sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O REMORSO


Remorso tem origem latina, vem de remorsus, particípio passado de remordere, que significa tornar a morder. Morder, por sua vez, vem do latim mordeo, es, momordi (memordi e morsi), morsum, mordere, que deu morder, mastigar, comer, figuradamente morder com palavras, dilacerar, atacar, satirizar, ferir, torturar, atormentar. Entrou em várias línguas, como no italiano, no francês, no provençal, no catalão. A palavra inclui ideias como força para morder, palavras mordazes, satíricas, mordacidade, pedaço tirado com o dente etc. A própria etimologia da palavra já dá a ideia do sentimento doloroso, angústia acompanhada de vergonha, sentimento este causado muitas vezes pela consciência de se ter agido mal, acompanhado de arrependimento, culpa, lamentação, penitência e outras dores que povoam a alma humana.

ERÍNIAS

Na mitologia grega, o remorso é representado pelas Erínias (em grego, orinein, perseguir com furor), ou Fúrias, deusas da violência e do terror, nascidas de gotas de sangue que fecundaram a Terra, caídas de Urano, o Céu, mutilado, castrado por seu filho caçula Cronos, por instância de sua mãe Geia. As Erínias são três: Aleto (a incessante), a mais odiosa, Tisífone (a que julga o crime), a vingadora dos assassinados, e que guarda a entrada do Tártaro, e Megera (a que tem inveja), também sinônimo de pessoa má, de temperamento acre, mãe perversa, sogra. Moram nas sombras infernais, no Érebo. São gênios alados, cujos cabelos se entremeiam de serpentes. Levam nas mãos tochas ou archotes acesos, sempre brandidos por elas para impedir que os culpados durmam. Berram, fustigam os criminosos sem dó nem piedade e são odiosas ao próprio Hades. Protetoras da ordem social, castigam o crime que perturba a sociedade e a família principalmente. Arrependendo-se sinceramente o criminoso, as Erínias excepcionalmente transformam-se em Eumênides ou Benfeitoras, podendo perdoar o crime cometido.


ANANKE

No mundo grego, as Erínias funcionam como agentes da Ananke (constranger, apertar), esta personificada como fatalidade, necessidade mecânica, no que lembra muito o conceito de Karma do Hinduísmo. A lei da causa e do efeito. Ananke governa todas as coisas de um modo providencial. Para os romanos era o Fatum, a inalterável necessidade que aparecia para governar as ações humanas e os eventos do mundo. Atuava tanto física como moralmente. Deuses e homens estavam subordinados ao seu império, aos seus inalteráveis decretos.

As Erínias podem ser aproximadas da védica Saranyu, filha de Tvashtri, o artesão do céu, que forja as tempestades e que fabrica a taça da bebida sagrada (Soma). Sua filha, Saranyu (Nuvem) foi dada pelo pai em casamento a Vivasvat (Lei Ancestral). Ela é a mãe dos gêmeos Ashvins, os Dioscuros védicos. Seus mensageiros são o fogo e o vento. Ela pune aqueles que transgridem os princípios estabelecidos por seu marido.

As ciências do comportamento sempre se ocuparam direta ou indiretamente das divindades acima mencionadas, de modo especial com os sentimentos negativos que elas provocam. Invadindo o mundo religioso, o mundo moral e o próprio Direito, elas sempre impuseram também sua presença no mundo artístico.

Na História do Ocidente, na segunda metade da séc. XII, a sociedade, até então voltada para as guerras de conquista ou defesa, se modifica. Sob a influência da Igreja, sentimentos de generosidade e polidez suavizam os costumes. Surge uma vida mundana, com hábitos mais refinados, que passam a fazer parte de um código de comportamento. Assim, os cavaleiros, que por regras previamente estabelecidas deveriam ser féis a Deus, à sua pátria, ao seu soberano, estariam agora a serviço do amor, entendido como submissão completa à sua dama. Este amor era fonte de toda virtude e só existiria entre pessoas dignas, que não ferissem a honra feudal, familiar, nacional, social e que tivessem, assim, o respeito pelo próximo no mesmo nível de sua bravura. A literatura nos dá testemunho de todo este universo, através de suas canções de gesta ou principalmente de suas canções de amor.

Dentre as diversas lendas da Idade Média, uma das mais belas, sem dúvida alguma, e que serve de ilustração para o tema do remorso, é Tristão e Isolda. Esta antiga lenda foi escrita no século XII por dois importantes trovadores. Um deles é Béroul (trovador que viveu na corte de Alienor da Aquitânia), que evoca com realismo a dolorosa paixão dos dois amantes. O outro é Thomas, poeta anglo-normando também do séc. XII, cuja versão dá mais relevo ao ambiente "cortês" do que à história. Faz esta história parte do chamado ciclo bretão e descreve o amor-paixão em luta contra a sociedade, um amor que nem a própria morte poderia dissolver.

