sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

MITOLOGIAS DO CÉU - MERCÚRIO (3)


HERMES E MAIA, SUA MÃE

    O culto do deus Hermes é certamente pré-helênico, remontando aos pelasgos (povo que ocupou a Grécia muito antes dos aqueus). O culto de Hermes também pode ser encontrado nos chamados Mistérios da Samotrácia, ilha do mar Egeu, ao largo da costa trácia, perto da Ásia Menor. Os trácios vieram em levas, depois dos
TIRÉSIAS
pelasgos, ocupando várias ilhas do Egeu, sendo eles os responsáveis pela introdução do culto dos Cabiros, no qual Hermes ocupou uma posição muito importante. Pouco visitada, a ilha da Samotrácia possui um museu importante, nele se encontrando várias esculturas, destacando-se dentre todas uma, a do vidente Tirésias, aquele que foi macho e fêmea, que conheceu os dois sexos, e que perdeu a visão por ter surpreendido a deusa Palas Athena banhando-se na fonte de Hipocrene. A pedido de Cáriclo, mãe de Tirésias, Athena remediou a situação: deu-lhe um cajado mágico, que o guiava como se tivesse a visão perfeita. Além disso, ao purificar os seus ouvidos, permitiu que passasse a interpretar o canto dos pássaros.  


MISTÉRIOS DA SAMOTRÁCIA
   A ligação de Hermes com os Cabiros ganha importância se
GNOMOS
lembrarmos que estes últimos eram chamados de "os subterrâneos”, pequenos seres, demônios do mundo ctônico, que tinham relação direta com vários ritos de fertilidade. Lembram os gnomos e os nibelungos de outras tradições. O grande santuário dos Cabiros ficava na Samotrácia. Há uma tradição que fixa em quatro (outras em oito) o número desses demônios, todos ligados a quatro divindades relacionadas diretamente com tesouros do mundo subterrâneo, Hefesto, Hades, Perséfone e Hermes. 


Associados a Hermes, a entidade divina que os ligava ao mundo da superfície, os Cabiros eram considerados como símbolos das forças
CABIROS
ocultas, da engenhosidade e do conhecimento de tesouros escondidos. A despeito de seu pequeno tamanho, dispunham de uma força fantástica. O seu grande interlocutor era o deus Hermes que, como divindade polymethis, vencia com certa facilidade a grande reserva  e mesmo a hostilidade que eles mantinham com relação ao mundo da superfície e às suas criaturas, os humanos de um modo especial. Os Cabiros possuíam poderes mágicos que só podiam ser vencidos pela astúcia. Era o deus Hermes o único que podia levá-los a disputar certos jogos enigmáticos; prendendo-os a esses jogos, tornando-os cada vez mais difíceis, Hermes conseguia mantê-los interessados, distraí-los. Um detalhe: os Cabiros não suportavam a luz do Sol, sendo momentaneamente transformados em pedra quando atingidos por um raio da luz solar. 



Como pequenas divindades do mundo subterrâneo, os Cabiros associavam-se analogicamente aos tesouros da vida subconsciente. Estes pequenos seres, por isso, sempre simbolizaram também para os gregos as forças obscuras que residiam nas profundezas dos seres humanos, um sinônimo de vida subconsciente. O caráter maléfico destas forças, devido à sua deletéria influência sobre a vida consciente, é descrito em vários mitos, não só no grego. De aspecto desagradável, os Cabiros são muito feios, envelhecidos precocemente, de estatura máxima equivalente à de uma criança de dois anos; muito ágeis, de prodigiosa força, podem aparecer e desaparecer com grande rapidez. Muitos têm a coluna deformada, são acentuadamente corcundas, e usam longas barbas; no geral, gostam das roupas escuras, de preferência o negro, o marrom e o cinza. No interior da terra, guardam zelosamente o ouro e os metais preciosos. Detentores de um grande saber e de um conhecimento bem superior ao dos humanos, só através de Hermes se dignam dispensar aos mortais avisados úteis conselhos. 

O lado escuro e imprevisível da personalidade desses pequenos seres (os estragos e danos que as pressões inconscientes causam à pretensa vida consciente) é representado pelo seu comportamento profundamente malicioso, irritado e provocativo. Vindas do mundo subterrâneo, ligadas às divindades ctônicas, essas pequenas
IMPERADOR AUGUSTO
criaturas podem tomar muitas vezes uma aparência monstruosa. Por sua extrema liberdade, irresponsabilidade e descomedimento, acabaram por personificar perigosas manifestações da vida inconsciente. Ao agir dessa maneira, revelam o “outro lado” da vida dos humanos. Conta-se que o imperador Augusto mandou erigir uma estátua em homenagem ao seu Cabiro, mandando nela colocar, à guisa de olhos, dois diamantes, porque, como dizia, ele guardava tudo o que ele sentia, ouvia e via. 


