerância permanente, a chamada Guerra Fria, contra a antiga União Soviética. O objetivo desse projeto era o de criar um sofisticado arsenal, que ficaria na órbita da Terra, a fim de destruir, com o uso de canhões lase
l, qualquer míssil balístico que viesse a ser lançado contra os Estados Unidos e seus aliados. Dentro e fora dos USA, apesar de todo o seu sucesso editorial, como se sabe, as ideias e pesquisas de Campbell, na área da mitologia, sempre foram  muito contestadas.   
  
AS  GEÓRGICAS
Um dos casos que exemplifica notavelmente o que acabo de afirmar foi que aconteceu com o mito referente a Orfeu. A história trágica do cantor trácio com a jovem Eurídice, depois dos textos de Virgílio (As Geórgicas) e de Ovídio (Metamorfoses), deu origem a uma grande tradição literária, artística e musical que se valeu do tema. A maior parte dos artistas que se serviu do mito o deturpou, tratando-o ingênua ou negligentemente
METAMORFOSES
sem saber do que ele significava realmente, embora muitos tivessem obtido grande sucesso de crítica e de público. A maior parte dos artistas esvaziou o mito do que ele tinha de mais importante, o seu caráter político-social, uma força reacionária, originária de um mundo aristocrático, apolíneo, que procurou se opor de modo inglório ao dionisíaco. 

OFFENBACH
Dentre as obras mais importantes e aclamadas sobre Orfeu, que nem por isso deixaram de ser falsas sob o viés de que falamos, muitas amplamente mais conhecidas, podemos citar as óperas de Monteverdi, Gluck, Haydn, Offenbach, dramas coreográficos e balés diversos, como os de Angelo Pliciano, de Lope de Vega etc. Nas artes plásticas, podemos apontar Brueguel, Tintoreto, Poussin, Delacroix etc. No cinema, os filmes de Jean Cocteau e de Marcel Camus. 

Para se fixar melhor o que está acima, é preciso lembrar que o libreto da ópera de Monteverdi foi escrito por Alessandro Striggio, à época, início do séc. XVII, um jovem advogado, que ingressara na carreira diplomática, a serviço do duque Vincenzo Gonzaga, de Mantova. Para escrever o libreto, Striggio se valeu principalmente, além de outras fontes, das Metamorfoses de Ovídio, livros 10 e 11, e do livro quarto das Geórgicas, de Virgílio. 
    
RETRATO DE MONTEVERDI
( B. STROZZI , 1640 )
O teatro musical que se fazia no final do Renascimento guardava ainda uma certa influência declamatória do antigo teatro grego (tragédia). Com as modificações introduzidas por Claudio Monteverdi, ornamentação musical mais elaborada, polifonia mais sofisticada, diversificação de técnicas e de performances instrumentais, introdução do bel canto, ficou aberto o caminho para a fixação do Barroco, como um novo gênero musical. O Orfeo de Monteverdi é, por isso, considerado como uma das últimas peças do Renascimento e a primeira de um gênero, então chamado de dramma per musica ou favola in musica, que receberia depois o nome de ópera, opera seria, no alto Barroco.

Quanto ao libreto de Striggio, a coisa vai mais ou menos bem até o quarto ato, seguindo o mito grego. No último ato, porém, tudo desanda. No mito, Orfeu, depois de ter tocado o coração de Perséfone (Proserpina para os latinos), a rainha do Inferno, com a sua história, recebeu permissão de Plutão (Hades) para levar Eurídice de volta à vida, ele caminhando à frente dela. Ele só poderia olhá-la quando ambos estivessem fora dos territórios infernais. Entretanto, tomado por invencível pothos (saudade), Orfeu voltou-se para vê-la, perdendo-a então definitivamente. Ao sair do Inferno, só e acabrunhado, depois de ter perdido Eurídice, renegou o mundo feminino. O final já é conhecido: nosso poeta-cantor foi estraçalhado pelas mênades, as sacerdotisas de Dioniso. 


ORFEU , MARC  CHAGALL , 1887 - 1985 )

Alessandro Striggio, evidentemente, adaptou o mito ao gosto da época, isto é, aos círculos elitistas de Mantova, pois não “ficaria bem” que um dramatic entertainment como era Orfeu terminasse dessa maneira tão chocante. O que Striggio nos descreve é que Orfeu, consumido pela dor, foi levado para os céus por seu pai Apolo (no mito, o poeta é filho de Calíope, a mais importante das Musas, e o do deus-rio Eagro; foi o machismo da religião grega, quando o Orfismo se tornou uma importante seita religiosa, que lhe deu Apolo como pai). Muita gente até hoje, principalmente músicos, ignorando toda a complexidade da crônica órfica, principalmente sob o ponto de vista histórico e político, aceita passivamente o “embelezamento” ou o “enobrecimento”, de tendência espiritualizante, do nosso herói mítico.   

