domingo, 1 de dezembro de 2019

DOS PECADOS - A AVAREZA - II

                            

O  AVARO
Harpagão é a tradução, em português, de Harpagon, personagem da peça L´Avare (O Avarento), criado por Molière a partir do nome das Harpias,  monstros femininos, conhecidas abastecedoras do Inferno (Hades). Seu nome vem do verbo harpadzein, arrebatar. Eram elas responsáveis pelas mortes súbitas daqueles que viviam presos às suas desregradas paixões, pelo dinheiro, pela comida, pela bebida, pelos obsedantes prazeres mundanos. 



Jean de la Fontaine (1621-1658), o inesquecível escritor francês, muito conhecido pelas suas fábulas, fez da formiga um símbolo da avareza, do egoísmo, ainda que apresentando-a com traços positivos, ao reconhecer a sua atividade industriosa, a sua vida organizada em sociedade, a sua previsão. Em outras tradições, essa mesma ideia aparece, como no oriente, onde a formiga é vista tanto como símbolo de uma vida industriosa como de um excessivo apego a às coisas e aos bens do mundo.  
 
Abaixo o clássico  A Cigarra e a Formiga, do nosso grande escritor: 

Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga
Que morava perto dela.

Rogou-lhe que lhe emprestasse, 
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Até voltar o aceso estio.

"Amiga, diz a cigarra,
Prometo, à fé de animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o capital.

A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
"No verão em que lidavas?"
À pedinte ela pergunta.

Responde a outra: "Eu cantava
Noite e dia, a toda hora
Oh! Bravo! Torna a formiga;
Cantavas? Pois agora dança!"


"TU  CANTAVAS ! É  ISSO  AÍ . BEM ! DANÇA  AGORA" 

Por trás da avareza, esconde-se o chamado complexo oral, que produz tipos humanos cujos impulsos básicos existenciais os orientam sempre para a absorção, para uma disposição irrefreável de captar, dominada pelo ter o mais possível. A estética da avareza é totalmente dominada pelo elemento terra (sensação), nela prevalecendo o peso, o volume, a forma, a cor, o valor, a quantidade, a durabilidade, o lucro etc. Esta discussão nos remete de certo modo ao verbo latino avere, querer muito, desejar desesperadamente, do qual saiu a avaritia. A rigor, não podemos considerar este querer muito, este desejar desesperadamente, como pecado. A questão maior está certamente no que se faz para esse querer muito nos tomar e o que vem com ele, como vimos, aquilo do que esse querer se nutre para ter sucesso, que acaba impedindo qualquer troca ou abertura com relação ao nosso próximo.  

DINHEIRO
O dinheiro, sob o ponto de vista ético, é o objeto da cupidez por excelência, que pode provocar, por isso, o aviltamento de todas as consciências. Não é por acaso que em todas as sociedades encontramos tantas simpatias, talismãs, rezas e orações para atraí-lo, pois todos o desejam. Eis alguns exemplos infalíveis: toda vez que alguém comprar uma roupa, deve,  antes de usá-la, colocar num de seus bolsos, e ali deixá-la, uma moeda. É dinheiro certo! Para se ter dinheiro o ano todo, recomenda-se que se dê uma volta em torno da fogueira de São João, dizendo em voz baixa uma destas três orações, o Pater, a Ave ou o Credo, e nela se lançando uma moeda. Sigmund Freud, como um bom taurino, numa carta enviada à sua noiva, Martha, em julho de 1882, pede-lhe que coloque um pequeno pedaço de metal no seu porta-moedas, pois todo metal, segundo a tradição, tem a propriedade de atrair muitos outros, dinheiro, no caso.
     
Dinheiro é meio de pagamento, na forma de moedas ou cédulas, emitido e controlado pelos governos de cada país. A palavra vem de denarius, latim, referindo-se a uma moeda romana que valia dez ases (unidade monetária romana). Outros nomes para designar o dinheiro: arame, bolsa, cabedal, capim, caraminguá, cascalho, cobre, erva, gaita, grana, metal, numerário, pecúnia, pila, prata, tostão, tubos, tutu, verba, prata etc. 

