domingo, 25 de setembro de 2011

A COR DA MÚSICA


Há várias pessoas que por razões congênitas, muitas vezes inexplicáveis, ou por motivo de doença ou por terem ingerido determinados remédios ou drogas têm uma perturbação sensorial chamada sinestesia (syn, juntamente, com, mais aisthesia, sensação) na qual ocorrem sensações simultâneas através de uma única excitação. O ouvido “ouve” cores; os olhos “vêem” sons; os ouvidos “ouvem” odores etc. Há, assim, nesta percepção uma cooperação entre funções diferentes (sinergia, syn, juntamente, com, mais ergeia, atividade, trabalho). Sensações suplementares àquelas percebidas normalmente. Uma outra região ou órgão do corpo capta simultaneamente a sensação, traduzindo-a no seu registro.

Desde o fim da Idade Média que essa questão foi levantada. Um tratado de música que aparece na Inglaterra nesse período estabelece uma relação entre cores e música. A relação era estabelecida mais exatamente entre cores e duração de notas, não com as notas em si ou com os seus intervalos ou com o timbre dos instrumentos, com a duração das notas apenas.

No séc. XVII, um médico e musicólogo francês, Pierre Bourdelot, procurou a relação entre a música e as artes plásticas. Viu um paralelo entre a disposição de desenhos, de seus contrastes, perspectiva, tons e variedade de cores, do conjunto todo enfim, com músicas, harmonias, desarmonias.

No séc.XVII, são os jesuítas, já então muito envolvidos com os estudos científicos de Física, da Acústica, em especial, que levantam a questão da sinestesia. Athanasius Kircher (1602-1680) foi um deles. Este jesuíta alemão, orientalista, começou se dedicando ao estudo de hieróglifos, a traduções da língua copta (língua do antigo Egito, a partir do grego) e à divulgação da cultura chinesa na Europa. Seus estudos mais importantes estão da área da Acústica, da Luz e dos Imãs, na Física. Passa por ser um dos precursores do cinema como inventor da lanterna mágica, conforme está no seu texto Ars Magnae Lucis et Umbrae in Mundi (1645).



ATHANASIUS KIRCHER

Kircher estabeleceu relação entre o uníssono, a nota dó e o dó sustenido, com a cor branca; o ré com o cinza ou o negro; o mi bemol com o amarelo; o mi com o vermelho claro; o fá com o rosa; o fá sustenido com o castanho; o sol com o amarelo ouro; o lá bemol com o púrpura; o lá com o vermelho vivo; o si bemol com o violeta; o si com o púrpura e o dó (oitava) com o verde.






PADRE   MERSENNE


Contemporâneo de Kircher, o padre Mersenne (1588-1648), francês, foi uma figura impressionante. Consagrou sua vida à ciência, mantendo abundante correspondência com Descartes, Pascal, Fermat, Torricelli e muitos outros sábios. Seus trabalhos mais importantes estão na Acústica: descobriu as leis dos tubos sonoros e das cordas vibrantes; utilizou o fenômeno do eco para medir a velocidade do som etc. Fala muito de sinestesia. Compara por exemplo a nete (a mais alta das cordas da lira grega, que simboliza a Lua) ao agudo, à cor branca; a mese (nota média na música grega), “a nota mais agradável de todas, que participa do Céu e da Terra”. Propôs uma pesquisa: “ver se há na música alguma coisa que corresponda à luz, a qual contém todas as cores em eminência e perfeição.”


LOUIS-BERTRAND CASTEL
Ainda no séc.XVII, o padre jesuíta Louis-Bertrand Castel (1688-1757), físico, matemático e músico, registra que no seu entender o Sol corresponde ao vermelho; o Mi, ao amarelo; o Dó, ao azul. Sua teoria é vasta. Construiu um instrumento conhecido como Cravo Ocular. Um teclado semelhante ao de um cravo comum comandava o jogo dos tubos e a aparição de cores, ou de pinturas, às vezes de uma lanterna de vidros coloridos. O padre Castel pretendia dar aos cegos uma boa ideia das cores. Voltaire e J.-J. Rousseau registraram as experiências do padre Castel de modo desfavorável (o primeiro falava em se “convidar todos os surdos de Paris para o concerto”).

O padre Castel utiliza em seus trabalhos relações que já na Antiguidade greco-romana haviam sido estabelecidas: a ideia de peso, de gravidade, atribuída à cor negra, era do planeta Saturno e das notas mais graves. O amarelo, cor do Sol, é atribuído à quinta (dominante), grau determinante da harmonia medieval. O verde, cor de Vênus, participante do azul e do amarelo, se situa a igual distância destas cores. E assim por diante...

Os românticos, no século XIX, fizeram uso poético destas relações. Os simbolistas mais ainda. Baudelaire, no seu poema “Correspondences”, levanta equivalências de sensações entre perfumes, cores e sons. Fala de “perfumes frescos como a carne de crianças, doces como os oboés, verdes como os prados, e outros corrompidos, ricos e triunfantes.” Baudelaire, num estudo sobre Edgar Alan Poe (Notes nouvelles sur Edgar Poe, 1857), diz: “É este admirável, este imortal instinto do Belo que nos faz considerar a Terra e seus espetáculos como uma exposição sumária, como uma correspondência do céu... É tanto pela poesia e através da poesia como por e através da música que a alma entrevê os esplendores que estão além do túmulo.” A função do poeta, para ele, seria a de captar intuitivamente estas misteriosas correspondências. Cores e sons, tudo expresso por uma analogia recíproca, o mundo como uma complexa e indivisível totalidade. Os sons sugerindo cores e as cores dando ideias de melodias. Nesta linha de pensamento, há que se destacar também o aspecto olfativo da poesia de Baudelaire.

