sábado, 23 de abril de 2011

QUANDO FALA O CORAÇÃO (Spellbound)



O filme é de 1945, produzido por David Selznick, com direção de Alfred Hitchcock. A história é de Hilary Saint George Saunders e de John Palmer, transformado em roteiro por Angus MacPhail e Ben Hecht. Titulo da história: The House of Dr. Edwards, de 1927. No elenco principal: Indrid Bergman (Dra. Constance), Gregory Peck (John Ballantine, Dr. Anthony Edwards e John Brown), Michael Chekhov (Dr. Brulov), Leo G.Carroll (Dr. Murchison) e Rondha Fleming (Mary Carmichael). Música (um dos pontos altos do filme): Miklos Rozsa. Cinematografia: George Barnes. Montagem: Hal C. Kern.

Antes o título: spell é repetir, pôr na ordem correta, dar um sentido. No inglês antigo, é contar uma história, narrar um conto. A palavra tem, lá atrás, relação com gospel, evangelho, admitindo-se, para fins desta apresentação do filme, a ideia de salvação. Bound é aqui constrangimento, determinação, confinamento. Ou seja, fascínio, encantamento, prisão. Postos na devida ordem os elementos desta história levarão o seu sofrido personagem à salvação. Quem o salva, evangelicamente, é a dra. Constance. Constance (constantia, em latim) é nome que significa perseverança, fidelidade, firmeza, eficiência. Será a dra. Constance uma evangélica enrustida?



Classificado como filme de suspense, Quando Fala o Coração se abre com uma citação de Shakespeare: The fault is not in ours stars, but in ourselves (O erro não está nas estrelas, mas em nós mesmos). Com isto, usando uma referência astrológica, o filme pretende comprovar que os nossos problemas psicológicos, decorram eles de pressões externas ou internas, são sempre de nossa responsabilidade. É a antiga afirmação freudiana, colocada de outro modo: o importante em nós não é o que sabemos, mas o que desconhecemos, pois muitas de nossas ações (todas?) são em grande parte inconscientes. Um meio que temos para enfrentar esse problema é, como o filme propõe, a psicanálise, que procura eliminar a doença mental que se instala com eles, restaurando a nossa razão. O filme foi apresentado para o grande público com estas ideias.

A dra. Constance é uma psicanalista que trabalha numa clínica em Vermont, Green Manors (Manor é solar, casa senhorial), e é considerada pelos seus colegas masculinos como muito independente e desligada emocionalmente. Como não se podia falar da frigidez da doutora por causa da censura, usava-se esse eufemismo, desligamento emocional. O diretor da clínica, dr. Murchison, está sendo afastado do seu cargo por problemas de saúde. Seu substituto é o jovem dr. Edwards, autor de livros importantes sobre a matéria psicanalítica.

A dra. Constance nota que há algo estranho com o dr. Edwards quando ele chega para assumir o cargo. Apresenta ele uma estranha fobia, demonstrada ao ver linhas paralelas sobre um fundo branco, um desenho por ela traçado numa toalha de mesa com um garfo, quando faziam uma refeição no restaurante da clínica. Embora muito atraída pelo médico (olho no olho), ela logo constatou que o homem que se apresentou como dr. Edwards era um impostor. Ele acabou confessando que matara o dr. Edwards e que assumira a sua personalidade. O diagnóstico da dra. veio prontamente: aquele homem sofria de amnésia e não sabia exatamente quem era; por trás de tudo um grande trauma. Ela o considera inocente e o vê como vítima de um grande complexo de culpa. Logo se constata que o verdadeiro dr. Ewards havia desaparecido.

Convencida da inocência do homem que se diz dr. Edwards, a dra. Constance, apesar do envolvimento da polícia no caso (uma das grandes características dos filmes de Hitchcock é o de inocentes perseguidos), o ajuda, levando-o a um seu antigo professor para que ambos analisem os seus sonhos. A sequência onírica do filme é obra do pintor surrealista Salvador Dali, uma sequência onde se destacam vários símbolos psicanalíticos, olhos, cortinas, tesouras, cartas de baralho, alguém que joga com elas, um homem sem rosto etc. Consta que Selznick detestou esse toque surrealista do filme introduzido por Hitchcock, mas acabou aceitando-o.

