terça-feira, 6 de abril de 2021

AS CAVERNAS E O DEUS PAN

             

Se num primeiro momento grutas e cavernas são proteção, agasalho, nutrição, segurança, noutro elas poderão se constituir em abafamento, sufocação, castração e mesmo morte. Sair da gruta será sempre um problema, qualquer que seja o motivo. Foi certamente pensando nisto e em muitos outros aspectos relacionados com elas que os antigos gregos deram forma ao mito do deus Pan e, na filosofia, Platão, A República (Livro VII). 

No mito, Pan, nome que em grego quer dizer tudo, o todo, a totalidade, é filho do deus Hermes e da ninfa Dríope. Consta que por ser muito feio, peludo, teriomorfo, com orelhas pontiagudas, patas como as de bode no lugar de pés, e um pequeno rabo, foi rejeitado pela mãe. Hermes o levou então para o Olimpo. Saltitante, inteligente, curioso, querendo participar de tudo, desde logo o filho de Hermes deu também demonstrações de ter nascido com um intenso furor erótico. Foram os deuses que lhe deram o nome de Pan. O deus Dioniso se encantou com o jovem deus, obtendo a permissão do pai para integrá-lo ao seu séquito, sempre ruidoso e barulhento, com as suas sacerdotisas, as mênades. 


PAN
Pan passou a viver na Arcádia, região de pastores e poetas, sendo-lhe atribuída, de comum acordo com a deusa Ártemis, a tutela das regiões que ficavam além do oikos, dos territórios que ligavam o conhecido ao desconhecido, lugares que levavam do mundo familiar ao Grande Mundo, ao Todo. Pan passava os seus dias perambulando pelos campos, sem um lugar fixo, em meio a brincadeiras, ora dormindo em grutas, banhando-se nos rios, sempre com muitos companheiros, tocando a sua flauta (syrinx), perseguindo as ninfas e assustando os viajantes que se aventurassem pelos caminhos, pelas florestas e pelas montanhas. 

Antes, porém, uma palavra sobre o oikos. Na Idade do Bronze, que precedeu o período  arcaico da história grega, no fim do qual pequenos núcleos urbanos e vilarejos começaram a se formar, o oikos era a unidade familiar básica, constituída pela propriedade (casa, terras, plantações, pastos, escravos e animais). O pai era a autoridade suprema, fazendo-se a transmissão da propriedade e dos bens sempre pela via patrilinear. A palavra economia, como a usamos hoje, tem a sua origem em oikos (família) e nomos (lei, regra, regulamento), ou, muito simplesmente, a lei da família, a lei da casa.

O sentimento de solidão e de desamparo que costumava atacar os viajantes quando longe do oikos, principalmente nos dias escuros, de mau tempo, ou em noites sem Lua, quando nenhuma voz era ouvida, os campos silenciosos, os animais recolhidos, esse sentimento começou a ser considerado, não se sabe bem por qual razão, como inspirado por Pan. Ansiosos, alarmados, aterrorizados, os viajantes, os peregrinos, sem um motivo justificável, ficavam paralisados por essa presença oculta de Pan, que se anunciava, como logo começou a se propagar, por um som por ele produzido, um som terrível, entre o grito humano e o uivo animal. Aos poucos, esse sentimento passou a ser chamado de terror pânico, um estado entre o pavor e o espanto, inexplicável, geralmente somatizado de diversos modos pelos que se afastavam do oikos, taquicardia, problemas respiratórios, paralisias, desmaios, quando não uma sensação de morte iminente.

NINFAS E PAN
Os companheiros de Pan nas suas aventuras eram os sátiros, os centauros e os silenos.  As ninfas (oréadas, dríadas, potâmidas, creneias e muitas outras), mesmo as mais retraídas, mostravam-se todas sempre muito curiosas com relação a Pan e seus companheiros, sobretudo pela lubricidade que sempre demonstravam. Da história de Pan consta que ele prestou serviços aos deuses quando da titanomaquia (luta entre os deuses olímpicos e os titãs), e que, juntamente com seu pai Hermes, salvou Zeus (seu avô), quando do ataque de Tiphon, o maior dos monstros da mitologia grega, que imobilizara o Senhor do Olimpo, cortando-lhe os tendões dos braços e das pernas. 

