quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

DOS PECADOS - LUXÚRIA II

                               

AGONES ( CERÂMICA)
Corinto era uma cidade portuária muito rica, esplendorosa, com milhares de habitantes na antiguidade, sede de jogos (agones) famosos, em homenagem ao deus Poseidon, com dois grandes templos de Afrodite e outro de Apolo. Cerca de mil sacerdotisas trabalhavam nos dois templos da deusa, nos quais algumas centenas praticavam, como um serviço sagrado, a prostituição, a chamada hierodulia, literalmente, escravidão sagrada.


ACROCORINTO
A visão que os cristãos tinham de Corinto, alimentada pelas epístolas paulíneas, era a de que na cidade se praticava a idolatria e de que nos cultos de Afrodite, sobretudo no templo da deusa que ficava no topo da cidade (Acrocorinto), se incluíam ritos sexuais condenáveis. Isto significava para eles que a cidade estava dominada pela imoralidade e pela corrupção generalizada. Os cultos pagãos, como São Paulo constatou, estavam invadindo os cultos cristãos. Paulo falou muito sobre o homem natural e sobre o homem espiritual, sendo ímpio o primeiro e controlado pelo Espírito Santo o segundo. Impossível para a Igreja então nascente, qualquer contacto entre os dois.




A luxúria de Corinto, conforme Paulo observou, desvalorizava o casamento. Embora fosse considerado como instituição divina, o casamento, para Paulo,  deveria, se possível, ser evitando, mantendo-se o católico solteiro, para melhor servir a Deus, principalmente em Corinto, onde, dizia Paulo, os cultos a Afrodite eram só orgia e depravação. O que chama atenção nas diatribes de Paulo principalmente contra as mulheres pagãs é a sua severidade. Em Corinto, como se sabe, o poder feminino era muito grande, algo muito semelhante ao que se tivera em Creta, uma espécie de ginecocracia, apesar do governo da cidade ser ocupado por reis.




O que muito incomodava Paulo em Corinto é que as mulheres da cidade, a maior parte da sua população feminina, não usava véus, andava nas ruas de cabeça descoberta. A mulher, para Paulo, deveria sempre usar véus, que simbolizassem submissão ao mundo masculino, seja a um pai, a um irmão, a um marido ou a algum parente masculino na falta destes. Além do mais, as mulheres de Corinto gostavam de usar os cabelos curtos ou mesmo optavam muitas por usar a cabeça raspada, mas sempre, em qualquer circunstância,  muito bem vestidas, maquiadas, enjoiadas e perfumadas. 


ÁGAPE .
Outro grande problema para Paulo era que nos templos pagãos as refeições eram feitas em comum, em ambientes onde se comia e bebia muito, todos se confraternizando, festas que muitas vezes levavam a excessos, a desregramentos de conduta. Paulo sempre teve receio que esse clima descontraído do ágape afetasse a vida dos cristãos. Diante disso, ele sempre afirmou que a ceia do Senhor deveria ser feita com reverência, ordem e santidade. Quando um cristão fosse convidado para fazer uma refeição na casa de um pagão deveria comer de tudo sem perguntar. Entretanto, se o anfitrião dissesse que a carne consumida era proveniente de um sacrifício a ídolos, o cristão deveria recusá-la, porque ao comê-la tal gesto poderia ser interpretado como adesão à idolatria. 


ADORAÇÃO  AFRODITE ( TIZIANO VECELLIO, C.1516 )

Quando Paulo andou por Corinto, estava em alta, nos estudos filosóficos que se ministravam em muitas cidades gregas, as teses gnósticas, que sempre valorizaram o conhecimento sobre o mundo, a natureza, a ser buscado pelo homem, como uma forma de se obter uma vida melhor. Paulo colocava diante dessa maneira de pensar a fé no reino dos Céus, uma vida no além, sobretudo. 

