sábado, 5 de junho de 2021

O BRANCO


POMBA  DA  PAZ  (PABLO PICASSO, 1881-1973)


Em geral, as cores são símbolos afirmativos de iluminação. O branco tradicionalmente sempre foi usado para representar a luz, tornando-se por essa razão símbolo da pureza, da temperança, da verdade, da inocência, da castidade, da paz (pomba branca), da limpeza e, por extensão, do sagrado e do divino. Algumas vezes, porém, o branco pode possuir algumas conotações negativas, denotando luto, medo, covardia, rendição, esquecimento, frieza, vazio, morte (palidez da morte) conotações que, contudo, não chegam a invalidar o seu sentido positivo. 

Negativamente, é certo, podemos falar que deu branco quando nos esquecemos de alguma coisa ou que levantar a bandeira branca é entregar os pontos, render-se. Em branco é expressão que designa não se haver dormido (fiquei em branco a noite toda), não haver aprendido (passei em branco todos aqueles anos de estudo) ou nada comido (saí da mesa em branco, de estômago vazio). O adjetivo branquelo é pejorativo, indicando um indivíduo de pele clara e fracote, que deixa a desejar. Ficar branco de medo é expressão que equivale a amarelar, perdera coragem.

Em várias tradições, sonhos com cavalos brancos e pressentimentos da morte aparecem unidos. Lembremos ainda que na literatura fantástica os fantasmas são representados sob formas brancas ou vestidos de branco. Uma figura importante desse mundo fantástico na tradição europeia é a famosa Dame Blanche.

DAME BLANCHE
A Dame Blanche é uma aparição feminina vestida de branco que pertence à classe das fadas. Em alguns países europeus ela entra sobretudo em histórias tristes, como a que nos fala de uma Dama que vivia em torno do palácio dos Bourbons, na França, aparecendo sempre que um príncipe estava para morrer. Há uma história, narrada pelo político Malesherbes, sobre a famosa Dama. Ele nos conta que Luís XVI, no dia anterior ao de sua condenação à morte, lhe perguntara se ela, a Dame Blanche, não fora vista por alguém. 

O mesmo ocorre na Alemanha. Uma tradição alemã afirma igualmente que sempre que uma mulher vestida de branco varria as salas de palácios uma infelicidade se abatia sobre a família real. Assinalemos que o tema da Dama de Branco (1825) deu origem a uma famosa ópera de mesmo nome; foi composta por Boieldieu, inspirada num tema de Walter Scott, escritor inglês.

O branco, positivamente, é a cor da iniciação, do noviciado, usada pelo neófito ou pelo candidato (candidus é palavra latina que significa branco cintilante). Candidato, na Roma antiga, era o vestido de branco que se apresentava como aspirante à glória ou à imortalidade.  Nessa condição, o branco aparece nos ritos de passagem como o batismo, a confirmação (no catolicismo, sacramento administrado por um bispo ou por delegação papal, por um padre, através do qual a graça conferida ao cristão pelo batismo é fortalecida e aperfeiçoada; ratificação do batismo, crisma), o casamento, situações em que a cor se associa a estados de pureza, luminosos e alegres. 

Como cor da santidade, da espiritualidade, da verdade e da revelação, o branco foi usado pelos druidas, os sacerdotes celtas, e por outras classes sacerdotais, tanto no mundo cristão como não-cristão, este chamado pagão. Com idêntico sentido sagrado, o branco era usado também pelas vítimas sacrificiais. 

O branco, antítese do negro, é muitas vezes considerado como uma “não-cor” porque é uma mistura perfeita de todas cores do espectro luminoso. Os antigos egípcios, por exemplo, sempre procuraram envolver os seus mortos com um grande lençol branco (cor da divindade) para mostrar que a morte livrava a alma pura do seu invólucro carnal, perecível.

Participam do simbolismo do branco como emblemas da pureza, da castidade e da virtude, a maior parte dos símbolos usados nas várias civilizações, desde a antiguidade, símbolos como o das vestimentas dos comungantes, das noivas, feitos com tecidos de linho ou dos buquês de flores de laranja que eles carregam nas mãos, dos lírios que enfeitam os recintos sagrados, de objetos feitos com marfim etc.

