terça-feira, 27 de setembro de 2011

ULYSSES





Dublin, 16 de junho de 1904. Bloomsday. Dizer que Leopold Bloom é o Ulysses do título; que Stephen Dedalus é Telêmaco; que Marion, a mulher de Bloom, é Penélope; que Gertie MacDowell é Nausicaa, e assim por diante, é simplificar demais. Se assim fosse, bastaria tomar a Odisseia e comparar os episódios. É certo que Joyce (e nisto podemos ver a sua virtuosidade) seguiu a epopeia de Homero para fazer o arcabouço da sua novela. Mas os episódios da Odisseia são apenas as coordenadas pelas quais Joyce pode construir a sua própria visão da vida: a ação cobrindo um determinado dia, numa determinada cidade. E temos a grande crítica da vida do século XX, uma representação que, fechando a porta do heroico, abre-nos a da idade do muflisme (Gustave Flaubert).

Ainda que a base seja homérica, Joyce com o Ulysses vai mais adiante, pois expressa o universal no particular; Bloom, Dedalus e Marion Bloom tornam-se as modernas versões de arquétipos-figuras que nós vemos por trás deles. Por outro lado, Ulysses nada esclarece ou acrescenta à epopeia de Homero, como tampouco esta, exceto naturalmente a parte estrutural, nenhuma luz joga sobre a novela de James Joyce. Temos então no paralelo, talvez, a melhor forma para o entendimento do Ulysses. E parece que é isso mesmo que Joyce pretendia. Dedalus, o jovem poeta, que é também o personagem central de uma novela autobiográfica, A Portrait of the Artist as Young Man, não é apenas Telêmaco, mas Hamlet ou um dos aspectos de Hamlet. Dedalus, tendo repudiado a mãe e renunciado ao pai anda à procura de alguém que o substitua, um pai espiritual; Bloom, cujo filho morrera na infância, precisa também de alguém que ocupe esse vazio, e, de um modo simbólico, ambos, Dedalus e Bloom, encontram o que desejam em cada um quando se conhecem.

JAMES JOYCE

Acima de tudo, porém, acima de qualquer interpretação, entendemos que Joyce pretendeu mostrar na sua novela toda a vida e toda a História, encerrando-as num certo dia de 1904, em Dublin. Seria absurdo ver a novela como um simples panorama do horror da vida moderna, "a suja Daily Mail era", como Ezra Pound queria. Joyce escreveu, isso sim, numa escala gigantesca, o Between the Acts, de Virginia Woolf, muito embora Ulysses preceda aquela novela de cerca de vinte anos. Estamos diante da vida, nos dois extremos: nascimento e morte. Quando, por exemplo, Bloom está com os estudantes de medicina na maternidade do hospital o episódio é relatado por meio de uma série de paródias da língua inglesa, desde as suas mais arcaicas formas até as mais modernas manifestações do jornalismo. Virtuosidade gratuita? Não. Os estudantes estão à espera do nascimento de uma criança e as paródias dos sucessivos estágios do desenvolvimento da linguagem são o meio de Joyce espelhar o desenvolvimento do embrião no útero. A intenção formal é clara. Joyce procura transmitir ao leitor a sensação de simultaneidade. Nosso cérebro opera em duas dimensões: tempo e espaço. A máquina fotográfica, que não "pensa" as imagens, atua só no espaço, fazendo um registro simultâneo, sem necessidade de recorrer ao tempo. A mente humana, pelo contrário, precisa do tempo para efetuar as mudanças. Agora a pergunta: será indispensável o tempo à mente humana? Sabemos que alguns cérebros conseguem com uma velocidade notável, dependendo, é claro, do grau de cultura e da agilidade mental, passar de uma ideia a outra ou de uma imagem a outra. O problema é de aceleração. Em certas páginas do Ulysses, Joyce emprega-a de tal maneira que um só acontecimento da novela encerra todos os demais da sua espécie e a história toda é recapitulada num só dia. É a ubiquidade.

"Local" como nenhum outro, o livro quase que poderia ser tomado inteiramente como um guide-book de Dublin. A ficção ainda não nos deu nada de igual. Ao recriar com tanto cuidado e nos mínimos detalhes a sua cidade, Joyce transmite-lhe uma intensidade de vida que jamais poderemos pensar nos personagens sem ver Dublin como que os integrando.

As três grandes figuras do livro, nós as conhecemos pela introspecção, variando o meio que Joyce utiliza para nos pôr a par da vida interior de cada uma delas. Nas novelas de Virgínia Woolf, os personagens tendem a pensar e experimentar o momento como a própria autora o faz; eles dividem a sua sensibilidade e o seu modo de apreensão. Por Ulysses, é impossível dizer o que é a sensibilidade de Joyce ou qual é o seu modo de apreensão. Stephen Dedalus, em A Portrait of the Artist as Young Man, refere-se ao fato, explicando que "O artista como o Deus da criação permanece dentro ou atrás ou além ou acima do seu trabalho manual, invisível, fora da existência, indiferente, cortando as suas unhas". É essa a situação de Joyce, que está fora, ou quase, da existência do Uliyses. Bloom, Marion e Stephen Dedalus pensam, sentem e falam de diferentes modos e num estilo tão diverso como o são realmente.

