segunda-feira, 8 de março de 2021

NADA EM EXCESSO

                                            

De um modo geral, os heróis, nos mitos de todas as culturas, são filhos de um deus ou de uma deusa com um ser humano, o que os torna simbolicamente um elo, um traço de união entre dois planos de existência. Ou seja, representam eles uma proposta para que o ser humano vá do material, do egoico, dos seus interesses pessoais, em direção de uma vida de natureza espiritualizante, orientada por ideais de colaboração, de participação comunitária para que o todo, a vida coletiva, melhore. Faz parte da vida dos heróis esse impulso evolutivo, que se caracteriza por um desejo de superação, de transcendência. Esse impulso evolutivo, muitas vezes, porém, apresenta aspectos contraditórios, distorções graves. Muitos heróis, nesse afã de se superar, são tomados por sentimentos descontrolados de orgulho, de vaidade, julgando-se alguns até iguais ou mesmo superiores aos próprios deuses pelas vitórias que conquistam.

Fazem parte da vida heroica ideias de renome, de glória, de imortalidade, pois os antigos gregos achavam que a memória vencia a morte. Dois são os caminhos que tomavam os heróis nesse sentido. Um é o da via social (horizontal) e o outro é o da via espiritual (vertical), podendo eles, às vezes, se interpenetrar. No primeiro caso, o herói procura o reconhecimento dos homens, por seus feitos, por suas ações, casos em que ele se torna um personagem histórico; no segundo caso, o da via vertical, espiritual, o herói aparece como um profeta, um criador de doutrinas religiosas, um salvador, caso em que ele indica para os outros homens caminhos de realização espiritual. Neste caso, ele será um guia, um mestre, um orientador, constituindo-se a sua pregação o que os gregos chamavam de soteriologia (salvação da alma).



Uma das expressões do item acima nós a encontramos, por exemplo, no Cristianismo, quando a vida dos santos era tomada como exemplo de vida a ser seguida, a ser imitada. O mais famoso livro que conhecemos sobre o tema chama-se Legenda Aurea. Neste livro, estão reunidas várias histórias de caráter lendário sobre a vida de muitos santos e mártires da Igreja. Essas lendas, nos primeiros tempos do Cristianismo, eram lidas diariamente, durante das refeições, nos refeitórios dos conventos, para edificação dos jovens que ingressavam na vida religiosa.


CLÍMENE
Hoje, falaremos de um herói da mitologia grega que se enquadra no primeiro caso, o do herói que por suas façanhas procurou se colocar acima dos outros homens e dos próprios deuses. Seu nome é Faetonte, filho de Hélio, o Sol, divindade luminosa, que tinha como irmãos Eos (Aurora) e Selene (a Lua). A história começa quando Hélio se une a uma divindade marinha, Clímene, tornando-a mãe de Faetonte e das Helíades, nome pelo qual eram conhecidas as suas três irmãs.

HÉLIO
Hélio, personificação do Sol, era representado por uma figura de grande beleza, cabeça aureolada, de onde emanavam raios, sempre esplêndido fisicamente. Para se movimentar pelo cosmos, o que fazia com grande velocidade, usava um carro dourado puxado por quatro intrépidos cavalos, que tinham o nome de Fogo, Luz, Chama e Brilho. A chegada de Hélio nos céus, todas as manhãs, era precedida pelo carro da deusa Eos (Aurora), sua irmã, que lhe abria o caminho. Ao final das tardes, mergulhava com seu carro no oceano, para acalmar os seus animais, ou então se escondia atrás de altas montanhas. Pernoitava num palácio de ouro, recomeçando na manhã seguinte a sua infatigável trajetória. 



O nome do nosso herói, Faetonte, vem da palavra grega phaeton, que significa brilhante. Foi educado pela mãe sem saber que era filho do deus Hélio. Só quando adolescente teve conhecimento de sua paternidade. Desde a infância fora, por isso, muito ridicularizado por não saber declinar o nome do pai. Revelada, porém, a identidade paterna e desejando calar para sempre os que o maltratavam, Faetonte, muito ansioso, pôs-se a caminho do leste, lugar onde o Sol nascia, para encontrá-lo. Quem narra essa história é o poeta latino Ovídio no seu texto, As Metamorfoses: Faetonte se regozija logo que sua mãe assim falou (declarando o nome do pai) e já se imagina no éter, e, atravessando as regiões etíopes, de onde era, e as regiões indianas castigadas pelo Sol, dirige-se, sem demora, ao lugar de onde seu pai se levanta.