O gnosticismo defendia a criação do mundo por etapas, por gradação, tese muito semelhante à dos sábios védicos, o que contrariava frontalmente a ensinada pelos cristãos. Para Paulo, o conhecimento humano nunca poderia levar à santificação do homem, pois, em muitos casos, também abonava o pecado. A filosofia (grega), concluía Paulo, nunca poderia ser usada para a edificação da Igreja católica, pois jamais lhe daria firmeza. Para ilustrar o que dizia, afirmava que embora tivesse escapado do Egito, uma poderosa manifestação de Deus, o povo de Israel se perdera pelo fato de ter se deixado levar por tentações diversas.

CORTEJO   DIONISÍACO ( BAIXO RELEVO , MÁRMORE )

Dioniso era o deus da energia universal, ligado à natureza, ao mundo vegetal e animal, energia que se encontrava num perpétuo devenir, sempre se transformando, fazendo com que as formas aparecessem e desaparecessem. Como tal, era o deus das metamorfoses, das mudanças, das renovações sazonais, e, acima de tudo, mestre da fecundidade animal e humana. Era nesta condição que adquiria o nome de Faleno, simbolizado pelos animais que representavam as espécies prolíficas, como o touro e o bode. 


MISTÉRIOS DE ELÊUSIS
Socialmente, as propostas dos cultos dionisíacos falavam de libertação, do rompimento de fronteiras, da supressão de interdições, de tabus, para que a energia universal pudesse circular, renovando-se sempre. Para que isto acontecesse, nos cultos dionisíacos, cujo melhor exemplo estava nos Mistérios de Elêusis, tínhamos os ritos orgiásticos, que levavam ao êxtase (estar fora, esvaziamento interior, literalmente) e ao entusiasmo (deus em nós, literalmente). 


DIONISO
O grande dinamizador dos ritos orgiásticos de Dioniso era o vinho, uma “invenção” sua. Dioniso libertava o homem do inferno em que ele se aprisionava, de modelos de vida cristalizados. A transcendência que ele propunha falava do rompimento de inibições, de imposições sociais e político-religiosas que Apolo representava, acenando com uma regressão a estados que poderíamos chamar de primordiais para que, a partir deles, o homem pudesse partir para outras e renovadas formas de existência. O discurso cristão era totalmente contrário a tudo isto. O centro de gravidade proposto pela Igreja católica, como disse Nietzsche, era colocado fora da vida, no além. 

São Paulo incluiu  no cristianismo uma doutrina de salvação, de imortalidade da alma, e rebaixou o exemplo que poderíamos aproveitar da história de Cristo e de seus ensinamentos como vida moral. O importante para Paulo não era tanto viver de acordo com os ensinamentos de Cristo, mas, acima de tudo, aceitá-lo como salvador a fim de se garantir uma vida eterna de recompensas no paraíso. Fácil perceber que caberia à Igreja que Paulo e outros estavam a fundar a intermediação entre a morte e a paradisíaca vida eterna. A princípio um discurso para deserdados e excluídos socialmente, o cristianismo pouco a pouco foi avançando sobre as classes mais abastadas, que viram nele um poderoso instrumento de contenção daqueles, o mesmo procedimento, aliás, que a elite grega tentou adotar com relação à chegada dos cultos dionisíacos à polis grega.


DEMÉTER
A história de Dioniso, seu nascimento, vida, morte, principalmente a sua paixão (morte pelos titãs), e renascimento foi certamente aproveitada pelos primeiros padres da Igreja para estabelecer a história de Cristo. Dos Mistérios de Elêusis, tutelados por Deméter e Dioniso, saíram os dois grandes símbolos que constituem a base da eucaristia, sacramento central da Igreja católica, segundo o qual, através das palavras pronunciadas por um sacerdote oficiante, o pão (Deméter) e o vinho (Dioniso) se transubstanciam, respectivamente, no corpo e no sangue de Cristo. 

ADÃO  E  EVA
( AFRESCO MEDIEVAL )
No cristianismo primitivo, nas palavras de São Pedro, as mulheres não deveriam ornamentar-se com cabelos trançados, braceletes de ouro e roupas finas, mas com a joia imperecível de um espírito sossegado e gentil, o que é muito precioso diante de Deus. São Paulo, por sua vez, sempre defendeu que a mulher havia sido criada para benefício do homem e deveria aceitá-lo em todas as suas coisas; e que ela não deveria também ensinar na Igreja. A mulher deveria cultivar o silêncio e submeter-se docilmente à instrução masculina, pois, do contrário,repetiria o papel de Eva, aquela que induziu Adão à transgressão. 

