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terça-feira, 6 de abril de 2021

AS CAVERNAS E O DEUS PAN

             

Se num primeiro momento grutas e cavernas são proteção, agasalho, nutrição, segurança, noutro elas poderão se constituir em abafamento, sufocação, castração e mesmo morte. Sair da gruta será sempre um problema, qualquer que seja o motivo. Foi certamente pensando nisto e em muitos outros aspectos relacionados com elas que os antigos gregos deram forma ao mito do deus Pan e, na filosofia, Platão, A República (Livro VII). 

No mito, Pan, nome que em grego quer dizer tudo, o todo, a totalidade, é filho do deus Hermes e da ninfa Dríope. Consta que por ser muito feio, peludo, teriomorfo, com orelhas pontiagudas, patas como as de bode no lugar de pés, e um pequeno rabo, foi rejeitado pela mãe. Hermes o levou então para o Olimpo. Saltitante, inteligente, curioso, querendo participar de tudo, desde logo o filho de Hermes deu também demonstrações de ter nascido com um intenso furor erótico. Foram os deuses que lhe deram o nome de Pan. O deus Dioniso se encantou com o jovem deus, obtendo a permissão do pai para integrá-lo ao seu séquito, sempre ruidoso e barulhento, com as suas sacerdotisas, as mênades. 


PAN
Pan passou a viver na Arcádia, região de pastores e poetas, sendo-lhe atribuída, de comum acordo com a deusa Ártemis, a tutela das regiões que ficavam além do oikos, dos territórios que ligavam o conhecido ao desconhecido, lugares que levavam do mundo familiar ao Grande Mundo, ao Todo. Pan passava os seus dias perambulando pelos campos, sem um lugar fixo, em meio a brincadeiras, ora dormindo em grutas, banhando-se nos rios, sempre com muitos companheiros, tocando a sua flauta (syrinx), perseguindo as ninfas e assustando os viajantes que se aventurassem pelos caminhos, pelas florestas e pelas montanhas. 

Antes, porém, uma palavra sobre o oikos. Na Idade do Bronze, que precedeu o período  arcaico da história grega, no fim do qual pequenos núcleos urbanos e vilarejos começaram a se formar, o oikos era a unidade familiar básica, constituída pela propriedade (casa, terras, plantações, pastos, escravos e animais). O pai era a autoridade suprema, fazendo-se a transmissão da propriedade e dos bens sempre pela via patrilinear. A palavra economia, como a usamos hoje, tem a sua origem em oikos (família) e nomos (lei, regra, regulamento), ou, muito simplesmente, a lei da família, a lei da casa.

O sentimento de solidão e de desamparo que costumava atacar os viajantes quando longe do oikos, principalmente nos dias escuros, de mau tempo, ou em noites sem Lua, quando nenhuma voz era ouvida, os campos silenciosos, os animais recolhidos, esse sentimento começou a ser considerado, não se sabe bem por qual razão, como inspirado por Pan. Ansiosos, alarmados, aterrorizados, os viajantes, os peregrinos, sem um motivo justificável, ficavam paralisados por essa presença oculta de Pan, que se anunciava, como logo começou a se propagar, por um som por ele produzido, um som terrível, entre o grito humano e o uivo animal. Aos poucos, esse sentimento passou a ser chamado de terror pânico, um estado entre o pavor e o espanto, inexplicável, geralmente somatizado de diversos modos pelos que se afastavam do oikos, taquicardia, problemas respiratórios, paralisias, desmaios, quando não uma sensação de morte iminente.

NINFAS E PAN
Os companheiros de Pan nas suas aventuras eram os sátiros, os centauros e os silenos.  As ninfas (oréadas, dríadas, potâmidas, creneias e muitas outras), mesmo as mais retraídas, mostravam-se todas sempre muito curiosas com relação a Pan e seus companheiros, sobretudo pela lubricidade que sempre demonstravam. Da história de Pan consta que ele prestou serviços aos deuses quando da titanomaquia (luta entre os deuses olímpicos e os titãs), e que, juntamente com seu pai Hermes, salvou Zeus (seu avô), quando do ataque de Tiphon, o maior dos monstros da mitologia grega, que imobilizara o Senhor do Olimpo, cortando-lhe os tendões dos braços e das pernas. 