ILUSTRAÇÃO
ARTHUR  RACKHAM, 1867 - 1985 )
Durante a Idade Média, na Europa, os mitos utilizados por artistas vão dizer respeito mais diretamente à mitologia celta (Tristão e Isolda, que tão bem explora a fatalidade da paixão), riquíssima, que possui muitos elementos trazidos do Oriente através de povos árabes, elementos esses quase sempre originários da Índia ou do Irã. Devemos considerar também a mitologia nórdica, em especial O anel dos Nibelungos, tema aproveitado por Richard Wagner. Poderíamos citar também vários outros exemplos, como os contos que mais tarde foram transformados, nos chamados Contos de Fadas, tão ricos, em arquétipos e que grandes linguistas, pedagogos e principalmente psicólogos estudam e usam em seus trabalhos.

Há arquétipos facilmente reconhecíveis nas Canções de Gesta e nas Canções de Amor medievais, ligadas ao "maravilhoso", ao "fantástico". Arquétipos que mudam, é claro, adaptando-se-os a hábitos e costumes de diferentes épocas e lugares. Assim temos, por exemplo, fazendo parte de muitas histórias onde exercem papéis e funções diferentes, o rouxinol, a madressilva, a cotovia, os dragões, as fadas, a fada-madrinha, a madrasta, as sereias, os ventos, os mares, os amuletos, os talismãs, os oráculos, o uso simbólico dos números, o conflito entre o amor e o gosto da aventura e muito, muito mais.


CANÇÃO  DE  GESTA , ILUMINURA

Quem olha dentro da água, o mar, pode ver a sua própria imagem ou seres vivos, peixes, possivelmente inofensivos, habitantes das suas profundezas. Mas como a mente humana é tão perturbada, tão “mal-assombrada”, não temos porque nos espantar se pessoas  nele “sentem” a presença de seres ameaçadores, terríveis. Trata-se de seres aquáticos de um tipo especial. Às vezes, o pescador apanha uma ninfa em sua rede, um peixe feminino, semi-humano. Ninfas são criaturas fascinantes:

A meias ela o atraía
A meias ele se dava
E nunca mais o encontraram.  (Goethe, Balada)

A sereia é um estágio ainda mais instintivo de um ser mágico feminino, que designamos pelo nome de anima. Também podem ser ondinas, melusinas, ninfas dos bosques etc...

Sabemos que, embora fosse proibido, eruditos leigos ou religiosos estudavam textos gregos durante a Idade Média. Mas é a partir da Renascença que a influência grega se faz sentir mais diretamente e com força cada vez maior. Os humanistas franceses do século XVI se inspiraram na Antiguidade (língua, doçura de viver, sabedoria, a
COLÉGIO  DE  FRANÇA , PARIS
cultura chamada humanitas, preocupação global com o corpo, harmonia, lógica, tendências confusas em direção da ordem...), enfim, toda uma filosofia de vida. O grande Francisco I° vai incentivar estes elãs e facilitar sua realização, inclusive criando o Colégio de Leitores Reais, atual Colégio de França (cujos professores eram encarregados de ensinar o latim, o grego e o hebreu), e abrindo sua biblioteca aos humanistas e a enriquecendo com manuscritos gregos. Assim, os textos antigos encontraram meios preciosos de difusão.

Artes plásticas, pintura e escultura, sem esquecermos arquitetura (os castelos em suas concepções gerais e seus elementos decorativos), inspiraram-se também em modelos gregos. Há um intercâmbio intenso com a Itália, que já há séculos admirava e
PHILOMÈLE  OU  ROUXINOL
copiava a perfeição grega. Esta presença grega pode ser percebida em citações diretas, referências a deuses, ninfas, musas, heróis, filósofos, aspectos os mais variados da mitologia, uso de nomes que encerram significados que enriquecem o texto. Ouso mesmo dizer que, desconhecendo estes significados, alguns textos permanecem incompreendidos. Por exemplo: Philomèle é o rouxinol, pássaro da noite, que em seus cantos chora a morte do filho; Aurora é a deusa que abre as portas do céu ao carro do Sol. 

Do século XVI citarei com destaque Marot, Rabelais, Du Bellay¹, Ronsard² e Montaigne, poetas e/ou filósofos. Mas é de se deixar bem claro que não só as pessoas mais letradas e cultas faziam sérios estudos helenísticos. Pessoas pertencentes às camadas mais privilegiadas econômica e socialmente também se dedicavam a esses estudos, ainda que não "profissionais" como aqueles.  