A dra. Constance e o homem, que deu a si mesmo o nome de John Brown (uma espécie de Zé Ninguém), viajam então para uma estação de esqui com o objetivo de resolver o mistério (a fobia teria relação com as linhas paralelas que os esquis deixam na neve). Há uma série de peripécias, sendo ao final JB acusado, preso e mandado para a prisão.

Acabrunhada com o resultado negativo de suas iniciativas no sentido de salvar JB, por quem se apaixonara (como mulher, como mãe, como ambas?), a dra. Constance volta para a clínica, onde encontra o dr. Murchison, que reassumira a sua direção. Ao dialogar com ele, como um detetive que reconstitui a trama de um crime, ela, com muita argúcia, acaba descobrindo, que ele é o assassino do dr. Edwards. Ele a ameaça então com um revolver. Ela o enfrenta e se retira da sala, à espera de um tiro que ele lhe daria pelas costas. O Dr. Murchison volta o revolver contra si mesmo e se mata.
Desde os anos de 1940, a psicanálise freudiana começou a ser aproveitada pelo cinema, em thrillers, filmes de suspense. Nesses filmes, um analista assume o papel daquele que tradicionalmente resolve mistérios, o detetive. Lembro que neste particular a psicanálise quando chegou aos USA tomou esse caminho, de algo “detetivesco”, pragmático, diferente da tradição europeia, onde as doutrinas do Dr. Freud ganharam outro contorno, matizes culturais e filosóficos. Nos USA, a análise psicanalítica transformou-se em algo parecido com uma criptoanálise, como se pode ver pelo caminho mental que a dra. Constance fez para chegar à identificação do assassino.

Ao tempo da filmagem de Spellbound, as teorias freudianas haviam chegado à arte, à literatura, ao teatro e à comunicação de massas (cinema, publicidade etc.) nos USA. No cinema, essas teorias, bastante simplificadas, se reduziam ao seguinte esquema: os sintomas neuróticos, psicóticos, melhor, que alguém apresenta são uma reação simbólica a um choque psicológico, sendo a memória desse choque e os sentimentos a ele associados tão angustiantes que precisam ser banidos pelos mecanismos da mente, auxiliada pela psicanálise, para que não voltem à consciência. Na psicanálise, a neurose, como se sabe, é uma afecção de origem psíquica em que os sintomas expressam simbolicamente um conflito originado na infância. Alguns meios privilegiados que temos para penetrar na vida inconsciente, conforme a psicanálise, são, dentre outros, o sonho e a livre associação.

A técnica psicanalítica foi o método original, criado pelo dr. Freud, para facilitar a verbalização daquilo que era inacessível ao sujeito, uma vez que recalcado. Essa técnica deve ser considerada como uma descrição dos meios efetivamente postos em ação na condução de um tratamento e não a codificação apriorística de procedimentos que tenderiam a se ritualizar. Enfim, cada caso um caso...

Spellbound foi produzido cinco anos depois da morte de Freud, ocorrida na Inglaterra, em 1939.

O produtor Selznick, em 1943, fazia análise (problemas decorrentes de um relacionamento tumultuado com uma atriz). A ideia do filme veio de seus contactos com a analista que o atendia. Ele convocou Hitchcock, com quem já havia trabalhado, arranjou uma história e usou como conselheiro técnico do filme a sua própria analista, May Romm.

Selznick, quando da realização do filme, estava se separando de Gladys Mayer (filha do magnata da MGM, Louis Mayer) e se relacionando com Jennifer Jones, a essa altura também se divorciando de Robert Walker. O romance de onde o filme foi tirado é, na origem, um filme de suspense, com muita bruxaria e assassinato, num sanatório suíço. Adaptado para o cinema americano, teve no seu roteiro a mão segura de Ben Hetch, grande roteirista, que tinha também, na realização do filme, a função de “segurar” Hitchcock, que viveu por longos e longos anos sempre às turras com o produtor Selznick, uma das mais fantásticas figuras do cinema americano em todos os tempos.



O filme mistura psicanálise e suspense. As relações entre o diretor e o conselheiro técnico se complicaram às vezes, pois este último “carregava” doutrinariamente demais. Hitchcock o segurava, dizendo-lhe, que o filme não deveria ser um tratado de psicanálise, mas simplesmente um filme.

O filme explora temas freudianos como o da tensão entre a “realidade material” (o que realmente acontece) e a “realidade psíquica” (aquilo em que acreditamos que realmente aconteceu). Outra questão que o filme coloca: somos realmente responsáveis pelo que fazemos ou apenas vítimas das circunstâncias? Determinismo ou livre arbítrio? Há realmente alguma distinção a ser feita entre aquilo de que temos consciência e o que nos é acessível através da hipnose e pela análise dos sonhos?