Sem dúvida uma das mais surpreendentes qualidades de Ulysses é a variedade com que Joyce apresenta os seus personagens e as cenas. Talvez resida aqui a dificuldade de se ver o livro como um todo. Todavia, foi justamente esta extrema diversidade que permitiu a Joyce dar à sua novela a qualidade sonhada por Flaubert, que era de transmitir à prosa o ritmo do verso e descrever a vida comum como são escritas as histórias e as epopeias. E Joyce o conseguiu, além de criar uma linguagem nova. Se no verso é poeta menor, na prosa Joyce chega à genialidade quando nos transmite o sentido e a contextura de certas cenas e atmosferas, como acontece, por exemplo, logo no início da novela. Na cena da evocação da manhã, as frases parecem que imitam a coisa descrita; dão-nos a impressão de estarmos dentro da mente de Joyce.

ULISSES E AS SEREIAS

Para o pensamento escolástico de Joyce, filosofia significa Aristóteles, enquanto vida imaginativa quer dizer Odisseia. Este contraste entre Homero e Aristóteles é que mantém a peculiar tensão entre prosa e poesia, teoria e mito, "unidades" e universalidade, tempo e eternidade, existentes no Ulysses. Não se trata de um livro cômico, mas de uma grande comédia, no sentido que tem a visão de Dante: um reflexo total da existência onde se entrelaçam todas as tensões humanas. Neste particular é bastante significativo o fato de Joyce ter anotado: Tragedy is the imperfect manner and comedy the perfect manner in art. Não que em Ulysses falte a tragédia. Ela lá está, como o homem moderno mais a sente: a solidão e a inelutável, irônica e exuberante comunhão da carne. Marion Bloom, deitada na cama, é o ponto silencioso ao redor do qual toda a máquina gira, o lugar onde as paralelas se encontram e os contrários coincidem. Ela é o Primum Mobile do cosmos joyceano. A vida é um emaranhado de aspirações masculinas e de interesses que se chocam, porém o monólogo de Marion Bloom continuará para sempre.

Por isso, nós nunca nos identificaremos com os personagens de Joyce. Eles são independentes, têm vida pró¬pria, sofrem pela sua condição humana e não pelos seus pecados; vivem no seu próprio mundo, mundo denso e sólido, macrocosmo no microcosmo, aquele de um dia de junho do ano de 1904, em Dublin, Bloomsday. É este mundo que dá a Ulysses a sua real e profunda unidade. Desenterrando as mais antigas tradições do seu país, Joyce é, no século XX, o escritor que a Irlanda não teve nos seus primeiros anos. Um moderno Chaucer, Dante, Camões. Os mitos existiam, a epopeia criou-a ele ao construir, fora do tempo, num dreaming back, esse singular e prodigioso mundo que é Ulysses. Se ainda hoje muitos vacilam entre a alternativa de ver a novela como um todo ou como uma magnífica ruína, é mais importante o fato de que quanto mais nos esforçamos para chegar a uma decisão, maior se torna o mundo criado por James Joyce.

Joyce usa o método do stream-of-consciousness. Cada imagem definitiva da mente está embebida e tem a cor da água livre que corre à sua volta. A significação, o valor da imagem está todo neste halo ou penumbra que a envolve e acompanha. A percepção não aparece cortada aos pedaços. Nada está ligado, tudo flui. Demos a isto ou não, não importa, o nome de fluxo do pensamento, de percepção ou de vida subjetiva. Marion entra na novela de forma mais independente na parte final: à noite, na cama, relaxada, sonolenta, isolada de qualquer contato com o mundo exterior, os seus pensamentos, as suas memórias de amor, as suas especulações sobre Dedalus e Bloom vão de um lugar para outro sem que haja a menor obstrução; dezenas de páginas sem pontuação. Do monólogo interior de Marion Bloom parece escapar o bater ritmado de um imenso coração que, entre a vigília e o sonho, verte um fluido vital para inundar as grandes ampliações da vida, para cobrir os interstícios, as cicatrizes dos dias e os soluços inevitáveis que flutuam nas águas da memória como irreparáveis recordações.

Com Bloom já é diferente. Ao andar pelas ruas de Dublin, ele é assaltado pelos pensamentos, pelas coisas que os seus olhos captam, pelos aromas. Algumas vezes, chegam-lhe à consciência, através das impressões sensíveis, por associação, as preocupações mais permanentes: o vazio da vida pela morte do filho, o suicídio do pai, a humilhação porque a mulher o trai, o sentimento de ser um outsider devido à sua situação de judeu. Assim, Bloom abre-se todo para nós, mais do que qualquer outro personagem da ficção moderna. Ele é l’homme moyen sensuel e também o little man, vulgar, curioso, às voltas com o seu pequeno e sujo segredo sexual, anti-heróico, essencialmente o anti-herói. Mas Bloom é bom, na sua ingenuidade há algo de inocente. Ao mesmo tempo cômico e figura de um grande pathos.

Stephen Hero, Stephen Dedalus é um caso especial. Projeção do próprio autor quando jovem, arrogante, torturado por uma grande ambição ainda não realizada, atacado pelo remorso, aquele que renegou a família, a religião e a pátria. Ao apresentar Dedalus, Joyce usa uma exposição que não pode ser confundida com a técnica do stream-of-consciousness. O modo de pensar de Stephen é absolutamente diferente do de Bloom ou Marion; quando estamos confiados a ele, temos diante de nós, os graus mais elevados de conhecimento, controle e propósito. Stephen pensa em termos intelectuais, é culto, vale-se da linguagem dos schoolmen. Mas "pensar" talvez não seja a palavra adequada: a linguagem que Joyce põe na mente de Stephen Dedalus é antes uma notação do modo pelo qual ele pensa do que uma tentativa de transcrição literária dos seus pensamentos.

Artigo publicado em A Tribuna, página "Literatura, Arte e Cultura", em 11/06/1961, a pedido de Geraldo Ferraz. Republico-o hoje em homenagem ao meu joyceano amigo Florivaldo Menezes.