domingo, 13 de junho de 2021

NARCISO

NARCISO
Os antigos poetas gregos, desde Homero, sempre entenderam que algumas flores tinham um caráter funerário, uma relação direta com a morte, com túmulos.  Muito citada neste sentido era uma flor que os  poetas, logo que a viram,  deram-lhe o nome de narciso (narcissus poeticus). Dos terrenos baldios e caminhos, a flor foi levada para os cemitérios; koimeterion, cemitério em grego, é palavra que significa lugar onde se dorme ou se descansa. Como logo se constatou, todas as partes da flor eram venenosas, especialmente o seu bulbo, e notável era o seu aroma, pois muitas pessoas, aspirando-o, se sentiam muito mal, sonolentas, entorpecidas. Pior se colocada a flor em algum recinto dentro das casas. Muito comuns, nesse caso, as tonturas e
 os enjoos.   

RAPTO DE KORE, 1621
(GIAN LORENZO BERNINI)


A história dessa flor? Uma versão da mitologia grega nos conta que Kore, filha de Demeter,  deusa dos cereais, do trigo, principalmente, ao colher ervas nos campos, teve uma sensação estranha, parecida com uma embriaguez, quando se aproximou de tal flor. O nome narciso, em grego, vem de narké ,que significa perda de consciência, entorpecimento, tontura. Desse universo semântico saiu a palavra narcótico, substância que faz adormecer e que pode reduzir ou eliminar a sensibilidade.

Nesse mito, narra-se também o rapto da jovem Kore por Hades, deus do mundo infernal, que para lá a levou. Depois de lhe dar sementes de romã para ingerir, transformou-a em sua mulher e esposa. Kore recebeu o nome de Perséfone, nome talvez originário de parthenos, virgem, em grego,  e o título de rainha do mundo infernal.


DEMETER
Durante o tempo em que Kore, raptada por Hades, esteve desaparecida, Demeter, desesperada, se sentia muito mal, acalmando-se só por breves momentos quando tomava alguns goles de um chá feito à base de flores da papoula. As papoulas, como sabemos, sempre foram muito usadas para a produção de alcaloides como a morfina e a heroína, presentes no ópio. Foi por causa deste episódio que, segundo o mesmo mito, as flores sempre foram banidas do culto de Demeter, admitida, no entanto, unicamente, a papoula, que tinha o privilégio de “viver” entre os trigais da deusa Demeter.

Para acomodar a história de Narciso nesse contexto, os poetas gregos o consideravam como filho na ninfa Liríope e do deus-rio Cephiso. O jovem, de uma beleza espantosa, desde a infância sempre havia permanecido insensível aos sentimentos de amor e de admiração que despertava nas pessoas que o viam. Dentre estas, merece destaque a ninfa Echo, jovem belíssima, que por Narciso alimentava um mudo e secreto amor na esperança de um dia ser por ele correspondida, notada, pelo menos.

ECHO
Echo  era uma ninfa, segundo o mito, que vivia nas montanhas, regiões em que os últimos sons das palavras lá proferidas pelas pessoas que nelas viviam eram repetidos. A esse fenômeno foi dado o nome de eco, o nome da ninfa, que tinha o hábito, para distrair a atenção da deusa Hera com a sua tagarelice. Echo tentava proteger Zeus, envolvido nas suas conquistas amorosas, desviando a atenção da deusa, sua divina e legítima esposa.

Conta-nos mais o mito que Hera, um dia, percebeu o jogo da ninfa e, punindo-a, disse-lhe: Ficarás, para sempre, com o direito de proferir a última palavra, jamais a primeira”. Logo depois deste acontecimento, foi que Echo apaixonou-se perdidamente pelo solitário e insensível jovem. Chamando-o pelo nome, Echo, prossegue o mito, nenhuma resposta obteve, a não ser, de retorno, os últimos sons de seu nome, que pronunciara. O amado jovem, então, afastou-se dela, que caiu numa prostração profunda. Definhando cada vez mais, nada restou de Echo senão os sons finais de uma voz que, nas montanhas, repete incansavelmente o nome Narciso.

NÊMESIS
Revoltadas com o comportamento de Narciso, as irmãs de Echo queixaram-se a Nêmesis, a deusa que vela para que os orgulhosos humanos não procurem se igualar aos deuses. Ela pune aqueles que tendo recebido muitos dons se fecham no seu orgulho, recusando-se a conviver com os demais mortais. Nêmesis é, neste sentido, a deusa da moderação, da discrição, sendo representada por uma bela figura feminina com o dedo indicador colocado sobre a boca.


TIRÉSIAS
O adivinho Tirésias, aliás, já havia declarado que Narciso viveria o tanto quanto ele não visse a própria imagem. Tempos depois, isto aconteceu quando o jovem, num dia de verão, num bosque, viu a sua própria imagem refletida nas águas de uma fonte que lá havia. Tomado de paixão pelo que viu, seu próprio reflexo, sentiu-se incapaz de se afastar dali. Narciso esqueceu de beber e de comer, tão grande o fascínio que experimentou. Aos poucos, foi o jovem se transformando numa flor que, desde então, leva o seu nome.  


NARCISO (MICHELANGELO CARAVAGGIO, 1571-1610)


Já nos tempos míticos, a história acima ganhou muitas versões, eruditas e populares. Uma das mais famosas foi a que nos deixou Ovídio, poeta latino, no livro III das suas Metamorfoses, história que muitos consideram como básica para a explicação de um conceito, o do narcisismo, que invadiria a Psicologia, a Filosofia, a Literatura, a Poesia, a Música, as Artes Plásticas e o Cinema.