É oportuno lembrar que, dentre as seis cores básicas três, o azul, o amarelo e o vermelho, são fundamentais. Três outras resultam da mistura de duas destas. O verde (azul mais amarelo), o laranja (vermelho mais amarelo) e o violeta (azul  mais vermelho). A síntese destas cores nos dá o branco. Não é por acaso, aliás, que todas as cores que ocupam um lugar privilegiado no simbolismo tradicional, desde os tempo mais remotos da  humanidade,  tiveram sempre o mesmo significado em todos os povos. 

A linguagem dessas cores, nesses povos, esteve sempre ligada ao mundo religioso, desde a antiga Índia, passando pela China, pelo Egito, pela Grécia, por Roma, alcançando a Idade Média e chegando aos tempos atuais, tudo como se pode constatar por uma análise mais cuidadosa dos Vedas, das pinturas dos templos egípcios e chineses, dos livros em zende do antigo Irã, dos vitrais das catedrais góticas envolvidos pelo branco etc.

Através dos sentimentos que nos despertam a antipatia e a simpatia dentre as muitas tonalidades de cores que esse mundo do passado nos revela, além de outras informações, é claro, podemos certamente chegar ao entendimento de como tudo isso vive magnificamente até hoje em nós.  

Nesse e noutros sentidos, a cor branca nos remete à dialética do Um e do Todo, sendo usada para designar a aparição da primeira luminosidade quando a noite deixa de ser noite. Dá-se, aliás, o nome de alba, alva, aurora, a essa primeira luz que antecede o aparecimento Sol. Alva ou alba era também o nome da comprida veste de pano branco usada pelos sacerdotes em muitas cerimônias religiosas. O mesmo nome era aplicado à túnica branca que os condenados à morte vestiam quando levados para o patíbulo.

EOS
Na mitologia hindu, é uma deusa branca que traz a aurora (claridade que aponta para o início da manhã antes do nascer do Sol) chamada Ushas ou Ahana, isto é A Iluminadora. Entre os gregos, é a deusa Eos (nome que etimologicamente significa brilhar), irmã de Hélio (O Sol) e de Selene (A Lua). Entre os romanos, a deusa tem o nome de Aurora, palavra que os antigos romanos associavam a aurum (ouro), em razão do colorido áureo do céu que antecede o nascimento do Sol. Jovem de deslumbrante beleza, de dedos cor-de-rosa, pálpebras de neve, estava encarregada de abrir todas as manhãs as portas do céu para o carro solar poder entrar.

A alba, um dos estágios da Obra alquímica, é chamada pelos alquimistas de albedo, antecedendo-a a escuridão, a nigredo. Na mesma sequência, depois do albedo temos citrinitas, fase que corresponde ao amarelado luminoso da luz solar, e finalmente temos rubedo, fase que corresponde à luz solar no alto do céu, o Sol a pino, ou seja, o meio-dia, fase em que as sombras desaparecem. 

As imagens acima, nigredo, albedo, citrinitas e rubedo foram usadas por alguns estudiosos de símbolos para representar, respectivamente, a primeira, o caos, a ignorância, a inconsciência ou a indeterminação: a segunda, os níveis iniciais do conhecimento, início da vida consciente; a terceira, o conhecimento numa etapa mais avançada, consciências mais evoluída; e a quarta, o conhecimento pleno, a consciência total. É neste sentido que se pode entender porque a cor branca representa a passagem do inconsciente para o consciente e porque ela representa também a cor que antecede a aparição da multiplicidade. Todas estas imagens, que descrevem o caminho do Sol, como se pode ver, simbolizam o caminho da consciência.

Em quase todas as tradições mítico-religiosas, o branco simboliza a inocência do paraíso original sem nenhuma influência perturbadora. É por essa razão que em numerosas culturas vestes brancas (ou que não foram tingidas),são as roupas dos religiosos, indicando-nos elas também pureza e verdade.

No cristianismo primitivo, aquele que ia ser batizado usava roupas brancas assim como o sacerdote que ministrava o sacramento; eram também vestidas de branco as almas salvas do Inferno, indicando-se dessa maneira o seu estado virginal, imaculado. Na simbologia do Vaticano, a transfiguração, a glória e o caminho do céu são os valores simbólicos ligados às vestes brancas do Papa. É nessa perspectiva também que a terceira pessoa da trindade cristã, o Espírito Santo, sempre foi representada por uma pomba branca. Na antiga Grécia, lembremos, Pitágoras, criador de uma importante seita religiosa, que pregava a reencarnação e defendia o vegetarianismo, recomendava aos cantores de hinos sagrados que se vestissem de branco. 