FAUNO
Dioniso, como se disse, gostava demais da companhia do filho de Hermes, fazendo questão de levá-lo em suas viagens, ficando famosa a que o deus do vinho fizera com ele  à Ásia para divulgar o seu culto. Um dos apelidos de Pan era Hylaeos, como divindade das florestas. Da Grécia seu culto foi levado para a Itália, como protetor de rebanhos. Lá foi assimilado aos faunos (protetores da fertilidade), aos egipãs (Pans na forma de homenzinhos que lembram a forma caprina). Consta que no norte da África, na Líbia, havia uns egipans com cauda de peixe, dos quais teria saído a representação do signo de Capricórnio, dos silvanos (protetores do verde da Natureza), estes conhecidos também pelo nome de paniscus.

PRÍAPO
Muito semelhante a Pan era Príapo, um filho espúrio de Dioniso e de Afrodite, protetor das colheitas e da fecundidade em geral, dono de uma magia simpática (apotropaica) infalível. Grande divindade asiática, Príapo pontificava na cidade de Lampsaco, na Misia, nas margens do Helesponto. Tinha uma ereção desmedida, persistente. Deu nome ao priapismo, uma patologia sexual. Diferente da satiríase, também uma patologia sexual, é o priapismo caracterizado por uma grande e mórbida ereção, nela não entrando nenhum desejo sexual, o que acaba levando o vitimado por ela à impotência, à esterilidade.  


SILENOS

Todas estas divindades campestres se ligavam a Dioniso e também a Pan. Dioniso, aliás, era chamado também de Baco, nome retirado de um verbo grego que significava ser tomado por um transporte divino.  Dessas divindades, por exemplo, saíram designações como sátiro, que usamos para qualificar hoje o homem obsceno, lúbrico, voyeur ou exibicionista. Segundo Homero, teria existido nas montanhas da Cítia um povo inteiro de sátiros, que, quando envelheciam eram chamados de silenos (sátiros envelhecidos). Os sátiros (etimologicamente, nome ligado a um verbo que significa distender, entumescer, inchar) eram divindades menores da natureza que acabaram se integrando também ao cortejo de Dioniso. Híbridos, eram humanos, com acentuados traços que lembravam sobretudo os bodes: orelhas pontudas, pequenos chifres na testa, peludos, cascos ao invés de pés. 

CENTAURO

Os centauros, filhos de Nephele, a Nuvem, e de Ixion (que viverá no Tártaro até o final dos tempos), costumavam também frequentar os territórios de Pan, chamados pelos gregos, de agros. Brutais, quase sempre embriagados, vivendo em bandos, alimentando-se de carne crua, os centauros simbolizam a concupiscência carnal, a ameaça da vida instintiva, sempre presente no homem que não sabe controlá-la. É neste sentido que os antigos gregos consideravam o centauro como uma antítese do cavaleiro que sabia dominar e controlar a sua montaria. 

PAN
Em parte zoomorfo, em parte humano, Pan era uma divindade turbulenta, que com os seus aparecimentos súbitos provocava, como se disse, o pânico entre os humanos, entre as ninfas e mesmo entre os deuses. Nos humanos, o terror neles infundido será diagnosticado, muito mais tarde, como uma síndrome, um conjunto de sinais e sintomas observáveis como vários processos patológicos. No seu aspecto mais visível, uma condição crítica passível de despertar inicialmente insegurança, medo, e terminar como prostração, imobilidade, às vezes com a sensação de morte súbita, como exposto acima. 

A chamada síndrome do pânico impede que a energia vital, certamente por pressões inconscientes vindas da gruta, isto é, do inconsciente, se readapte diante de situações existenciais não familiares, desconhecidas, que exigem prontas mudanças, rápidas respostas, novos procedimentos, novas maneiras de ser diante de situações inusitadas, imprevistas. Astrologicamente, é de se lembrar que o deus Pan “vive” entre a quarta e a quinta casas astrológicas, ou, de outro modo, entre o signo de Câncer e o de Leão, sendo também possível a seu aparecimento nas posições e aspectos desarmônicos que a Lua vier a formar numa carta astral. 