O cristianismo e outras tradições religiosas demonizarão esses pequenos seres, sendo comuns as imagens e esculturas em que um ser espiritual, um santo, um anjo, os esmaga com o pé. Quando, como disse, um desses seres é representado com uma deformidade (corcunda), ele não simboliza só o inconsciente, mas é visto como um erro da natureza, a representação de uma falta refletida no corpo físico de alguém.

Os mistérios da Samotrácia, como se pode concluir, foram sempre de natureza ctônica. Famosos, estes cultos chegaram a se igualar
HERÓDOTO
aos dos Mistérios de Eleusis, sendo conhecidas importantes figuras da cultura grega que neles procuraram iniciação, Heródoto, Lisandro (imperador de Esparta) e, ao que parece, Platão e Aristófanes, dentre outras. No reinado do imperador Felipe II, da Macedônia, os Mistérios da Samotrácia adquiriram grande importância, estendida até os últimos anos do império romano.


HERMES ITIFÁLICO
 Venerado nestes cultos juntamente com Hécate, chamada de Zerenthya, o deus Hermes, com o nome de Kadmylos, sob uma forma itifálica, representando a fertilidade, constituía com ela um par, honrados juntamente. Nestes Mistérios, Hermes era acompanhado por dois irmãos gêmeos, Dárdano e Iasion, em tudo semelhantes aos Dioscuros gregos (Castor e Polideuces) e aos Ashwins védicos, todos associados astrologicamente ao signo de Gêmeos.

Dárdano, o Audacioso, lembremos, aparece depois na mitologia grega com grande destaque, como filho de Zeus e de Electra, filha de Atlas. Dárdano reinou sobre a Tróada e aí construiu a sua capital, Troia. Iasion, na mitologia grega, ligou-se a Deméter, tendo inclusive ameaçado fisicamente  a deusa se seu amor não fosse por ela correspondido. Foi fulminado por Zeus por tamanha ousadia
PLUTO NO COLO DE IRENE
contra a mãe de Perséfone. Deméter, contudo, chegou a se unir sexualmente a Iasion, tendo nascido desse conluio amoroso Pluto, a personificação da riqueza. Pluto, ainda bastante jovem, uma criança, acompanhava a mãe, Deméter, e a irmã, Perséfone, carregando uma cornucópia nas mãos. Consta que Zeus o cegou para impedir que atendesse apenas aos bons.


Como nos Mistérios de Eleusis, a iniciação (myesis) do mystes (iniciado) era totalmente democrática e se compunha de duas fases. Na primeira, o iniciado, vestido de branco, recebia, numa espécie de gruta (anaktoron), símbolos secretos que representavam a união do céu e da terra, além de uma lamparina, sendo-lhe passada em torno da cintura uma faixa vermelha. A segunda fase, como em Eleusis, chama-se epopteia, literalmente contemplação. Não havia intervalo entre as duas fases, da primeira era possível passar logo à segunda. Os ritos eram certamente realizados à noite e tinham por objetivo levar o iniciado a um renascimento. 

SAMOTRÁCIA (RUÍNAS)
  
Grande ênfase nos Mistérios da Samotrácia era dada ao processo de purificação da vida psíquica. O símbolo maior desse processo era a lanterna, a lamparina, enquanto fonte de luz. Positivamente, a lanterna ilumina as trevas, estas sempre associadas aos perigos, à infelicidade, à morte, ao mundo invisível e ameaçador. Este poder, como se sabe, desde a origem dos tempos, sempre apareceu associado às lanternas que usam o óleo, cuja chama é sempre purificadora e protetora.

LAMPARINA
  
O óleo empregado nos ritos dos Mistérios da Samotrácia era o de 
oliva, que,  nos  países  mediterrâneos e do  oriente-próximo,  tanto
servia para a preparação de alimentos como para a iluminação. O óleo sempre foi considerado como um símbolo de uma força untuosa e fertilizante, de cor solar; gotas de óleo lançadas no sulco que o arado fazia na terra aumentavam a sua fertilidade. Na alquimia, o óleo, como se sabe, sempre desempenhou um papel importante, sendo considerado o alfa e o ômega da vida, e por isso usado em ritos de agregação e em ritos de separação. Neste sentido, o óleo representa um iter, levando-nos mercurianamente do nascimento à morte. Nos ritos de agregação e de separação o óleo sempre entrou obrigatoriamente. Lembro que os judeus, dentre os povos da antiguidade, incorporaram o uso do óleo às suas práticas religiosas; deixaram-nos no Antigo Testamento (Êxodo 30, 22-25), aliás, uma fórmula para a preparação do óleo para as unções sagradas ditada diretamente por Javé a Moisés.