De um modo geral, todos se sentem incomodados ao falar de dinheiro. Pensa-se nele todo o tempo, mas ninguém gosta de falar dele. Se interrogamos alguém sobre seu salário, sobre seus lucros, sobre seu patrimônio, essa pessoa geralmente desconversa. Se insistimos, muitos enrubescem até as orelhas, como se tivéssemos penetrado em sua intimidade mais profunda, mais secreta. Este pudor é geral em quase todas as pessoas. Trata-se de um tabu, o último talvez que persiste e que continua a impor silêncio.

A palavra dinheiro é considerada tão chocante que mesmo a imprensa especializada a coloca atrás de nomes neutros, tais como lucro, interesse, dividendo, economia, provento. valor, renda etc... Mesmo os profissionais quando recebem ou pagam, não falam em dinheiro, mas referem-se a salário, recompensa, soldo, honorário, estipêndio, remuneração, tarifa, emolumentos, ordenado, paga, comissão, retribuição, contagem, embolso, féria, jornada,  vencimento  e outros sinônimos.


O dinheiro é tanto objeto de desprezo e repulsa como do desejo e da veneração ao mesmo tempo. Toleramos com dificuldade que um indivíduo receba os benefícios das riquezas que ele criou. Instintivamente, sentimos também repulsa pelo contato físico com o dinheiro. Quanto mais subimos na escala social, menos desejamos "sujar" as mãos diretamente com ele. Acerte com a secretária, por favor, é a mensagem, às vezes envergonhada. Se quisermos nos consolar um pouco, fiquemos com a frase de J.J. Rousseau: A infelicidade não está na privação das coisas, mas na necessidade que temos delas

Qualquer que seja o enfoque, porém, a avareza é sempre uma patologia do ter. O ter diz respeito às necessidades concretas da vida, necessidades estas que correspondem às satisfações das exigências do corpo (alimentação, excreção, sexo, abrigo etc). Mas, por razões as mais diversas, muitas vezes tendemos a acumular bens materiais, informações, conhecimentos os mais variados e chegamos mesmo, em casos extremos, a guardá-los egoisticamente sem desejarmos compartilhá-los com ninguém. É a perversão da dimensão do ter. 

A era industrial destacou o valor-coisa além de retirar do ser humano o trabalho e impingir-lhe um emprego. Temos a busca de estabilidade, o anseio pela solidez. Esta é uma das características do avaro, que persegue a posse, mas esta apenas não o satisfaz. Precisa seguir acumulando, sempre com o pavor de perder e de não conseguir continuar concentrando nesse incansável afã. Seu desejo, portanto, não é jamais satisfeito. Somemos a tudo isto a teoria econômica atualmente predominante em nossa sociedade, que abre caminho para que a avareza seja considerada como um valor de base, quando na verdade ela é uma patologia. Privilegia-se o "meu" e busca-se por todos os meios transformar o não-meu em meu. O que interessa é captar, estocar, entesourar, conservar., guardar  sempre, cada vez mais e jamais perder.

MEU !
O avarento percebe que não é capaz de fugir deste esquema e continua seu caminho, acumulando também inseguranças e medos (inclusive de si próprio) sem cessar. Para ele, tudo se resume no "meu". É assim que, pouco a pouco, começamos a ser possuídos pelos nossos bens. Afastamo-nos, então, de nós mesmos para nos voltarmos totalmente para o ter. Passamos a preferir a "segurança" dos valores acumulados a ter que lidar com a aleatoriedade da vida. A partir de um certo momento, a finalidade não será mais apenas a de acumular haveres, mas fruir a concentração de valores como projeto de vida e venerar a avidez e a insaciabilidade, que passam a ser o próprio benefício.

