sexta-feira, 8 de julho de 2011

À MARGEM DO AMOR CORTÊS


Parece estar hoje suficientemente provado que o século XII marcou, na Provença, o apogeu do trovadorismo e do amor cortês graças, em grande parte, à poderosa ação que a Igreja desenvolveu sobre a sociedade feudal a partir dos fins do século X. Com efeito, deixando de lado as implicações se­cundárias, veremos que a princípio tal ação significou, por um lado, o reforço do poder espiritual sobre o temporal e, por outro, contribuiu para que fossem revigoradas as estruturas que os próprios senhores ameaçavam destruir à custa de guerras e disputas entre si.

Num outro plano, ver-se-á que esta influência da Igreja veio introduzir um novo elemento nos quadros da época — o importantíssimo papel que a mulher passará a desempenhar — elemento que se liga íntima e diretamente ao trovado­rismo e ao amor cortês, e dá margem, inclusive, ao aparecimento de uma instituição sui generis, as Cours d'Amour, assembleias femininas que legislaram sobre a matéria amorosa, rediscutiram a galanteria e consagraram o adultério.


Extensa literatura já foi publicada sobre o assunto desde os autores que lhe são contemporâneos ou que de­le estão muito próximos até os que,o o estando, puderam, contudo através de um paciente trabalho de pesquisa, levan­tar o véu que escondia este suposto período de trevas. Temos assim os romances de Chrétien de Troyes, as poesias de Ber­nard de Ventadour, o catecismo do amor cortês, De Arte Amandi, do célebre André Le Chapelain, as informações de Jehan de Nostredame, irmão do famoso astrólogo Nostradamus, Stendhal, en­tre as fontes mais antigas, e Gaston Paris, Marc Bloch, Faral, Gustave Cohen, Belperron, A. Jeanroy como os estudiosos moder­nos. 

O fato é que, examinados os documentos, confirmados uns, desprezados outros, com uma descoberta sensacional de quando em vez, como é o caso de De Arte Amandi, que só saiu do pó recentemente, não cabe dúvida que no século XII a mulher ganha o primeiro plano na sociedade feudal e, dos meados desse século em diante, tornar-se-á a inspiração dos trovadores e o ídolo dos cavaleiros, ideal divinizado que a todos domina e a quem se há de prestar obediência e respeito.

A mulher até esse século ocupara uma posição social bastante inferior, sob o jugo férreo do macho, que a man­tinha encerrada no âmbito familiar, onde não havia lugar para outras manifestações poéticas senão as das canções de gesta, do período heroico da cavalaria, eivadas de violência e brutalidade. Nada mais coerente, todavia, se considerarmos que o casamento até então se resumia a um contrato do qual a mulher não participava, acerto entre senhores, que dispunham livremente seu corpo e da sua vontade.


Ainda que se vislumbrassem algumas alterações, a atitude da Igreja era severíssima com relação às mulheres: “soberana peste”, “porta do inferno”, “arma do diabo”, “sentinela avançada do inferno”, são nomes pelos quais, dentre muitos ou­tros, os padres da Igreja as designavam. O mesmo se poderá di­zer dos trovadores (Guillaume IX, Jaufré Rudel, por exemplo) que ainda no século XII as tratavam com grosseria e insolência tais que nos espantamos hoje do vocabulário empregado. Mas, jus­tiça seja feita, o próprio Guillaume IX, o debochado e excomungado duque da Aquitânia, já no segundo grupo das suas canções mostra-nos que também podia haver decência e correção, embora as suas pretensões estivessem bem longe do amor platônico e casto que a cortesia impunha. ­


Com o correr do tempo, a Igreja começou, pois, a intervir no sentido de tolher os abusos dos senhores feudais, cujo comportamento não só contrariava os preceitos do Cristia­nismo como também os levaria à própria destruição. Isto por­que, durante boa parte da Idade Média o direito de guerra privada foi considerado como inviolável pelo poder civil e pela mentalidade em geral. A paz, entre esses senhores, oferecia dificuldades cada vez maiores para ser concretizada. Urgia, assim, que se tomassem medidas práticas, leis, rituais, amea­ças com o inferno, condenações, tudo no sentido de assegurá­-la. É certo que a primeira tentativa já se fizera, com o Concílio de Charroux, em 989, quando a Igreja lançou o seu anátema contra aqueles que entrassem à força numa igreja e dela levassem algo, contra os fortes que atacassem os fracos, contra o roubo, contra a violência e contra a rapinagem.