Faetonte encaminhou-se então para o extremo-oriente, aproximando-se do majestoso palácio do pai, todo em ouro, com portas de prata e aplicações de marfim. O pai estava sentado num trono de esmeraldas, resplandecente. À sua direita e à sua esquerda encontravam-se os Dias, os Meses, os Anos, os Séculos e as Horas, todos dispostos nos  respectivos espaços que lhes cabiam. Também no palácio do pai se encontravam a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno, apropriadamente vestidos. Faetonte os viu e não se sentiu impressionado por todo esse esplendor. Faetonte tomou então conhecimento porque os adoradores de seu pai haviam fixado o tempo entre dois instantes sobre o caminho que ele fazia. Estes dois instantes eram os chamados solstícios. Um era o da culminação do Sol no céu, que correspondia ao início do Verão, e outro era o do declínio do Sol, que correspondia ao início do Inverno. Um era o instante supremo do Sol, o do apogeu, o do Sol triunfante, o outro era o da queda, do decesso, que lembrava a escuridão, a morte. Mas, como o caminho que seu pai fazia era circular, foi-lhe explicado que esta morte era apenas aparente, tudo representado por uma curva onde o passado, o presente e o futuro se encontravam continuamente, num eterno vir-a-ser. Nascimento, ascensão e queda, seguida esta de um novo nascimento, pois, esta a lei a que estavam submetidos todos os seres, coisas do mundo, humanos ou deuses, que faziam parte da vida universal. Mas Faetonte, fixado no seu obsessivo desejo, não deu ouvidos a nada disto. 

 

HÉLIO  ( BAIXO RELEVO )
Hélio havia logo reconhecido que aquele jovem lindíssimo era seu filho pelo brilho que dele emanava. Abraçou-o comovidamente. Para sacramentar o reconhecimento do jovem, jurou, em nome das águas do rio Estige, para acalmar quem sabe os seus remorsos por nunca tê-lo reconhecido, dizendo-lhe que atenderia qualquer pedido que ele viesse a fazer. O jovem, sem titubear, pediu que o pai lhe emprestasse por um dia o carro com o qual se movimentava pelos céus. No mesmo momento em que ouviu o pedido do filho, logo o arrependimento se apoderou inteiramente de Hélio, pois não poderia voltar atrás, já que jurara pelas águas do Rio Estige (o perjúrio, neste caso, a falta de cumprimento de um juramento feito em nome do rio Estige, era um dos maiores crimes que tanto humanos como deuses poderiam cometer: quem o cometesse inclusive deuses, iria para o Inferno, onde ficaria lá prisioneiro até o final dos tempos).



RIO ESTIGE ( GUSTAVE DORÉ, 1832 - 1883 )

Hélio descreveu então para o filho os perigos a que ficaria sujeito se se atrevesse a conduzir o seu carro. Se Faetonte levasse o carro acima da eclíptica, a estrada do Sol no céu, certamente se chocaria com os astros, e, se descesse muito, com a Terra. Qualquer descuido na condução do carro, a ordem cósmica seria fatalmente perturbada, com consequências catastróficas, sem dúvida. Hélio lembrou o exemplo de Ícaro, aquele que desejou voar alto demais e teve um fim trágico. 



QUEDA DE ÍCARO ( PETER PAUL RUBENS - 1577 - 1640 )

Depois de observar ao filho que nem Zeus, o maior dos deuses, se atreveria a conduzir o seu carro, eis, conforme o texto do poeta, uma parte do discurso de Hélio ao filho sobre os perigos que poderia enfrentar se insistisse na sua tresloucada aventura: Supõe que eu te entregue o carro. Que farás? Poderás enfrentar a rotação dos polos, para não seres arrastado pelo eixo movediço? Por acaso imaginas que há no céu bosques, cidades dos deuses e templos repletos de oferendas? Aquele caminho avança entre ciladas e animais ferozes. E mesmo se o seguires sem errar terás de enfrentar os chifres do odioso Touro, o arco de Sagitário, a boca do feroz Leão, o Escorpião recurvando os ferrões e o Câncer, o Caranguejo, também de ferrões recurvados, mas em outro sentido. Quanto aos quadrúpedes, animados por um fogo que têm no peito e que soltam pela boca e pelas narinas, conduzi-los (os cavalos) não te será fácil. Eles mal me obedecem, com aquele seu vigor fogoso, e mal suportam o freio. Cuidado, meu filho, para que eu não te preste um favor funesto e, já que ainda é tempo, muda de ideia.


