quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

QUANDO EU MORRER




A  MORTE  DE  MARAT  ( Jacques Louis David) 

Segundo o Direito moderno, deixamos de existir com a morte. Termina com ela o status do homem graças ao qual ele era sujeito de relações jurídicas, ou seja, detentor de direitos e obrigado a realizar certos deveres. Terminam com a morte a capacidade jurídica que o homem tem de agir, de possuir e de dispor de bens, assim como as suas relações em geral como pessoa. A personalidade jurídica se extingue. Na ocorrência da morte, o que permanece é o corpo, uma coisa, que causa muito incômodo aos vivos. Para os que ficam, resta a memória do que se foi. Assim, somente o corpo e a memória continuam objeto de normas jurídicas. Ao corpo que fica, conforme o Direito público, precisa-se dar um fim a ele, pois, se tal não acontecer, ele poderá afetar a segurança dos vivos, causar-lhes doenças. Já a memória será preservada quanto a possíveis profanações, a calúnia, por exemplo, através de punições a quem contra ela atentar. Afora isto, estamos excluídos do círculo dos vivos. Não somos mais sujeitos de relações na sociedade humana, mesmo que os atos que realizamos em vida continuem a produzir  efeito.





Quando eu morrer e no frescor da lua
Da casa nova me quedar a sós,
Deixai-me em paz na minha quieta rua...
Nada mais quero com nenhum de vós!

Quero é ficar com alguns poemas tortos
Que andei tentando endireitar em vão...
Que lindo, a Eternidade, amigos mortos,
Para as torturas lentas da Expressão!..

Eu levarei comigo as madrugadas,
Pôr de sóis, algum luar, asas em bando,
Mais o rir das primeiras namoradas...

E um dia a morte há de fitar com espanto
Os fios de vida que eu urdi, cantando,
Na orla negra do seu negro manto...

Mario Quintana (1906-1984)



Jay Koppelman



TRÊS EPITÁFIOS

Ao pescador Pelagon, seu velho pai Menisco
consagrou este remo e este cesto,
lembranças do seu duro trabalho.

As cinzas de Timas aqui repousam.
Encantado antes de ter conhecido as núpcias,
a sombra azul do leito de Perséfone
muito cedo o recebeu.
Quando de sua morte, os companheiros abandonados
cortaram anéis dos seus cabelos
e os depositaram como encantadora oferenda
sobre seu túmulo amigo.

A morte te levará inteiro, jamais
sobrevivendo de ti lembrança ou pesar.
É que nunca teceste as coroas das Musas.
Errarás inominada no palácio de Hades,
aniquilar-te-ás entre os mortos que não vêem.

Safo (sécs.VII-VI AC, Mitilene, Lesbos).
(tradução CM)



 A morte de Sócrates  ( Jaques Louis David )

No Diálogo “ Fedon”, que trata da imortalidade da alma, Platão fala dos últimos momentos de Sócrates:

“Durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto dos nossos desejos! Ora, este objeto é, como dizíamos, a verdade. Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças – e eis-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! Vede, pelo contrário o que ele nos dá: nada como o corpo e suas concupiscências para provocar o aparecimento de guerras, dissenções, batalhas; com efeito, na posse de bens é que reside a origem de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente impelidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros escravos! Por culpa sua ainda, e por causa de tudo isso, temos preguiça de filosofar. Mas o cúmulo dos cúmulos está em que, quando conseguimos de seu lado obter alguma tranquilidade, para voltar-nos então ao estudo de um objeto qualquer de reflexão, súbito nossos pensamento são de novo agitados em todos os sentidos por esse intrujão que nos ensurdece, tonteia e desorganiza, ao ponto de tornar-nos incapazes de conhecer a verdade. Inversamente, obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nos há de pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando estivermos mortos, tal como indica o argumento, e não durante nossa vida!”