CÂNCER
O signo de Câncer relaciona-se com a fecundação e a concepção, com a alimentação, presentes sempre os conceitos de segurança, proteção e amparo. Câncer tem a ver com o lar, a mãe, a tribo, as heranças, as impressões, as lembranças, a força psíquica das origens, os sentimentos e emoções, a memória. Inferiormente, o signo lembra: estreiteza mental, impressionabilidade, acumulação, adesão incondicional ao passado, emotividade, humor caprichoso, indolência, infantilismo psíquico, atavismo, idiossincrasias, o domínio do hábito. Já o signo de Leão, bem ou mal, aponta para a conquista de um ego poderoso, autonomia, ardor vital, auto-expressão criativa, império da vontade, força emotiva ativa, busca da própria razão de viver, iniciativa, ampliação, orgulho, passionalismo, tendência à ação sem compartilhamento, narcisismo, infantilidade, cólera, necessidade de reverências, generosidade, exibicionismo etc.

LASCAUX ,  FRANÇA

Ornadas de pinturas e desenhos, como nos mitos de gênese de antigos povos, desde recuados períodos da história da humanidade, as cavernas sempre apareceram associadas aos órgãos genitais femininos e, por extensão, à fertilidade. Vários povos, os astecas, por exemplo, relacionavam, num mesmo contexto simbólico, a Lua, a caverna, a mulher e a chuva.

Aparecendo no simbolismo dos sonhos de alguém, as cavernas podem indicar, como nos explicam muitos onirólogos, a necessidade de ser buscado por este alguém um novo sentido para a sua vida, uma renovação, um renascimento. Sob o ponto de vista psicanalítico, sonhos deste tipo costumam representar sempre uma descida às camadas profundas da vida subconsciente. Escondem, quem sabe, um forte anseio que possa levar a uma regressão, a uma vida pré-natal, uma volta a um mundo obscuro, morno, a bolsa amniótica, onde não há escolhas, angústias nem decisões, onde tudo é recebido de graça, sem esforço algum.

As cavernas e grutas exercem, sem dúvida, um grande fascínio (que o digam os espeleólogos!) sobre todos aqueles que pretendem conhecer um pouco mais sobre si mesmos, indo às profundezas de sua personalidade. Qualquer que seja o enfoque, grutas  e cavernas representam sempre abrigos absolutos. Entrar nelas é psicologicamente um retorno ao mundo maternal, uma negação do nascimento, um mergulho no indefinido. É, neste sentido, uma renúncia à vida atual, terrestre, e um desejo de renascimento sob uma outra forma, como se disse. 

É de se lembrar também que muitas cerimônias de iniciação se realizavam em cavernas, em antros, grutas naturais e profundas, materializando o que os latinos chamavam de “regressus ad uterum”. Era neste sentido que entrar numa caverna, nessas cerimônias, era fazer um retorno à vida original com a pretensão de mais facilmente se chegar aos céus depois.

O mito da caverna, num sentido mais amplo, diz respeito a todos aqueles que não vêm o mundo por si mesmos, iluminado pela luz do Sol, pessoas que obtêm as suas informações e conhecimentos sempre de segunda-mão, através de outras pessoas, nunca por si mesmas. É como se vivessem simbolicamente num lugar de ignorância, percebendo apenas, quando muito, as sombras dos seres e das coisas do mundo que de fora lhes chega, projetadas nas suas paredes. Vivem com informações distorcidas, falsas, vagas, incompletas, reflexos confusos.

CULTO A MITRA
Nas cavernas de muitos povos da antiguidade, como se constatou, realizavam-se cerimônias, cultos, representações ctônicas associadas aos poderes de entidades noturnas e infernais, com a finalidade de fazer com que os iniciados (mystes) pudessem buscar o caminho da luz. Um exemplo do que aqui se diz nós encontramos nas cavernas onde os antigos persas celebravam os seus cultos ao deus Mitra, com tal finalidade.

SÃO JOÃO EVANGELISTA
Influenciando de modo marcante o cristianismo então nascente, sabemos que as festas em honra ao deus persa não só contribuíram para que os romanos estabelecessem a data de nascimento de Cristo no final do mês de dezembro como para inspirar a iconografia cristã. Tanto o nascimento de Jesus (estábulo de Belém) como seu túmulo, quando de sua inumação, foram fixados em grutas. Mais ainda: registre-se que João Evangelista recebeu a visão do Apocalipse numa caverna na ilha de Patmos.