De nada valeram as ponderações de Hélio. Pela madrugada,
EOS
quando  Eos  já  abrira  as portas do  oriente para a luz solar, Faetonte  subiu  no  carro  do  pai  e  partiu  numa  alucinada carreira. Os cavalos logo perceberam  que  Hélio não estava no comando. Aumentando  a  velocidade, Faetonte, ao subir, põe  em   perigo   os  astros,  que  faziam  a  sua caminhada regularmente, cada um com a sua  velocidade. Nos rasantes que dava,  incendiava  a Terra. O  carro  se  chocava com as estrelas, as  nuvens se  inflamavam,  cidades  e  bosques na terra  se  incendiavam.  Faetonte  na   sua  corrida   louca  ia deixando  um  rastro  de  destruição  e  de   dor,  trazendo  a desordem  para a vida do Cosmos, regular e ordenada. 


GEIA  ( RELEVO  EM  MÁRMORE )

A Grande-Mãe, Geia, ressequida até as entranhas, não suportando mais as agressões a que estava sendo submetida, pediu a imediata intervenção de Zeus. Atendendo-a, reverente, o Senhor do universo, do alto do Olimpo, lançou a sua infalível arma, um destruidor raio, arma que abatia inapelavelmente os orgulhosos e os inconsequentes dominados pela hybris (orgulho), pelo descomedimento.



A QUEDA DE FAETONTE ( P.P. RUBENS - 1877 - 1640 )

Faetonte despencou com o carro solar, que se espatifou no solo. As ninfas dos riachos e dos regatos próximos recolheram o cadáver do infeliz jovem, dando-lhe sepultura. No túmulo colocaram a seguinte inscrição: Aqui repousa Faetonte, condutor do carro paterno, ao qual se não pôde guiar, ao menos pereceu em gesta gloriosa.



RIO ERÍDANO
Hélio, cheio de dor, deixou a terra sem luz no dia seguinte. As Helíades, irmãs do jovem, choraram-no tanto junto à sepultura, às margens do rio Erídano, em Atenas, o Rio da Vida, que foram metamorfoseadas pelos deuses em choupos e as suas lágrimas em fragmentos de âmbar. Os choupos são, como sabemos, árvores funerárias que lembram sempre as forças regressivas que atuam na natureza, trazendo-nos mais lembranças que esperanças, falando-nos mais de tempos passados que de renascimento. Já o âmbar (electron, em grego) simboliza o fio que une a energia individual à energia cósmica.

ÂMBAR

O amarelo-âmbar, como se sabe, foi muito utilizado na pintura bizantina para dar cor ao rosto de muitos santos, como um reflexo da luminosidade celeste que eles têm dentro de si.



HELÍADES CHORAM FAETONTE
O mito de Faetonte é, como se pode perceber, uma ilustração das terríveis consequências da desmedida que pode tomar um ser quando ele desconhece o seu metron, a sua medida. Não é por outra razão que no Oráculo de Delfos estavam registradas, na sua entrada, as máximas: Conhece-te a ti mesmo e Nada em excesso.

O orgulho era um tema privilegiado na mitologia grega. O orgulho é, como sabemos, a estima excessiva que alguém tem por si mesmo. Inconsequente, inconsciente na maioria dos casos, o orgulho, alegoricamente chamado de hybris pelos antigos gregos, era filho de Koros, entidade que personificava o Desdém, a Insolência. A expressão física da hybris era denominada por eles pelo nome de hamartia, podendo ela tomar muitos caminhos, sempre se constituindo, porém, numa violência cometida por palavras ou atos contra o mundo natural ou contra os próprios homens e deuses. A principal característica da hybris era o excesso, podendo ele aparecer tanto no Bem como no Mal. Os deuses gregos intervinham sempre quando esse excesso se manifestava num ou noutro sentido, porque esse descomedido impulso desequilibrava a ordem do mundo. Nesse sentido, é que a maldade ou a bondade e a beleza ou a fealdade demasiadas se equivaliam, ambas perniciosas e perturbadoras do justo equilíbrio universal.