Segundo Béroul, Tristão recebeu a incumbência de levar a bela Isolda para se casar com o rei Marco, seu tio. A caminho, o navio que os conduz joga muito. Isolda e Tristão enjoam e decidem tomar o conteúdo de um frasco que lhes fora dado pela ama de Isolda, ignorando tratar-se de um filtro de amor. Ficam, desta forma, perdidamente apaixonados. No início, tentam resistir. A atração, porém, é mais forte. Tornam-se amantes, passam por várias peripécias, e o remorso, provocado pelo fato de haverem traído o rei, os persegue sempre, mesmo depois que Marco os perdoa. Têm morte trágica e são enterrados em túmulos vizinhos. Algum tempo depois, um tipo de amoreira brota do túmulo de Tristão e penetra no de Isolda, de onde sai ainda mais viçoso. Cada vez que é podado, renasce, dando-nos o exemplo do amor mais forte que a morte. Vários autores, de épocas e estilos diferentes, se inspiraram nesta lenda, criando algumas obras magníficas. Entre 1854 e 1857, Richard Wagner compôs um drama lírico, obra-prima universal, muito marcada pela filosofia do século XIX.

Uma das personagens mais ligadas ao tema do remoroso é Fedra, filha do rei Minos, de Creta, e da rainha Pasífae, e irmã de Ariadne. O grande herói Teseu com a ajuda da apaixonada Ariadne havia morto o Minotauro. Parte em direção de Atenas, levando-a consigo. Abandona-a, contudo, na praia de Naxos, onde ela encontrará a morte. Mais tarde, Teseu se unirá à sua irmã Fedra. O castigo logo vem: Fedra apaixona-se por Hipólito, filho de Teseu. Quando este vai ao Hades conquistar Perséfone, Fedra considera-o morto, pois não há volta do inferno. Dirige-se então a Hipólito para anunciar a morte de seu pai e, não mais podendo se conter, declara-se ao jovem, que não corresponde a este amor. Para se vingar do amor não correspondido, Fedra o acusa, junto ao pai que conseguira voltar do Hades, de tentar seduzi-la. Teseu, indignado, pede a Poseidon, seu pai divino, um castigo que o mate. Hipólito é então arrastado por seus cavalos e morre. Quando Fedra toma conhecimento de sua morte, arrependida, confessa a calúnia a seu marido e, cheia de remorsos, se enforca. São de Racine estas falas: "Eu quis diante de vós expondo meus remorsos,/ Por um caminho mais lento descer para a casa dos mortos". Teseu também é torturado: "Não posso tirar da memória ação tão negra!" "A que mortais remorsos minha vida está reservada!" Este episódio da mitologia inspirou algumas tragédias, como Hipólito, de Eurípides, século V aC; Fedra, de Racine, séc. XVII - a mais famosa; Hipólito e Aricie ,de Jean-Pierre Rameau, grande músico do séc. XVIII .
Quem nos fala também de remorso é Marie-Madeleine Pioche de la Vergne, Mme. de La Fayette, pouco conhecida, mas importantíssima escritora do séc. XVII, autora de um romance precioso e histórico,Princesa de Clèves, considerado obra-prima da literatura. Marca a origem dos romances de análise psicológica e tem o mérito de conciliar a sutileza romanesca do espírito da época e a verdade sóbria e eterna do classicismo. A personagem principal, a princesa de Clèves, "perfeição da natureza",severamente educada por sua mãe, casa-se com o príncipe de Clèves, a quem admira mas não ama. Pouco a pouco, é possuída por um amor violento pelo duque de Nemours, outra "maravilha da natureza", que também a ama. O príncipe de Clèves percebe a situação e, ciumentíssimo, a acusa de ser responsável por uma doença que o acometera e da qual virá a morrer. A morte do marido a mergulha em profundo abatimento e dor. Sentindo-se responsável, tomada de remorsos, nossa princesa se recusa a casar com o apaixonado Nemours, e atacada pelas Erínias, renuncia completamente a tudo, morrendo para o mundo. Este romance foi levado ao cinema. Suas versões mais famosas são A princesa de Clèves, de 1960, dirigido por Jean Delannoy, com Marina Vlady e Jean Marais, e A carta, de 1999, do diretor português Manoel de Oliveira, com Chiara Mastroianni no papel principal.