Lembro que os surrealistas não faziam distinção entre o que era fantasia, imaginação, e a realidade. A imaginação, para eles, era tão real quanto a realidade. Outra questão psicanalítica levantada pelo filme: por que JB tem necessidade de “fabricar” uma culpa (a morte do dr. Edwards) por algo que não cometeu? A dra. Constance, freudianamente, será uma espécie de mãe de JB?. Até onde Spellbound é um filme “edipiano”? Por que seu professor lhe diz: Você não é a mãe dele? Complexo de Jocasta?

É a própria dra. Constance quem, muito simplesmente, nos dá o papel da imaginação e da fantasia na criação da culpa: as pessoas, muitas vezes, se sentem culpadas por algo que não cometeram. A origem deste sentimento deve ser procurada na infância. Crianças costumam desejar que algo de mau aconteça a alguém, por alguma razão, geralmente porque não gostam desse alguém; se o que desejaram acontece, ela se sentem culpadas. Crescerão então com este “pecado” dentro delas, com um complexo de culpa sem saber que tudo não passou senão de um bad dream.

Ballantine é o personagem edipiano do filme. A “mãe” é a dra. Constance. Os demais personagens masculinos do filme representam as várias faces do pai. A ação é conduzida na direção destas figuras masculinas. Culpa pela morte do “mau pai”, assassinado pela imaginação; medo da punição e libertação do complexo pela identificação com o ”bom pai”. A dra. Constace é a mãe, que vela por JB, que o observa enquanto dorme. Muitas referências no filme são feitas a este lado materno da doutora. O dr. Brulov, por sua vez, assumirá o papel de pai, figura que JB, num determinado momento, pensou em matar, o que o médico soube habilmente evitar.

Alfred Hitchcock (Sir) nasceu na Inglaterra em 1899 e faleceu nos USA em 1980. É considerado como um dos mestres do suspense e um dos mais conhecidos diretores do cinema, muito reverenciado pelos franceses dos “Cahiers du Cinéma”. Muitos de seus filmes foram sucesso de público e de crítica. Começou na Inglaterra, no cinema mudo. Já ao tempo do cinema sonoro realizou outros filmes, sendo o mais importante deste período Os 39 Degraus. Em 1939 foi para os USA, naturalizando-se americano em 1955. Seu primeiro filme foi Rebeca. Desde então não parou mais de filmar. Destaques: A Sombra de uma Dúvida, Interlúdio, Festim Diabólico, Sob o Signo de Capricórnio, Disque M para Matar, Janela Indiscreta, Ladrão de Casaca, Um Corpo que Cai, Intriga Internacional, Psicose, Os Pássaros. Seu último filme foi Trama Macabra.

O suspense e o voyeurismo são marcas características do cinema de Hitchcock. O primeiro é obtido por ele na medida em que os personagens do filme não têm consciência do perigo que enfrentam. Uma grande tensão é criada no espectador. Efeitos de luz e música acentuam o clima. Em alguns filmes, o personagem age como se soubesse que o espectador está observando a sua vida, um efeito magistral que ele soube criar como ninguém. Além destas, outra “marca” de Hitchcock: ele usou muito o que é conhecido no cinema como cameo (camafeu): uma pessoa famosa aparece no filme, por breves momentos, uma “citação”. Quem mais apareceu nos seus filmes foi o próprio Hitch, como era chamado. Em Spellbound, ele sai do prédio Empire State no 40º minuto do filme. Famoso como diretor de mulheres, são suas musas: Tippi Hedren, Eve Marie Saint, Grace Kelly, Janet Leigh, Ingrid Bergman, Kim Novak e outras. Entre os atores, James Stewart e Cary Grant parecem ter sido os seus preferidos.

Gregory Peck (1916-2003) era americano. Começou no teatro e triunfou em Hollywood em filmes como A Conquista do Oeste, O Escarlate e o Negro, O Sol é Para Todos, As Neves de Kilimanjaro, Moby Dick, Duelo ao Sol, A Profecia. Seu último filme foi Cabo do Medo, em 1991. Quando fez Spellbound era um novato, diante de uma já muito famosa Ingrid Bergman.



2010 - Ciclo de Cinema - Lita Projetos Culturais