Como se vê, eram noções novas, que o mundo pa­gão não conhecera, interdições nem sempre respeitadas, mas sempre válidas para impor sanções aos que transgredissem na medida em que o poder espiritual se consolidava. Em 1023, o Bispo de Beauvais obtém do Rei Roberto, o Piedoso, um juramento pe­lo qual não mais se maltratariam as mulheres, os padres e as crianças nem mais seriam violadas as casas dos camponeses e as igrejas. O concílio de Perpignan (Elna), a seguir, renova tais proibições e, em 1095, Urbano II, ao passar por Clermont, ratifica-as e impõe o fracionamento das guerras, de modo a reduzi-las no tempo.

Contudo, a situação carecia de medidas ainda mais práticas e eficazes. E a Igreja as toma, envolvendo a Cavalaria e encaminhando-a a uma ação além-fronteiras. Assim é que esta instituição, talvez a mais característica da Idade Média, transforma-se, aos poucos, democratiza-se, pois mesmo aqueles em condição socialmente inferior, servos, vassalos, podiam chegar até ela. Nul ne naît chevalier, Le moyen d' être anobli sans lettres est d'être fait chevalier, são má­ximas correntes na época.

Foi então que a Igreja mostrou à nobreza o caminho do Oriente: acabar com os infiéis e libertar o túmulo de Cristo. Vieram as Cruzadas, que, se não obtiveram o resultado almejado, contribuíram enormemente para impulsionar o comér­cio, tanto por terra como por mar, transformando a vida dos senhores feudais. As relações se intensificam, expedições e caravanas chegam à Síria, à Palestina, à África do Norte e até ao Mar Negro. Era o tempo das grandes feiras: Champagne, Brie, Ile-de-France. As estradas e os portos se animam; a influên­cia oriental não tarda a chegar, a luz asiática banha a Europa e lhe faz conhecer a vertigem do tráfico, os tecidos preciosos, os perfumes violentos, os costumes suntuosos. Acima de tudo, multiplica-se o gosto do risco e da aventura, a ânsia de movimento, que, na Idade Média, coexiste de modo chocante com o mais forte e profundo apego à terra.

Temos assim o quadro esboçado: reabilitada pela Igreja, responsável pela vida material do castelo, já que o homem estava longe, ent
regue a grandes empreendimentos religiosos e comerciais, a mulher adquire importância. Eis como o historiador Faral nos informa sobre o fato: a prosperidade material, acompanhada de uma nova cultura, tinha desenvolvido nas cortes, desde o fim do século XI, uma forma de vida social on­de o luxo, as festas e os jogos de espírito exigiam natural­mente a participação das mulheres. O exemplo veio, parece, do Midi: ele se propagou para o norte graças às expedições militares empreendidas em comum e graças às alianças matrimoniais.

A mulher conquista então na sociedade um lugar cada vez mais proeminente e respeitado. O homem se apercebeu instintivamente de que a mulher não mais poderia ser somente conquistada pelo di­reito da força; que ele a obteria muitas vezes pelo seu méri­to, em se fazendo valer; que ele devia agradar; que ele devia professar um respeito que lhe abrisse os caminhos do coração. Eis nascida a noção, eis nascido o sentimento que se chamará amor cortês: uma mística nova, uma exaltação de alma que, pelo amor à mulher, não tem outro sonho senão o de atingir as per­feições da virtude cavalheiresca e da pureza do coração, pelas quais o amante merecerá sua recompensa. E eis, ao mesmo tempo, a mulher transformada em juiz".