É dos Mistérios da Samotrácia que parece vir a arte de interpretar as chamas das lanternas, a lampadomancia. Chamas que vacilam podem expor as pessoas a alguma infelicidade. Uma chama que sibila, que bruxoleia, que parece sempre prestes a se apagar, sem razão alguma, pode anunciar, por exemplo, um falecimento. Lembremos que o simbolismo da chama  sempre foi usado para representar  a vida. Desde a antiguidade, é sempre muito funesto que uma uma chama se apague por si mesma. 

HERMES PSICOPOMPO
   
 Pelo que se disse acima com relação à convivência de Hermes com os Cabiros, com relação ao seu papel nos Mistérios da Samotrácia e à  sua função de deus psicopompo (literalmente, transportador de almas) e pelas suas múltiplas atividades no mito grego já descritas, não podemos deixar de considerar a grande importância de Hermes quando pensamos na vida psíquica dos seres humanos. Na vida do ser humano não é o espiritual que aparece antes, mas o psíquico. É só através de Hermes que o ser humano pode libertar a sua vida psíquica, em cuja interioridade se aninham monstros como os mitos no-los descrevem. Libertá-la da pressão ou do domínio das várias entidades que lá vivem sem que as percebamos,  causadoras de muito mal-estar, de muito sofrimento,  inúmeras patologias.É nesse sentido que Hermes aparece como o grande opositor das forças irracionais que sempre lembram o informe, o abissal, o tenebroso, o caótico. 

Hermes é não só a divindade que pode nos pôr em contacto com os outros deuses (outros modelos de comportamento) como, consideradas as suas variadas características e habilidades, é o único guia capaz de nos conduzir quando nos aventuramos a penetrar na vida subconsciente. Hermes é, nesse sentido, o deus que alcança os pontos mais sensíveis da nossa vida psíquica. É ele também que poderá nos oferecer uma nova visão desses pontos, pondo-nos inclusive em contacto com patologias que exercem sobre nós um domínio inconsciente. É ele quem sabe interpretar os sinais, quem lhes dá um sentido, quem sabe estabelecer as correlações. Uma de suas máximas é “conhecer é libertar-se”. É Hermes aquele que pode iluminar a consciência do homem, ao lhe dar o sentimento que ele deve ter de sua existência e de seus atos.

Como Senhor das estradas, dono das pilastras de pedra que sinalizavam os limites das aldeias e das regiões, Hermes é aquele que fixa perímetros e fronteiras. Nesse sentido, é ele quem define os limites entre o conhecido e o desconhecido, e ele é por isso, analogicamente, quem estabelece os limites para além dos quais, para nós, começa o desconhecido. Ou seja, os limites entre o consciente e o subconsciente.

É nesta perspectiva que Hermes é a única divindade da mitologia grega que pode entrar em contacto com o nosso lado menos nobre, menos digno, mais escuro, sombrio, o nosso lado subterrâneo, sobre o qual temos normalmente muita dificuldade de falar ou, na verdade, que dele nada sabemos. Esta capacidade que Hermes tem decorre certamente da sua própria condição de mensageiro dos deuses, do seu lado menos “nobre”, menos “olímpico”, dos traços que definem o seu paradoxal caráter, cheio de ambiguidade. Com efeito, Hermes é o deus que nos permite a conquista da unidade do ser para logo fazer com que a percamos, sempre um dar e tirar simultâneos. Além do mais, Hermes não tem lugar definido na ordem olímpica, é um protetor, um auxiliar, um guia, um moço de recados, um embaixador plenipotenciário, uma divindade marginal diante da ordem olímpica, mas que dele precisa para se mostrar coerente. 