No século XX, quando voltou a discutir a questão feminina, como o fez algumas vezes em sua história, o Vaticano declarou que a Igreja Católica Apostólica Romana não se considerava autorizada a admitir mulheres na ordenação sacerdotal. A justificativa para assim se posicionar era a de que Cristo não convocara nenhuma mulher para o seu apostolado, nem mesmo a Virgem Maria. Os sacerdotes deveriam possuir uma semelhança natural com Cristo e, se uma mulher celebrasse a missa, seria difícil ver nela a imagem de Cristo.


TERTULIANO
Muito citada, a frase de Tertuliano (sécs. II-III), cujos escritos constituem o marco inicial da teologia cristã latina, demonstra bem como os primeiros padres da Igreja julgavam a mulher: Tu és a porta do Diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina. Não só a consideravam um ser negativo como a viam como a representante de uma tentação constante. Como tal, os homens deveriam se afastar dela, evitá-la, se quisessem se manter puros no caminho de Deus. 

Os elementos constitutivos desta visão sobre o feminino foram herdados da antiguidade e amplificados pelo cristianismo na Idade Média quando seus principais representantes a consideraram a mulher uma serva de Satã e fonte de pecados, dentre os quais sobretudo a luxúria. Esta posição da Igreja vai se refletir inclusive na arte, em esculturas, poesias etc. 

BRUXA ( GOYA , 1746 - 1828 )
A estes elementos juntavam-se as discussões que apontavam a mulher como a introdutora do mal no mundo. Este discurso misógino, como se sabe, culminará com a caça às bruxas. Chama-se Malleus Maleficiarum (literalmente, O Martelo das Feiticeiras), publicado em 1487, o manual preparado pela Igreja católica para definir uma estratégia de culpabilização e de ataque à mulher. Durante 200 anos, entre os

séculos XVI e XVII, mais de dois milhões de mulheres foram mortas acusadas de bruxaria. O texto, que gerou uma incontrolável histeria coletiva, chegou a ser tão popular que, com exceção da Bíblia, se tornou no livro mais vendido da Europa. O Malleus Maleficiarum gerou uma visão tão negativa do mundo feminino que seus deletérios efeitos perduram até hoje. 

As limitações e os preconceitos que cercam a figura feminina, através de discursos religiosos, políticos e pretensamente científicos, garantiram a sua indiscutível subordinação ao mundo masculino, cujos mais notáveis efeitos estão hoje no mercado de trabalho. Com isso, vem se perpetuando, sob a égide de um controle religioso, a submissão social e política da mulher ao mundo masculino. 

A visão que a Igreja católica tem da mulher e do pecado é, ainda hoje, fortemente inspirada pela Idade Média. Compreenda-se: no mundo medieval europeu, na alta Idade Média, o cumprimento dos preceitos da Igreja católica era razoavelmente controlado, isto é, conheciam-se os pecadores, embora, os seus sacerdotes, semiletrados, se vissem, na maior parte das vezes, principalmente em cidades um pouco maiores, diante de uma extensa gama de pecados que nem em livros eram citados. 

PENITENTES ( JUAZEIRO , BAHIA )
Para orientar-se com relação aos pecados, os sacerdotes católicos valiam-se dos chamados penitenciais, catálogos de pecados e de penas expiatórias, destinados a guiá-los no exercício de seu ministério, em especial na administração da penitência. Esses catálogos tiveram grande importância quando pensamos em pecado, culpa e penitência. Em geral, os penitenciais eram obras anônimas, formados por extensas listas, com sua valorização moral e sua pena ou castigo correspondente.

Sabe-se que o pecado mais confessado durante a alta Idade Média era o da emissão seminal involuntária, que gerava uma pena de sete dias de jejum, se fosse involuntária. Se auxiliada manualmente (masturbação), vinte dias. No caso de um sacerdote que se masturbasse num lugar sagrado, a pena atingiria cerca de trinta dias, elevando-se para cinquenta no caso de bispos. 