Esta posição da mulher no século XII é que vai explicar como nasceu na Idade Média a poesia amorosa dos trovadores e porque todas as manifestações poéticas,
Chansons d’ Amour, Tensons, Jeux Partis e os Romances de Chrétien de Troyes elegem o amor para tema. E mais: explicará porque trovadores e cavaleiros, num determinado momento histórico, se dirigem às mulheres para que elas, organizadas em assembleias, as Cours d'Amour, decidam e deem a última palavra sobre as questões do amor e da galanteria. ­

Eis, à guisa de informação, os preceitos e as regras do amor, conforme André Le Chapelain, em
De Arte Amandi os apresenta, de modo a codificar não só o amor cortês mas toda a poesia trovadoresca.


Preceitos (Livro 1 — Capítulo VII) — 1) Foge da avareza como de um flagelo perigoso e pratica, ao contrário, a prodigalidade; 2) Evita sempre a mentira; 3) Não sejas maledicente; 4) Não divulgues os segredos dos amantes; 5) Não tomes muitos confidentes para o teu amor; 6) Conserva-te puro para a tua amante; 7) Não tentes conscientemente tomar a amiga de outro; 8) Não procures o amor de uma mulher, se tiveres vergonha de desposar; 9) Sê sempre atencioso a todas as ordens das mulheres; 10) Procura sempre ser digno de pertencer à cavalaria do amor; 11) Em todas as circunstân­cias, mostra-te polido e cortês; 12) Entregando-te aos praze­res do amor, não ultrapasses o desejo de tua amante; 13) Quer dês ou recebas os prazeres do amor, observa sempre um certo pudor.


ARLETY E ALAIN CUNY - LES VISITEURS DU SOIR - MARCEL CARNÉ, 1942


Regras (Livro II — Capítulo VIII) — 1) O pretexto do casamento não é uma desculpa válida para o amor; 2) Quem não é ciumento não pode amar; 3) Ninguém pode ter duas ligações ao mesmo tempo; 4) O amor deve sempre diminuir ou aumentar; 5) Não há sabor algum naquilo que o amante obtém sem o assentimento de sua amante; 6) O homem só pode amar após a puberdade; 7) Pela morte de seu amante, o sobrevivente esperará dois anos; 8) Ninguém, sem suficiente razão, deve-se pri­var do objeto de seu amor; 9) Ninguém pode amar verdadeiramente sem ser levado pela esperança do amor; 10) O amor deserta sempre o domicílio da avareza; 11) Não convém amar uma dama da qual ter-se-ia vergonha de fazer mulher; 12) O amante ver­dadeiro não deseja outros beijos que aqueles de sua amante; 13) O amor pode raramente durar quando é muito divulgado;
14) Uma conquista fácil torna o amor sem valor, uma conquista di­fícil dá-lhe o preço; 15) Todo amante deve empalidecer na presença de sua amante; 16) À vista súbita de sua amante, o coração de um amante deve disparar; 17) O amor novo expulsa o a­mor antigo; 18) Só o mérito torna digno o amor; 19) Quando o amor diminui, enfraquece depressa, e raramente refloresce; 20) O amante está sempre temeroso; 21) O verdadeiro ciúme faz sempre o amor aumentar; 22) Uma suspeita sobre sua amante, ciúme e ardor de amar aumentam; 23) Não dorme nem come aquele que paixão de amor consome; 24) Todos os atos do amante terminam no pensamento da amante; 25) O amante verdadeiro não encontra nada de bom naquilo que não agrada à sua amante; 26) O amante não saberia nada recusar à sua amante; 27) O amante não pode fartar-se dos prazeres de sua amante; 28) A menor suspeita le­va o amante a imaginar o pior de sua amante; 29) Não ama verdadeiramente aquele que possui uma luxúria excessiva; 30) O amante verdadeiro está sempre absorto pela imagem constante de sua amante; 31) Nada impede a uma mulher de ser amada por dois ho­mens; nem a um homem de ser amado por duas mulheres.

Alguns filmes relacionados com o tema acima:

Lancelot du Lac (Robert Bresson), Robin and Marion (Dick Lester), Monty Python and the Holy Grail. Les visiteurs du Soir (Marcel Carné), A Walk with Love and Death (John Huston), Silvestre (João César Monteiro), A Fonte da Donzela (Ingmar Bergman).


Ver neste mesmo blog "A Princesa Imperfeita".