A CARTA - CHIARA MASTROIANNI

Da vasta galeria de tipos arquetipais trabalhados por Shakespeare, Otelo, o mouro de Veneza, conhecido como o maior exemplo do ciumento, também sucumbe ao peso dos remorsos. Convencido, por um falso e invejoso amigo, Iago, de uma suposta traição de sua bela e apaixonada esposa Desdêmona, estrangula-a. Compreendendo depois toda a trama, roído pelo remorso, apunhala-se desesperado. Esta peça, do início do séc. XVII, inspirou óperas a Rossini (1816) e a Verdi (1887), além de uma abertura sinfônica a Antonin Dvorak (1841 - 1904) e um quadro a Delacroix (1798 - 1863). Foi adaptada em versos franceses por Alfred de Vigny, em 1829. Em 1952, foi levada ao cinema por Orson Welles, que além de dirigi-la, interpretou Otelo. Em 1947 foi a vez de George Cukor dirigir outra versão, com Shelley Winters e Edmond O'Brien. Inspirou também balés e outras obras.

Na literatura do século XIX, encontramos um famoso romance escrito por Stendhal (Henry Beyle), em 1830, O Vermelho e o Negro. Seu principal personagem, Julien Sorel, também é roído pelo remorso. Filho de simples camponês, de temperamento apaixonado, revoltado contra seu status, compreende que na sociedade do período da Restauração só poderia afirmar sua dignidade pela hipocrisia e pelo cálculo. Recebe, desde cedo, educação superior à da média dos de sua classe e pretende tornar-se religioso, para conseguir uma melhor condição social. Trabalha como preceptor dos filhos da doce Mme. de Rênal, de quem se torna amante, mas deve deixá-la. Vai para um seminário, do qual sai para ser secretário do Sr. de La Mole, cuja filha se apaixona por ele. Decidem se casar, mas o nobre exige referências. Recorrem à Mme. de Rênal, que escreve uma carta desabonadora.

O VERMELHO E O NEGRO - DANIELLE DARIEUX E GÉRARD PHILIPE

Decepcionado e desesperado por perder a oportunidade de ascensão social pelo casamento, Julien compra pistolas, vai ao encontro de sua ex-amante, dispara dois tiros que a atingem superficialmente. É preso, julgado e condenado à morte. Mme. de Rênal e Mathilde de La Mole o perdoam e se dedicam inteiramente a lhe fazer companhia pelo resto de seus dias. Perto do fim, Julien descobre o grande amor que sempre sentira por Mme. de Rênal e se questiona sobre o egoísmo que guiara suas ações em busca de sucesso. "Sou então um egoísta? Ele se condenava, humilhando-se. A ambição havia morrido em seu coração, uma outra paixão saíra de suas cinzas; ele a chamava remorso". Há algumas versões cinematográficas deste romance. A mais importante é a dirigida por Claude Autant-Lara, 1954, com Gérard Philipe e Danielle Darieux nos principais papéis. Já, em 1948, Gennaro Righelli dirigira um filme baseado nesta obra, com Rossano Brazzi interpretando Julien.

Gustave Flaubert, em 1857, escreve um romance, Madame Bovary. Emma Bovary, jovem cheia de aspirações romanescas, sempre insatisfeita, conhece o tédio ao lado do marido, um bom e atencioso médico do interior. Busca se evadir desta situação insatisfatória mergulhando num duplo adultério e gastando todos os bens para tentar se igualar, pelas roupas e decoração da casa, aos da alta sociedade. Quando a situação chega a um limite máximo, com a falência da família e a penhora dos bens para pagamento das dívidas, Mme. Bovary toma arsênico, cheia de arrependimento e remorso, palavras que se apresentam quase sempre unidas, e morre. Esta obra tem servido de inspiração a vários cineastas. Em 1937 e em 1969 houve versões alemães. Em 1949, uma produção americana, com Vincent Minelli na direção, tendo como atores principais Jennifer Jones, James Mason, Van Heflin e Louis Jourdan. Em 1991 foi a vez de Claude Chabrol, com a grande Isabelle Hupert no papel principal.

Um dos romances que melhor nos fala de remorso é O morro dos ventos uivantes (1847),de Emily Brönte (1818 - 1848). Conta a história de amor entre Heathcliff e sua irmã de criação, Catherine. Heathcliff, um órfão humilhado pelo irmão de Catherine, decide vingar-se; parte em busca de fortuna, volta rico e arrogante, sem, contudo, conseguir destruir o amor que sentia por sua irmã de criação, que também continuava a amá-lo, embora já tendo se casado com outro. Ela adoece e morre. Heathcliff passa a viver atormentado pelos remorsos, num clima de temporal que justifica o título da obra e lhe confere intensa poesia. Foi o romance levado ao cinema em 1939 e em 1970, na Inglaterra. Em 1992, nos EUA, William Wyler dirigiu a versão mais famosa, com Laurence Olivier, Merle Oberon e David Niven. Algumas adaptações foram feitas para o teatro..