O maior pecado cometido era a contracepção, um pecado da luxúria, ou seja, a adoção de métodos que evitassem a fecundação da mulher. Este pecado era sumamente grave se envolvessem “venenos geradores da esterilidade”, o intercurso anal ou oral (seminem in ore, sêmen na boca) ou o coitus interruptus, pecados quase tão graves quanto o do homicídio.

O jejum, quando fixado, como penitência podia ser praticado, com exceção do pão e da água, pela abstinência de alguns alimentos, da carne, por exemplo,ou de bebidas. Uma alternativa surgiu no séc. XI, quando se estabeleceu o chicoteamento do culpado pelo sacerdote paroquial, nessa penitência se incluindo o canto de salmos penitenciais. Por exemplo, um homem que tivesse uma ejaculação noturna involuntária, deveria levantar-se e entoar sete salmos. Pela manhã, ao se levantar mais trinta salmos.

SÃO  JERÔNIMO ( M. CARAVAGGIO , 1571 - 1610 )

O aborto com até quarenta dias da concepção (antes que o feto houvesse adquirido alma humana) era menos pecaminoso que a contracepção. Segundo São Jerônimo, as mulheres promíscuas que tomassem poções para provocar o aborto e que morressem cometiam tríplice assassinato: eram suicidas, adúlteras com relação a Cristo (seu esposo celeste) e assassinas do próprio filho por nascer. 



SODOMA , PINTURA MURAL .

Os mais favorecidos pela Igreja, quanto às penas, sempre foram os heterossexuais. Quanto aos homossexuais, mão pesada. A sodomia, coito anal entre indivíduos do sexo masculino ou entre um homem e uma mulher, era um vício tão abominável que, como menciona a Bíblia, a cidade, Sodoma, onde a imoralidade fora perpetrada, foi destruída pelo fogo e pelo enxofre.




A homossexualidade sempre se constituiu num grande perigo para a Igreja católica, pois ela sabia que em suas fileiras havia muitos homossexuais. No século VI, medidas conciliares determinaram, com relação à regra beneditina, que monges nunca deveriam dormir aos pares numa mesma cama, mantendo-se, além do mais, acesas a iluminação dos dormitórios. Isto não impediu, contudo, que os mosteiros fervilhassem de sodomia, que sempre foi um problema menor diante da heterossexualidade do clero e da zoofilia, muito disseminada.

A atitude básica da Igreja, com relação aos pecados acima apontados, cometidos intramuros, foi de leniência, ao reconhecer que eles comportavam inúmeras gradações, num campo vastíssimo de expressão. As penalidades impostas, sempre temperadas de misericórdia, tornaram-se muito complexas. A idade do pecador, sua ocupação (se monge, maior a severidade), sua posição, se ativa ou passiva, a frequência da transgressão, sua extensão e muitos outros itens eram levados em consideração, em intermináveis discussões. 

Exemplos (para transgressores abaixo de 20 anos) – Beijo simples: oito jejuns especiais; beijo licencioso, sem ejaculação, oito jejuns especiais; beijo com ejaculação e carícias, dez jejuns especiais. Masturbação mútua para homens acima de 20 anos – Vinte a quarenta dias de penitência. Cem dias numa segunda transgressão. Se habitual, os envolvidos seriam separados e fariam penitência por um ano. Conexão inter-femural (inserção do pênis entre as coxas do parceiro passivo), penitência de dois anos. Felação (intercurso oral), quatro anos de penitência. Na reincidência, sete anos. Sodomia (intercurso anal), sete anos de penitência. 


SANTO  AGOSTINHO ( VITRAL )
Quem endureceu a atitude da Igreja com relação aos homossexuais foi Santo Tomás de Aquino, o crime que destruíra Sodoma e Gomorra pelo fogo e pelo enxofre. Tomás partira, para isso, de uma observação de Santo Agostinho, a de que os órgãos sexuais foram destinados pelo Criador especificamente para a reprodução, não podendo ser usados de outra maneira para outros fins.