Na simbólica chinesa, porque associado à palidez da morte, o branco é a cor da velhice, do outono, do oeste, da infelicidade, do luto. É nesse sentido que o branco lívido se opõe ao vermelho e que se torna a cor dos vampiros que procuram o sangue, ausente de seu corpo. Nefasto, nesse caso, o branco é a cor das mortalhas e de todos os espectros e aparições. 

KWAIDAN, MULHER DA NEVE
(KWAIDAN, FILME DE KOBAYASHI)
De um modo geral, porém, a valorização do branco é positiva. Ele é principalmente a cor de todo aquele que busca uma iniciação. É assim atributo do candidato (cândido é o de muita alvura, como se disse), do postulante, daquele que quer ser escolhido, que quer mostrar o seu valor, elevar-se. O branco positivo entre os celtas estava reservado à classe sacerdotal, os druidas. Além deles, só o rei tinha direito às vestes brancas. 

Nos céus, o branco do leste (oriente) é a cor do retorno, o branco das auroras, quando a abóbada celeste reaparece ainda vazia, mas rica potencialmente de manifestações. Todo o simbolismo ritual do branco decorre desta observação da natureza, do céu; foi a partir desta observação que todas as culturas humanas construíram os seus sistemas filosóficos e religiosos. 

Todas estas considerações nos permitem entender que o negro, por oposição ao branco, é a cor do caos, que antecede toda existência: é o negro que dá origem ao dia, à luz, pois, como todos os mitos e religiões nos revelam, no começo tudo era escuro e silencioso. Dotado de virtudes prolíficas, deste caos, desta escuridão, num determinado momento, emergiu a claridade, a luz apareceu. 

HEMERA
Foram estas imagens que, transpostas para a psicologia, nos explicaram que o consciente (luz), emerge do inconsciente (escuridão), o verdadeiro reservatório das nossas possibilidades existenciais. Tomar consciência é, assim, tirar da escuridão. Os antigos gregos já tinha nos deixado nos seus mitos todas estas referências. Nix, a deusa da noite, das trevas de cima, e seu irmão Érebo, as trevas debaixo, infernais, camada intermediária do Hades (Inferno), unidos, deram origem a Hemera, o dia.

Foi a partir destas representações que os antigos gregos e celtas sempre consideraram a noite como o começo do dia (a escuridão dando origem à luz); para eles a noite simbolizava o tempo das gestações, das germinações, das conspirações, de tudo afinal que iria se manifestar quando o dia nascesse. Psicologicamente, entrar na noite é mergulhar na indeterminação; sair da noite é entrar na luz, determinar-se.

Para designar o branco brilhante dos cabelos dos idosos, a língua latina criou a palavra canus, de onde saiu, para nós, o verbo encanecer, sinônimo de envelhecer, tornar branco pouco a pouco, antecedido pelo verbo agrisalhar e pelo nome grisalho, que vem de gris, cor chegada ao cinza, intermediária entre o negro e o branco. 

LEUCÓCITOS
Quanto às palavras, alargando-se, assim, o nosso vocabulário, lembremos que gregos e latinos, respectivamente, com o seu branco, leukos e albus, nos deram muitas palavras em português. Quanto aos gregos, principalmente na área médica, lembremo-nos de leucócitos (glóbulos brancos), leucócomo (que tem cabelos brancos), leucodermia (deficiência de pigmentação, problemas que podem ir de pequenas manchas brancas ao vitiligo), leuconiquia (descoloração esbranquiçada das unhas) etc. Já quanto a albus, dos latinos, registre-se albinismo (ausência total ou parcial de pigmentação da pele, dos pelos, albido (em que predomina a cor branca, alvadio, esbranquiçado), albiduria (emissão de urina muito clara ou branca) etc. 

Ainda quanto às palavras, ocorre-nos titânio,  designação de produto usado na indústria química como corante para a obtenção da cor branca em tintas,  papel, esmalte, cerâmica e muito mais. A propósito, lembremo-nos que, na mitologia grega, Zeus, o maior dos deuses, como símbolo da luz, venceu os titãs, no caso, aqui, como representantes do obscurecimento, da desordem, das trevas, do caos.

Embora aumentem em nossa língua as referências a matizes do branco (branco neve, branco sujo, branco lívido, branco champanhe, branco marfim, branco nude, branco off white, branco rosa pó, branco pérola, branco âmbar etc.), salientemos que jamais chegaremos perto dos esquimós que conseguem identificar centenas de tonalidades da cor no mundo em que vivem.