FAUNO
Dioniso, como se disse, gostava demais da companhia do filho de Hermes, fazendo questão de levá-lo em suas viagens, ficando famosa a que o deus do vinho fizera com ele  à Ásia para divulgar o seu culto. Um dos apelidos de Pan era Hylaeos, como divindade das florestas. Da Grécia seu culto foi levado para a Itália, como protetor de rebanhos. Lá foi assimilado aos faunos (protetores da fertilidade), aos egipãs (Pans na forma de homenzinhos que lembram a forma caprina). Consta que no norte da África, na Líbia, havia uns egipans com cauda de peixe, dos quais teria saído a representação do signo de Capricórnio, dos silvanos (protetores do verde da Natureza), estes conhecidos também pelo nome de paniscus.

PRÍAPO
Muito semelhante a Pan era Príapo, um filho espúrio de Dioniso e de Afrodite, protetor das colheitas e da fecundidade em geral, dono de uma magia simpática (apotropaica) infalível. Grande divindade asiática, Príapo pontificava na cidade de Lampsaco, na Misia, nas margens do Helesponto. Tinha uma ereção desmedida, persistente. Deu nome ao priapismo, uma patologia sexual. Diferente da satiríase, também uma patologia sexual, é o priapismo caracterizado por uma grande e mórbida ereção, nela não entrando nenhum desejo sexual, o que acaba levando o vitimado por ela à impotência, à esterilidade.  


SILENOS

Todas estas divindades campestres se ligavam a Dioniso e também a Pan. Dioniso, aliás, era chamado também de Baco, nome retirado de um verbo grego que significava ser tomado por um transporte divino.  Dessas divindades, por exemplo, saíram designações como sátiro, que usamos para qualificar hoje o homem obsceno, lúbrico, voyeur ou exibicionista. Segundo Homero, teria existido nas montanhas da Cítia um povo inteiro de sátiros, que, quando envelheciam eram chamados de silenos (sátiros envelhecidos). Os sátiros (etimologicamente, nome ligado a um verbo que significa distender, entumescer, inchar) eram divindades menores da natureza que acabaram se integrando também ao cortejo de Dioniso. Híbridos, eram humanos, com acentuados traços que lembravam sobretudo os bodes: orelhas pontudas, pequenos chifres na testa, peludos, cascos ao invés de pés. 

CENTAURO

Os centauros, filhos de Nephele, a Nuvem, e de Ixion (que viverá no Tártaro até o final dos tempos), costumavam também frequentar os territórios de Pan, chamados pelos gregos, de agros. Brutais, quase sempre embriagados, vivendo em bandos, alimentando-se de carne crua, os centauros simbolizam a concupiscência carnal, a ameaça da vida instintiva, sempre presente no homem que não sabe controlá-la. É neste sentido que os antigos gregos consideravam o centauro como uma antítese do cavaleiro que sabia dominar e controlar a sua montaria. 

PAN
Em parte zoomorfo, em parte humano, Pan era uma divindade turbulenta, que com os seus aparecimentos súbitos provocava, como se disse, o pânico entre os humanos, entre as ninfas e mesmo entre os deuses. Nos humanos, o terror neles infundido será diagnosticado, muito mais tarde, como uma síndrome, um conjunto de sinais e sintomas observáveis como vários processos patológicos. No seu aspecto mais visível, uma condição crítica passível de despertar inicialmente insegurança, medo, e terminar como prostração, imobilidade, às vezes com a sensação de morte súbita, como exposto acima. 

A chamada síndrome do pânico impede que a energia vital, certamente por pressões inconscientes vindas da gruta, isto é, do inconsciente, se readapte diante de situações existenciais não familiares, desconhecidas, que exigem prontas mudanças, rápidas respostas, novos procedimentos, novas maneiras de ser diante de situações inusitadas, imprevistas. Astrologicamente, é de se lembrar que o deus Pan “vive” entre a quarta e a quinta casas astrológicas, ou, de outro modo, entre o signo de Câncer e o de Leão, sendo também possível a seu aparecimento nas posições e aspectos desarmônicos que a Lua vier a formar numa carta astral. 