 1 - Feliz quem como Ulisses...
DU  BELLAY

Feliz quem, como Ulisses, fez uma bela viagem,
Ou como um certo alguém que conquistou o tosão, 
E depois voltou cheio de experiência e razão,
Viver entre os seus pelo resto de sua vida.(......)


2 - Combate entre Deuses e Gigantes, A floresta de Gasine (floresta da Arcádia onde Hércules matou um porco do mato), O amor picado por uma abelha (além das citações diretas, o poeta faz um estudo de ritmo, sons e ambientação baseado em Anacreonte).

O século XVII, lembremos, foi o da grandeza, da ordem racional e estável, da autoridade, da razão lúcida, enfim do classicismo, representa o auge da influência helênica. Algumas citações: o racionalismo de Descartes, La Bruyère (Philémon, Iphis), Fénélon; Telêmaco é o que combate de longe, i.é, com armas de arremesso; Anfitrite (deusa do mar, filha de Oceano, esposa de Poseidon), La Fontaine (3) e, principalmente, Molière (Alcmenes, Anfitrião, Cleanto ou Cleantes, Harpagon), Corneille (Medeia, Édipo, Psiquê, Polyeucte (a muito desejada), Nicomedes (o que planeja a vitória), Racine (Ifigênia, Fedra, Oenone, Teseu, Hipólito, Aricia e tantos mais). Na tragédia temos violência x fraqueza, lucidez x cegueira, orgulho x humilhação, a fatalidade da paixão, a dignidade, a verdade humana eterna, o inconsciente coletivo e seus arquétipos.

LA  FONTAINE

3 - Amores de Psiquê  (epicurista)

Amo a diversão, o amor, os livros, a música,
A cidade e o campo, enfim tudo; não há nada
Que não me seja um soberano bem,
Nem mesmo o sombrio prazer de um coração melancólico.(......)

O século XVIII é uma continuação dos séculos anteriores ao exacerbar a paixão pelas ideias, pela filosofia, pelas ciências, pela confiança na razão humana, pelo exame crítico de textos sagrados diversos, pelo estudo dos astros, dos fenômenos naturais, pela política, pela economia etc. Seus escritores, como não poderia deixar de ser, vão também fazer referências diretas ou indiretas à cultura grega, como Marivaux quando fala de Eufrosina (uma das

três Graças, a que dá forma às alegrias da alma), ou Montesquieu, em seu importante Espírito das leis, quando estuda a democracia, a monarquia, a aristocracia, o despotismo etc. e quando fala dos Trogloditas (habitantes das cavernas). Voltaire, por sua vez, nomeia um de seus personagens Micromégas (micrós, pequeno, megas, grande). Rousseau, em seu discurso sobre as ciências e as cortes analisa gregos e romanos, discorre sobre a justiça social e as instituições políticas.

Durante o Romantismo (que surge no final do século XVIII e atravessa grande período do século XIX, seguido pelo Realismo e, mais tarde, pelo Simbolismo) há uma volta à Idade Média, uma busca de religiões ou mitologias. Chateaubriand é fascinado pela Grécia, presente, sob todos os aspectos, em vários trechos de suas
MIRTA
obras. O mesmo se dá com Lamartine, Vigny, Hugo, Musset, Nerval, Balzac, Stendhal, G. Sand, só para citar alguns. Baudelaire, num de seus poemas, se dirige a Andrômaca, fala de Heitor, de Citera (ilha consagrada a Afrodite), da mirta (planta de Afrodite) e assim por diante. Não esqueçamos que em todos os últimos séculos citados pintores, escultores e músicos também realizaram obras inspiradas em temas e personagens da mitologia grega.

ORFEU
No século XX não poderia ser diferente; o teatro e o cinema já estão muito invadidos pelo universo grego. É o caso, por exemplo, de Jean Cocteau (Orfeu), de Cacá Diegues (Orfeu do Carnaval), de Marcel Camus (Orfeu Negro) e de muitos outros cineastas que utilizaram fontes gregas, como o fizeram também muitos escritores. Sartre (Les mouches), Anouilh (Antígona), Giraudoux (Electra, Anfitrião), Albert Camus (O mito de Sísifo). Ulisses, por exemplo, ganhou vida através de Kirk Douglas. Brad Pitt, num filme baseado em Homero, foi parar em Tróia. Hércules é o personagem principal de The Rock, filme de 2014, de Brett Ratner etc., etc., etc....  






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