Obras-primas não nos faltam para exemplificar o remorso, ligado, conforme o caso, à responsabilidade, à preocupação para com o próximo, ao social, ao arrependimento, à culpa, à vergonha. As Erínias, interiorizadas, sempre representaram para os gregos a consciência que se sentia culpada e, como tal, lembravam sobretudo doença e autodestruição.

Os tempos mudaram e com eles os sentimentos. Será que ainda sentimos tanto o remorso como os exemplos acima citados? Nem sempre o remorso leva à morte, causa doenças, infelicita a vida de quem o experimenta. Para que o remorso surja é necessário levar em conta o outro, o mal que lhe foi feito e sentir a responsabilidade do ato. Egoísmo, indiferença, desdém, excessos individualistas são fatores que nos impedem de pensar no próximo, no mundo que nos cerca, e, quem sabe, de sentir remorso.

Um dos melhores exemplos do que acabamos de expor nós o encontramos no famoso Don Juan, personagem mítico do sedutor libertino, que surge em Sevilha e vai servir de inspiração a diversos autores: Tirso de Molina (1625), Villiers e Dorimond (1659/61). As versões de Molière (peça teatral, 1665), a de Mozart (ópera, 1787) e a de Richard Strauss (poema sinfônico, 1888) são as mais famosas e conhecidas. Don Juan mata um ancião, o Comandante, pai de uma jovem que ele havia seduzido; ao desrespeitá-lo, desrespeita a sociedade em geral; e, de conquista em conquista, continua seu caminho. Não pensa de modo algum no mal feito ao próximo, não sente qualquer remorso. Por brincadeira, nosso anti-herói convida a estátua do Comandante para jantar, desafiando assim até mesmo o mundo dos mortos. Quando está jantando, para sua surpresa, batem à porta: é o convidado que, aceitando seu convite, entra na casa e desaba sobre ele. O chão se abre, surgem labaredas infernais, envolvendo nosso herói, que desaparece em meio a gritos de terror. Don Juan nunca saíra de si mesmo, nunca se preocupara com o próximo, sempre incapaz de sentir remorso.

Outro exemplo é Valmont,personagem do pouco conhecido Choderlos de Laclos, escritor do século XVII. Valmont, personagem principal de As Ligações Perigosas(1782) é um insensível egoísta. Este romance foi adaptado para o cinema por Roger Vadim (1960, com Gérard Philipe e Jeanne Moreau), Stephen Frears (1988, com Glen Close, John Malkovich, Michelle Pfeiffer) e Milos Forman (1989, com Annette Bening, Colin Firth, Meg Tilly), e também para o teatro.

Valmont e sua amiga Merteuil trocam cartas, através das quais tecem todas as artimanhas possíveis para envolver mulheres a serem conquistadas, humilhadas e destruídas. A mais importante delas, e que merece portanto maior atenção, é a inocente Mme. de Tourvel. Esta obra retrata com extremo rigor literário e precisão certas perversões de caráter e é notável pela análise da luta entre a consciência de Mme. de Tourvel e sua paixão. Valmont e Merteuil submetem suas inteligências a um verdadeiro código do mal, sem a mais leve sombra de remorso.

Rastignac, Eugène de Rastignac (personagem do livro Le Père Goriot, da série da Comédia Humana, de Honoré de Balzac (1799 - 1850), composta de 95 volumes, panorama geral da realidade social da época entre 1830 e 1850) mostra que o caminho percorrido para a realização pessoal, torna-se cada vez mais individualista a partir das grandes mudanças ocorridas depois da queda de Napoleão. Levado pela tentação de sucesso mundano, sem mais ilusões idealistas, ao termo de uma lenta evolução, este personagem lança um desafio a Paris, ao decidir, haja o que houver, obter sucesso social e político: À nous deux maintenant. É o começo de sua degradação moral e de suas vitórias mundanas, sem quaisquer remorsos...


Em 1942, Albert Camus publicou um pequeno romance que ilustra o malentendido então presente na condição humana - O Estrangeiro , Meursault, seu principal personagem, sente apenas uma "terna indiferença" diante de tudo, até mesmo da morte. Nem depois de ter assassinado, sem razão alguma, um árabe, ele se sente culpado, ou demonstra a menor preocupação ou o menor remorso. Luchino Visconti, em 1967, realizou um filme sobre o livro, com Marcello Mastroianni no papel principal.