Andres Serrano


OS MORTOS

Na ambígua intimidade
Que nos concedem
Podemos andar nus
Diante dos seus retratos.
Não reprovam nem sorriem
Como se neles a nudez fosse maior.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)


Andres Serrano


BUDISMO MODERNO

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o abstrato agregado das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Augusto dos Anjos (1884-1914)





TUMBA DE EURÍON

Aqui, neste soberbo monumento,
Todo feito em mármore de Siene,
No meio de tantos lírios, de tantas violetas,
O belo Euríon jaz. Era rebento
De Alexandria e só contava vinte e cinco anos.
Pelo seu pai, de velho tronco macedoniano,
E, por sua mãe, dos alabarcas descendia.
Aluno de Aristoclito, com ele estudou Filosofia;
Cursou Retórica com Paro. Em Tebas aprendia
As Sacras Escrituras. De um nomo fez a
História: Arsinoé. Pelo menos isso dele nos restou,
Mas o de maior valor se foi: sua beleza
Apolínea, verdadeira epifania.

Konstantinos Kaváfis (Alexandria, 1863-1933)
(Tradução de JPPaes)



Sergey Bidun



EPITÁFIO

Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E apascentou a tarde.

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.
Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que
Possui a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.

Vinicius de Moraes (1913-1980)



Hans Baldung


Hélinand de Froidmont, poeta francês, no fim do século XII, redige um poema no qual manda a própria Morte lembrar a um certo número de pessoas a necessidade de converter-se:

Morte, vai buscar aqueles que cantam o amor
E que de vaidade se vangloriam
Como fazem aqueles que por isso te encantam
Inteiramente fora do mundo se colocam,
para que não possas derrubá-los.
Morte, tu não sabes encantá-los,
Aqueles que teu canto costumam cantar
Gerando neles o temor de Deus.
Morte, tu que aos condes e aos reis
Abrevias os anos e os meses,
Que ninguém nunca prolongar pôde:
Chartres e Châlons e Blois etc. etc...


Andrés Serrano



O DEFUNTO

Quando morto estiver meu corpo
Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
Nem os ramalhetes distintos,
Os superfinos candelabros
E as discretas decorações.

Quero a morte com mau gosto!

Deem-me coroas de pano.
Deem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
Que a vejam bem os amigos.
Que não a esqueçam os amigos.
Que ela ponha nos seus espíritos
A incerteza, o pavor, o pasmo.
E a cada um leve bem nítida
A ideia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos:
Não esqueçam destas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
Em que sexos se demoraram
Seus sabidos quirodáctilos?

Foram nelas esboçados
Todos os gestos malditos:
Até furtos fracassados
E interrompidos assassinatos.

Meus amigos, olhem as mãos
Que mentiram às vossas mãos!
Não se esqueçam! Elas fugiram
Da suprema purificação
Dos possíveis suicídios.

Meus amigos, olhem as mãos!
As minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!
Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo,
E até mesmo do meu corpo
As partes excomungadas,
As sujas partes sem perdão.

Meus amigos, olhem as partes!
Fujam das partes!
Das punitivas, malditas partes!

Eu quero a morte nua e crua,
Terrífica e habitual,
Com o seu velório habitual.

Ah! O seu velório habitual!

Não me envolvam em lençol:
A franciscana humildade
Bem sabeis que não se casa
Com o meu amor da Carne,
Com o meu apego ao Mundo.

E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
Calça listrada, plastron,
E os mais altos colarinhos.

Deem-me um terno de Ministro
Ou roupa nova de noivo.
E assim, solene e sinistro,
quero ser um tal defunto,
um morto tão acabado,
tão aflitivo e pungente,
que sua lembrança envenene
o que restar aos amigos
de vida sem minha vida.

Meus amigos, lembrem de mim.
Do pobre, terrível morto
Que vai se deitar pra sempre.
Calçando sapatos novos!

Que vai como se vão
Os penetras escorraçados,
As prostitutas recusadas,
Os amantes despedidos.
Como os que saem enxotados
E tornariam sem brio
A qualquer gesto de chamada.

Meus amigos, tenham pena
Senão do morto, ao menos
Dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
Sapatos pretos de verniz.

Olhem bem estes sapatos
E olhai os vossos também.

Pedro Nava (1903-1984)



Charles Allan Gilbert



Magritte


Verrà la morte e avrà i tuoi occhi
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come um vecchio rimorso
o um vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno uma vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Cosí li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla.

Cesare Pavese (1908-1950)