A história que acima descrevemos tem destaque na mitologia e na civilização grega desde a antiguidade, conforme se pode constatar por uma fonte chamada Narciso que existe até hoje em Téspias, junto do monte Helicon, na Beócia. Famosa, desde tão recuados tempos, é também uma grande rocha que ali existe, de onde provém a fonte, conhecida pelo eco que lá se forma quando pessoas falam perto dela.

Aos poucos, aquela flor, desde o seu florescimento primaveril, foi adquirindo a fama de narcótica, além de venenosa, capaz de produzir, como se disse, um efeito suscetível de levar pessoas ao sono devido à ação de seu perfume. Ao interpretar estas histórias, os mitólogos gregos notaram também que o narciso era uma flor primaveril, que simbolizava não só a vida inconsciente como a fecundidade, devido à estação em que surgia. Ou seja, o narciso ligava-se tanto à morte, representada pelo torpor, pelo sono, como pelo renascimento. Inúmeros poetas e filósofos, gente como Gaston Bachelard e Paul Valéry, estudou longamente o mito de Narciso no qual encontramos ricas referências simbólicas. 

O que o mito de Narciso significa para Paul Valéry (1871-1945) é a pretensão (falhada?) de reduzir à mais concreta imagem mítica o mais antinatural, irreal e absoluto - o nosso Eu: 

Mais moi, Narcisse aimé, je ne suis curieux 

Que de ma seule essence.

Tout autre n'a pour moi q'un coeur mystérieux  

Tout autre n'est qu' absence. 

O mon bien souverain, cher corps, je n'ai que toi. 

Le plus beau des mortels ne peut chérir que soi...   


NARCISSE ( ERNEST EUGÈNE HIOLLE, 1834-1886 )

Efetivamente, este mito, ao nos remeter à água (lagoa) nos fala do espelho no qual se refletirá um eu idealizado que não corresponde à sua verdadeira imagem. Por isso, comumente quando ouvimos a palavra narcisismo podemos entendê-la como uma referência à situação em que uma pessoa se volta para si mesma, se contempla a si mesma (autocontemplação), gerando-se daí uma autossatisfação da qual ninguém poderá duvidar.  No geral, o narcisismo sempre foi considerado como uma perversão. Sem nos aprofundarmos neste tema, entendo, contudo, que, na perspectiva aqui abordada, o narcisismo  sempre nos apontará para  o caso de alguém que, ao invés de dirigir os seus desejos e amor para as pessoas e coisas do mundo que sejam dela diferentes, os volta (patologicamente) para si mesmo. Ou seja, numa linguagem freudiana, a libido é investida no próprio sujeito e não exteriormente. Autoerotismo?

Diante do que está acima é que podemos concluir que narcisismo e espelho são inseparáveis. Neste particular, lembremos que o espelho (águas da lagoa), como símbolo, neste mito, pôs em circulação alguns significados pouco notados e explorados. Detendo-me um pouco mais neles, tenho a destacar, por primeiro, que uma criativa ilustração do que aqui desenvolvo foi colocada, por exemplo, de uma maneira bem simples e direta, em poucas palavras, por Caetano Veloso e Gilberto Gil (dois  dos maiores nomes da música popular brasileira), num verso de Sampa, genial composição deles. Lá está num dos versos de Sampa: Narciso acha feio o que não é espelho. 

Segundo nos conta o mito, Narciso, curvado, inteiramente absorto, ficou a se admirar no espelho das águas da lagoa, preso à sua imagem, enquanto seu corpo ia se transmutando em flor.

Como flor, Narciso é da família das amaralydaceas, variando as suas pétalas do amarelo ao branco. Sua origem parece ser mediterrânea, com registros de seu aparecimento, inicialmente notado na Ásia central e na China. A flor é, entretanto, hoje cultivada em várias partes do mundo, inclusive na América do Norte e do Sul.


Há muitos séculos, o mito de Echo/Narciso está presente na literatura, nos estudos mítico-literários e em outras áreas, em várias culturas, reunindo-se, no que está publicado, fora do grego e do latim, não só em obras novas sobre o tema, como traduções e um grande número de trabalhos críticos que vão além da literatura. É de se destacar que o mito de Narciso tem lugar privilegiado na música: Christoph Willibald Gluck compôs, em 1779, com libreto de Louis-Théodore de Tschudi, um drama lírico em três atos muito importante, Écho et NarcisseNo século XX, por exemplo, só para ficar na literatura mais perto de nós, registre-se que o Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa, nos ofereceu uma valiosa publicação voltada exclusivamente para o referido mito.

A significação simbólica dos espelhos aponta, conforme antigas tradições, para crenças que os ligam, por uma correspondência mágica (espelho, kathreftis, em grego; speculum, em latim), à imagem do ser que eles refletem. O espelho retém, aprisiona a alma, a força vital daquele que tem a sua imagem nele refletida. Daí o antigo e popular costume, para que isto não aconteça,  de  serem cobertos os espelhos porventura existentes nas salas mortuárias, facilitando-se assim a ida da alma para o Outro Lado.  Foi pelo que aqui se explica que a alma de Narciso se perdeu (ficou aprisionada) quando ele se olhou nas águas (espelho) da lagoa.

O mito de Narciso, ao final, liga-se acima de tudo ao simbolismo e à fecundidade das águas e aos ritmos da estações (alternância, vida e morte). Daí a sua ambivalência: morte, sono e renascimento. O narciso usado para a produção de poções e de xaropes tem um grande poder de favorecer a fecundidade das mulheres. Esta flor, na Ásia, simboliza, de um modo geral, a felicidade; na linguagem das flores, representa a sociabilidade, a cortesia e a amizade, que podem ser cultivadas quando, se prende um pouco de suas raízes secas ao pescoço, num colar. Manter por perto um narciso, colhido no fim de março, é também, para muitos orientais, um modo seguro de conquistar uma situação de vida amorosa.

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