Há, em Homero, na Ilíada, uma passagem que, acredito, nos permite um melhor entendimento e confirmação do que aqui estou a expor sobre Hermes. Essa passagem é conhecida como Dolonia. A história começa quando Heitor, chefe dos troianos, pede um voluntário para espionar o acampamento dos gregos aqueus. Dólon (em grego, o nome tanto significa embuste, fraude, como arma escondida) se oferece para essa empreitada, que, segundo os critérios da timê (virtude, estima pública) e da “aretê” (consideração, honra pessoal) da vida heroica grega, nada tem de digna e heroica. O que Dólon se dispôs a realizar pede, ao contrário, malícia, astúcia, virtudes “negras”, anti-heroicas, e acima de tudo pedem sorte. Por isso, antes de partir, Dólon invoca a proteção de Hermes para que o deus o guie na ida e na volta. Já Ulisses (etimologicamente, em grego, irritação) e Diomedes (etimologicamente, em grego, inspirado por deus), herói da Etólia, que partiram do acampamento dos aqueus para uma missão bélica noturna, de características heroicas, pediram a proteção de Palas Athena. Ulisses e Diomedes surpreenderão Dólon e o matarão depois de saber onde estava acampado o rei da Trácia, Reso, que viera em socorro dos troianos, também morto por eles.   
 
ULISSES E DIOMEDES

  
O que nos chega da mais recuada história de Hermes é que ele foi primitivamente um sinalizador de caminhos, um indicador de limites. Melhorando o seu status, chegou à função de mensageiro e servidor dos deuses. Por essa razão, ganhou, dentre outros, o título de patrono de todos servos (astrologicamente, o Mercúrio virginiano). No exercício dessa atividade servil, Hermes é inegavelmente hábil, diligente, sabe executar todas as tarefas “indignas” como empregado qualificado que é. 

As artes de Hermes, nessa perspectiva, não são nobres ou indignas. Se aproximamos dele as divindades mais chegadas a  Zeus, Apolo,
PALAS ATHENA
Palas Athena, por exemplo, a diferença será notável. O primeiro é ensolarado, luminoso, harmonioso, musical, grandioso, tem sempre propostas que falam de vida superior, que apontam para um caminho que vai do racional ao espiritual, embora nem sempre, na prática, consiga realizar grande parte do que proclama ou do que dizem dele. A segunda é a deusa das acrópoles, das alturas, protetora de heróis, eficiente, virgem guerreira, inspiradora das artes e dos trabalhos práticos, símbolo da espiritualização progressiva, aclamada por seus ideais pacificadores, mas, no fundo, sempre vingativa, criadora de casos, irritadiça e envolvida em muitas disputas e combates. Além do mais, ambos muito complicados sexualmente. Evidentemente, Hermes não tem a dignidade de Apolo ou de Palas Athena. Ele é um empregado cuidadoso, aplicado, e, por outro lado, não faz a mínima questão de que o consideremos digno, distinto ou elegante.


APOLO
   É principalmente por esta razão que Hermes é a grande divindade das terapias da vida psíquica, que têm na palavra, como se sabe, o seu grande instrumento. Num processo terapêutico não lidamos com coisas bonitas, agradáveis, perfumadas ou luminosas. A única divindade que pode escarafunchar esse “lixo” (como os catadores, chamados carrinheiros, nas ruas dos nossos centros o fazem com o lixo urbano), por mais repugnante e vulgar que seja isso, é Hermes. É ele quem vai nos ajudar a catar no “lixo” psíquico das pessoas aquilo que poderá ser reciclado, trazido à vida de outro modo.  

Lembremos que no santuário médico de Epidauro de Asclépio, na
ASCLÉPIO
Grécia, toda a parte “técnica” das terapias que lá se praticavam, tanto física como psiquicamente, era hermesiana. O corpo era trabalhado em praças de esportes, ginásios, com ginástica rítmica e danças, hidroterapia, alimentação controlada etc. Quanto à mente e ao espírito, participação em grupos teatrais,  leituras poéticas, visitas a centros de arte etc. Mas acima de tudo a principal preocupação terapêutica da escola médica de Asclépio se centrava em processos que levavam a cura aos que a procuravam através da palavra. Curar a mente dos pacientes, uma cura que só podia ser obtida através da palavra para se obter a “metanoia”, a transformação dos sentimentos, dando-se também especial importância à nooterapia, uma reciclagem psíquica que abrangesse a mente e o corpo, o ser humano por inteiro. 


Fazia parte do conjunto das técnicas aplicadas em Epidauro, como via privilegiada de acesso à vida subconsciente, a chamada oniromancia, a interpretação dos sonhos enigmáticos. Aliás, há uma tradição que liga a origem do nome de Hermes à palavra hermeneus, intérprete, ou, de outro modo, aquele que faz compreender. Os sacerdotes-médicos de Epidauro recebiam um treinamento especial para decifrar os sonhos e assim vasculhar a
ESOPO
vida subconsciente dos que lá se internavam. É de se lembrar que no Hino homérico a Hermes encontramos uma clara referência à sua capacidade de lidar com sonhos: “esta engenhosa criança, este hábil planejador de artifícios, o perseguidor e capturador de gado, o pastor de sonhos, este cidadão da noite que espreita nos umbrais.” Esopo, o famoso fabulista grego do séc. VI aC, que sempre proclamou ter recebido o seu dom literário de Hermes, faz dele também uma divindade dos sonhos proféticos, da ginástica, das raízes comestíveis e da hospitalidade. 


