![]() |
| NARCISO |
![]() |
| RAPTO DE KORE, 1621 (GIAN LORENZO BERNINI) |
Nesse mito, narra-se também o rapto da jovem Kore por Hades, deus do mundo infernal, que para lá a levou. Depois de lhe dar sementes de romã para ingerir, transformou-a em sua mulher e esposa. Kore recebeu o nome de Perséfone, nome talvez originário de parthenos, virgem, em grego, e o título de rainha do mundo infernal.
![]() |
| DEMETER |
Para acomodar a história de Narciso nesse contexto, os poetas gregos o consideravam como filho na ninfa Liríope e do deus-rio Cephiso. O jovem, de uma beleza espantosa, desde a infância sempre havia permanecido insensível aos sentimentos de amor e de admiração que despertava nas pessoas que o viam. Dentre estas, merece destaque a ninfa Echo, jovem belíssima, que por Narciso alimentava um mudo e secreto amor na esperança de um dia ser por ele correspondida, notada, pelo menos.
![]() |
| ECHO |
Conta-nos mais o mito que
Hera, um dia, percebeu o jogo da ninfa e, punindo-a, disse-lhe: Ficarás, para
sempre, com o direito de proferir a última palavra, jamais a primeira”. Logo
depois deste acontecimento, foi que Echo apaixonou-se perdidamente pelo
solitário e insensível jovem. Chamando-o pelo nome, Echo, prossegue o mito, nenhuma
resposta obteve, a não ser, de retorno, os últimos sons de seu nome, que
pronunciara. O amado jovem, então, afastou-se dela, que caiu numa prostração
profunda. Definhando cada vez mais, nada restou de Echo senão os sons
finais de uma voz que, nas montanhas, repete incansavelmente o nome Narciso.
![]() |
| NÊMESIS |
![]() |
| TIRÉSIAS |
![]() |
| NARCISO (MICHELANGELO CARAVAGGIO, 1571-1610) |
A história que acima
descrevemos tem destaque na mitologia e na civilização grega desde a
antiguidade, conforme se pode constatar por uma fonte chamada Narciso que
existe até hoje em Téspias, junto do monte Helicon, na Beócia. Famosa, desde
tão recuados tempos, é também uma grande rocha que ali existe, de onde provém a
fonte, conhecida pelo eco que lá se forma quando pessoas falam perto dela.
Aos poucos, aquela flor, desde o seu florescimento primaveril, foi adquirindo a fama de narcótica, além de venenosa, capaz de produzir, como se disse, um efeito suscetível de levar pessoas ao sono devido à ação de seu perfume. Ao interpretar estas histórias, os mitólogos gregos notaram também que o narciso era uma flor primaveril, que simbolizava não só a vida inconsciente como a fecundidade, devido à estação em que surgia. Ou seja, o narciso ligava-se tanto à morte, representada pelo torpor, pelo sono, como pelo renascimento. Inúmeros poetas e filósofos, gente como Gaston Bachelard e Paul Valéry, estudou longamente o mito de Narciso no qual encontramos ricas referências simbólicas.
O que o mito de Narciso significa para Paul Valéry (1871-1945) é a pretensão (falhada?) de reduzir à mais concreta imagem mítica o mais antinatural, irreal e absoluto - o nosso Eu:
Mais moi, Narcisse aimé, je ne suis curieux
Que de ma seule essence.
Tout autre n'a pour moi q'un coeur mystérieux
Tout autre n'est qu' absence.
Oh! mon bien souverain, cher corps, je n'ai que toi.
Le plus beau des mortels ne peut chérir que soi...
![]() |
| NARCISSE ( ERNEST EUGÈNE HIOLLE, 1834-1886 ) |
Efetivamente, este mito, ao nos
remeter à água (lagoa) nos fala do espelho no qual se refletirá um eu
idealizado que não corresponde à sua verdadeira imagem. Por isso, comumente
quando ouvimos a palavra narcisismo, podemos entendê-la como uma referência à
situação em que uma pessoa se volta para si mesma, se contempla a si mesma
(autocontemplação), gerando-se daí uma autossatisfação da qual ninguém poderá
duvidar. No geral, o narcisismo sempre
foi considerado como uma perversão. Sem nos aprofundarmos neste tema, entendo,
contudo, que, na perspectiva aqui abordada, o narcisismo sempre nos apontará para o caso de alguém que, ao invés de dirigir os
seus desejos e amor para as pessoas e coisas do mundo que sejam dela diferentes,
os volta (patologicamente) para si mesmo. Ou seja, numa linguagem freudiana, a
libido é investida no próprio sujeito e não exteriormente. Autoerotismo?
Diante do que está acima é que podemos concluir que narcisismo e espelho são inseparáveis. Neste particular, lembremos que o espelho (águas da lagoa), como símbolo, neste mito, pôs em circulação alguns significados pouco notados e explorados. Detendo-me um pouco mais neles, tenho a destacar, primeiro, que uma criativa ilustração do que aqui desenvolvo foi colocada, por exemplo, de uma maneira bem simples e direta, em poucas palavras, por Caetano Veloso e Gilberto Gil (dois dos maiores nomes da música popular brasileira), num verso de Sampa, genial composição deles. Lá está num dos versos de Sampa: Narciso acha feio o que não é espelho.
Segundo nos conta o mito, Narciso,
curvado, inteiramente absorto, ficou a se admirar no espelho das águas da lagoa, preso à sua imagem, enquanto seu corpo ia se transmutando em flor.
Há muitos séculos, o mito de Echo/Narciso está presente na literatura, nos estudos mítico-literários e em outras áreas, em várias culturas, reunindo-se, no que está publicado, fora do grego e do latim, não só em obras novas sobre o tema, como traduções e um grande número de trabalhos críticos que vão além da literatura. É de se destacar que o mito de Narciso tem lugar privilegiado na música: Christoph Willibald Gluck compôs, em 1779, com libreto de Louis-Théodore de Tschudi, um drama lírico em três atos muito importante, Écho et Narcisse. No século XX, por exemplo, só para ficar na literatura mais perto de nós, registre-se que o Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa, nos ofereceu uma valiosa publicação voltada exclusivamente para o referido mito.
.