Outro que explora esse mundo de relações é Arthur Rimbaud (1854-1871), um dos maiores “casos” literários de todos os tempos, aquele que tentou apreender o universo pela magia das sensações e por estados alucinatórios que se aproximavam da vidência, tudo traduzido por uma linguagem única. Ritmos, sonoridades, transmutação de elementos verbais, alquimia da palavra, imagens excepcionais. Rimbaud fala de: A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles.

Muitos acham que quando Rimbaud compôs este poema, "Voyelles" (1871) ele estaria se lembrando de um alfabeto em cores com o qual teria aprendido a ler. Daí a sua elaboração de um sistema de correspondências entre sons e cores.

Hector Berlioz (1803-1869), o genial compositor de A Sinfonia Fantástica, num tratado de orquestração que escreveu, ao descrever o timbre de instrumentos, faz relações entre os sons graves da flauta e as cores escuras; fala em “negros acentos da clarineta” etc.

Uma das propostas mais abrangentes da questão sinestésica foi elaborada pelo compositor russo Alexander Scriabin (1872-1915). Admirador de Chopin e depois ligando-se à Metafísica e à Teosofia, às filosofias de Nietzsche e de Schopenhauer e à música de Richard Wagner, procurou sistematizar em termos musicais as correspondências entre cores e tons.

A Teosofia é uma forma sincrética de religião, ciência e filosofia, tendo por base principalmente o Budismo e o Hinduísmo. Foi fundada em New York em 1875 por Helena Petrovna Blavatsky. Ensina o conceito panteísta de Deus e a perfectibilidade do ser humano através de uma série de reencarnações. Scriabin tentou traduzir em música os conceitos teosóficos, a partir das relações entre divinos raios cósmicos, os chakras e cores.

O raio nº l (vontade divina) tem relação com a garganta (centro que no corpo humano sustenta a frequência do raio) e com a cor azul. O raio nº 2 (sabedoria divina), topo da cabeça, amarelo. O raio nº 3 (amor divino), coração, cor-de-rosa. O raio nº 4 (pureza divina), base da espinha, branco. O raio nº 5 (ciência divina), terceiro olho, verde. O raio nº 6 (paz divina), plexo solar, púrpura e ouro. O raio nº 7 (liberdade divina), sede da alma, violeta.

Scriabin sonhou em partir para a Índia. Lá comporia um Mistério, a ser encenado num templo circular próximo de um lago, somente para um público adepto. Sua morte o impediu de realizar o intento. Deixou um rascunho da primeira parte da obra, O Ato Preliminar. A Sinfonia, isto é a composição musical, com piano solista, teria o nome de Prometeu. A interpretação estava ligada a uma partitura de cores, executada juntamente com a partitura musical. O executante manobraria um teclado que comandaria a projeção das cores. Em 1911, houve uma tentativa de encenação de Prometeu. Só em 1915 a obra foi encenada na íntegra em New York. Depois dessa encenação, nunca mais. Só a parte musical é apresentada, não se levando em conta a partitura das cores.


Mais recentemente, um escritor francês, Boris Vian (1920-1959) tentou o que chamou de pianococktail. A cada nota a correspondência de uma bebida alcoólica, um licor, um arômata. O pedal forte corresponderia ao ovo batido, o pedal fraco ao gelo, e assim por diante... Em 1968, num espetáculo de cabaré, a obra de Vian foi apresentada.

Arthur Rimbaud, numa famosa carta de 1871, a um amigo, escreveu: "o poeta torna-se vidente mediante um longo, imenso e racional desregramento de todos os sentidos.” Não é a exaltação de um frenesi sensual, mas é a ideia de mostrar que por determinadas práticas é possível chegar a um “desregramento” do próprio conhecimento sensível, que se tornará então capaz de conhecer e de agir em outros planos. O tantrismo procura, na Índia, de certa forma, este desregramento. Um sentido agindo por outro.

Para que as suas "vertigens" fossem fixadas, Rimbaud elabora um verbo poético acessível a todos os sentidos, uma língua que resumisse perfumes, sons e cores. Era a chamada Alquimia do Verbo; ele foi do verso livre aos poemas em prosa (Iluminations) através de efeitos de sonoridade que criaram uma impressionante magia verbal.

Estas ideias sinestésicas estão, por exemplo, na observação de J-J Rousseau quando ele diz: “cada sentido possui seu próprio campo. O campo da música é o tempo; o da pintura, o espaço. Multiplicar os sons dos ouvidos ao mesmo tempo ou desenvolver as cores umas após outras será mudar-lhes a economia. Colocar o olho no lugar do ouvido e vice-versa.”

Em antigas tradições se procuram técnicas para fragmentar a sensibilidade, alargando, com isso, as possibilidades de nossa percepção, unindo a música à luz, luz a imagens, imagens a palavras. Ver com os ouvidos, ouvir com os olhos.

Uma aplicação destas maneiras de ver, ouvir, sentir, é a criação de uma dialética – perguntas e respostas – para nos relacionarmos de modo diferente com o que nos cerca. Interpretar sons, imagens, odores, sinais através de processos indutivos como, por exemplo, os antigos gregos tentaram com as suas quatro mânticas, a profética (Apolo), a poética (Musas), a mistérica (Dioniso) e a erótica (Eros).