Dentre as atividades “criminosas” de Hermes, destacamos o roubo sob todas as formas não violentas. O latrocínio, por exemplo, o roubo seguido de morte, não é de Hermes. São dele os crimes não violentos como o furto (inclusive alguns qualificados), a falsificação, o plágio, o estelionato, as fraudes em geral,  os crimes cometidos contra a honra de alguém, os  atualmente chamados crimes de “colarinho branco” (contra a ordem econômico-social), os crimes de responsabilidade, os crimes políticos (clientelismo) etc. Dessa esfera criminosa aproxima-se perigosamente a cleptomania (compulsão que leva alguém a roubar objetos, independentemente da sua necessidade e valor), prática hoje deslocada para a área médica como distúrbio psicológico. Do mesmo universo de Hermes faz parte a cleptofobia, o medo mórbido de alguém vir a roubar ou de de se tornar ladrão, de não pagar dívidas ou de pagá-las com dinheiro falso.

É deste mundo “criminoso” de Hermes (seu primeiro “ato público”, lembro, foi o roubo do gado de Apolo, como vimos) que sai uma de suas grandes virtudes, o furto psicológico, prática tão importante para a terapia do psiquismo, pois Hermes é a única divindade capaz de “roubar” aquilo que está guardado no nosso mundo subconsciente. Ele sabe como nele penetrar e dali retirar os tesouros que estão escondidos, às vezes em camadas muito profundas. Este ato é chamado de tomada de consciência, ou seja, trazer para o consciente aquilo que estava esquecido ou bloqueado de modo a permitir que tomemos conhecimento, vivenciemos ou compreendamos aspectos ou mesmo a totalidade do nosso mundo interior.  

No período helenístico da história grega, os atributos do filho de Maia foram ampliados. Hermes se tornou o deus dos disfarces,
CALÍMACO
conforme está em Calímaco (poeta, gramático e erudito grego dos sécs. IV-III aC). É neste período que se reforça a ideia de que Hermes é o deus do Logos e, como tal, intérprete da vontade divina, assumindo funções demiúrgicas, características que lhe foram atribuídas pelos estoicos, pelos gnósticos e neoplatônicos. 


Como terapeuta, Hermes, o nosso Mercúrio astrológico, é o responsável pela coordenação de todas as atividades que dizem respeito diretamente à saúde, ao bem-estar e à higidez dos seres humanos. É neste sentido Hermes a divindade que rege também, sob o ângulo astrológico, aquela parte da arte médica que procura a preservação da saúde e o estabelecimento de normas e preceitos para prevenir as doenças. É de sua responsabilidade inclusive o conjunto de condições ou hábitos que conduzam ao bem-estar, à limpeza e ao asseio. A Astrologia, por seu lado, não fará mais do que confirmar o que aqui se expõe quando pensamos na
MERCÚRIO ASTROLÓGICO
importância da sexta casa, que corresponde ao signo de Virgem, governado por Mercúrio. 


A nossa saúde depende em grande parte, senão totalmente, do que temos nesta casa, onde encontramos informações sobre nutrição, saúde, condições de trabalho, obrigações diárias e atenção corporal. Neste setor colhemos também informações sobre as nossas preocupações com as nossas limitações físicas, a atitude que temos para com o nosso corpo, a nossa maior ou menor capacidade de sobreviver bem. Mais: é através do que temos no referido setor que compreendemos a nossa capacidade de servir e as nossas relações profissionais cotidianas, informando-se mais através desse setor o modo pelo qual nos comunicamos com os nossos colaboradores e empregados.

Outra característica de Hermes, retirada da sua história, que pode nos ajudar a compreender melhor o Mercúrio astrológico, é que ele nunca teve necessidade de entrar em luta  com as outras divindades. Na mitologia grega,  são muito comuns os conflitos entre as divindades, sejam elas de qualquer nível ou dinastia, inclusive entre elas com heróis ou mortais, lutas de poder, ameaças, traições, conluios, complôs etc. Hermes é uma divindade que não  entra em disputas de poder com outras divindades. Estas observações sobre o comportamento do filho de Maia podem ser muito úteis, acredito, quando pensamos nos aspectos astrológicos formados por Mercúrio.