A avareza, no geral, se liga às coisas sensíveis. O máximo prazer que estas coisas sensíveis podem dar tem, sobretudo, relação com o tato, o sentido por meio do qual se conhece ou percebe, usando o corpo, a forma, a consistência, o peso, a temperatura etc. de outro corpo ou de algo. Decorrem dessa postura diante da vida, em muitos tipos avarentos, duas características notáveis, o egoísmo e a indiferença, que podem se estender a outros aspectos de sua vida. Daí muitos também serem vitimados pelo complexo oral, que produz tipos humanos cujos impulsos básicos existenciais os orientam para a absorção, para uma disposição insuperável de captar, dominada pelo ter o mais possível. A psicologia e a estética da avareza são totalmente dominadas pelo elemento terra (sensação), nelas prevalecendo, como se disse, o peso, o volume, a forma, o valor, a quantidade, a durabilidade etc. 


BANQUEIRO  MEDIEVAL

Na Idade Média, dava-se o nome de usura a um suplemento ilicitamente agregado ao pagamento de alguma dívida e também ao pecado que consistia na exigência deste suplemento. As restrições que a Igreja católica fazia com relação a este procedimento, cobrança de juros, na prática, já no fim da Idade Média, eram consideradas como um grande entrave a operações de crédito e, por extensão, ao desenvolvimento econômico no ocidente medieval. 


CONCÍLIO  DE  NICEIA
A proibição da cobrança de juros havia sido estabelecida pelo concílio de Niceia (325). Nos séculos seguintes, tais proibições foram reforçadas. O usurário era visto como um ladrão. A usura era um pecado superior ao da superbia, o maior dos sete pecados capitais. Contudo, a partir do séc. XII, quando a economia europeia começou a mudar (formação das cidades) a questão foi recolada. Estávamos a esse tempo às vésperas dos grandes movimentos econômicos que prepararam o advento do capitalismo moderno. A teologia medieval salvará o usurário do inferno ao considerar a cobrança de juros como um pecado venial, merecedor, quando muito, do purgatório. Com essa saída, o usurário atingiu um duplo objetivo, salvaguardar a sua bolsa na terra sem perder a vida eterna. 

ARGENTARII
A prática da usura, entretanto, se estudarmos bem a questão, perceberemos que ela é muito antiga no ocidente. Os templos de Delfos e de Éfeso foram, na realidade, os primeiros centros bancários conhecidos. A aristocracia grega guardava o seu dinheiro em Delfos, o maior centro religioso da antiga Grécia. Desde o séc. IV aC encontramos banqueiros laicos em Atenas. Eram os chamados trapezites. Em Roma, eles já eram comuns no séc. II aC. Na república romana, a atividade bancária era privilégio dos cavaleiros ou publicanos. No império, surgiram os banqueiros privados, os argentarii

A partir da baixa Idade Média, a atividade tomou grande impulso. Aos poucos, as operações financeiras acabaram se concentrando nas mãos de três segmentos: judeus, templários e lombardos.  No renascimento, as casas bancárias já estavam internacionalizadas. Juro é palavra que vem de jus, juris, direito, isto é, força, ato de submeter, de subjugar. Por trás desta palavra estão os radicais indo-europeus yeug ou yug, que traduzem a ideia de atrelar, de submeter ou de unir, encontrados em palavras como jugo, conjugar, jungir, quadriga (forma sincopada de quadriuga).


SIDHARTA   GAUTAMA

Se formos além, à língua sânscrita, temos, na Índia, Yoga, que vem de yuj, tanto uma escola de filosofia como uma técnica colocada ao alcance do homem para que ele possa controlar o seu turbilhão mental e os seus descontroles emocionais.
BUDA MEDITA
SOB A BODHI TREE
Numa tradução livre, Yoga é a “arte de atrelar cavalos, entendendo-se estes como 
símbolos do psiquismo inconsciente. Lembre-se que Sidartha Gautama  atrelou os seus cavalos, isto é, controlou a sua mente e dominou as suas emoções, iluminou-se, quando se sentou, numa noite de Lua cheia, sob uma árvore, a ashvata, literalmente, a árvore em baixo da qual os cavalos se aquietam, uma espécie de figueira (fícus religiosa).