CÂNCER
O signo de Câncer relaciona-se com a fecundação e a concepção, com a alimentação, presentes sempre os conceitos de segurança, proteção e amparo. Câncer tem a ver com o lar, a mãe, a tribo, as heranças, as impressões, as lembranças, a força psíquica das origens, os sentimentos e emoções, a memória. Inferiormente, o signo lembra: estreiteza mental, impressionabilidade, acumulação, adesão incondicional ao passado, emotividade, humor caprichoso, indolência, infantilismo psíquico, atavismo, idiossincrasias, o domínio do hábito. Já o signo de Leão, bem ou mal, aponta para a conquista de um ego poderoso, autonomia, ardor vital, auto-expressão criativa, império da vontade, força emotiva ativa, busca da própria razão de viver, iniciativa, ampliação, orgulho, passionalismo, tendência à ação sem compartilhamento, narcisismo, infantilidade, cólera, necessidade de reverências, generosidade, exibicionismo etc.

LASCAUX ,  FRANÇA

Ornadas de pinturas e desenhos, como nos mitos de gênese de antigos povos, desde recuados períodos da história da humanidade, as cavernas sempre apareceram associadas aos órgãos genitais femininos e, por extensão, à fertilidade. Vários povos, os astecas, por exemplo, relacionavam, num mesmo contexto simbólico, a Lua, a caverna, a mulher e a chuva.

Aparecendo no simbolismo dos sonhos de alguém, as cavernas podem indicar, como nos explicam muitos onirólogos, a necessidade de ser buscado por este alguém um novo sentido para a sua vida, uma renovação, um renascimento. Sob o ponto de vista psicanalítico, sonhos deste tipo costumam representar sempre uma descida às camadas profundas da vida subconsciente. Escondem, quem sabe, um forte anseio que possa levar a uma regressão, a uma vida pré-natal, uma volta a um mundo obscuro, morno, a bolsa amniótica, onde não há escolhas, angústias nem decisões, onde tudo é recebido de graça, sem esforço algum.

As cavernas e grutas exercem, sem dúvida, um grande fascínio (que o digam os espeleólogos!) sobre todos aqueles que pretendem conhecer um pouco mais sobre si mesmos, indo às profundezas de sua personalidade. Qualquer que seja o enfoque, grutas  e cavernas representam sempre abrigos absolutos. Entrar nelas é psicologicamente um retorno ao mundo maternal, uma negação do nascimento, um mergulho no indefinido. É, neste sentido, uma renúncia à vida atual, terrestre, e um desejo de renascimento sob uma outra forma, como se disse. 

É de se lembrar também que muitas cerimônias de iniciação se realizavam em cavernas, em antros, grutas naturais e profundas, materializando o que os latinos chamavam de “regressus ad uterum”. Era neste sentido que entrar numa caverna, nessas cerimônias, era fazer um retorno à vida original com a pretensão de mais facilmente se chegar aos céus depois.

O mito da caverna, num sentido mais amplo, diz respeito a todos aqueles que não vêm o mundo por si mesmos, iluminado pela luz do Sol, pessoas que obtêm as suas informações e conhecimentos sempre de segunda-mão, através de outras pessoas, nunca por si mesmas. É como se vivessem simbolicamente num lugar de ignorância, percebendo apenas, quando muito, as sombras dos seres e das coisas do mundo que de fora lhes chega, projetadas nas suas paredes. Vivem com informações distorcidas, falsas, vagas, incompletas, reflexos confusos.

CULTO A MITRA
Nas cavernas de muitos povos da antiguidade, como se constatou, realizavam-se cerimônias, cultos, representações ctônicas associadas aos poderes de entidades noturnas e infernais, com a finalidade de fazer com que os iniciados (mystes) pudessem buscar o caminho da luz. Um exemplo do que aqui se diz nós encontramos nas cavernas onde os antigos persas celebravam os seus cultos ao deus Mitra, com tal finalidade.

SÃO JOÃO EVANGELISTA
Influenciando de modo marcante o cristianismo então nascente, sabemos que as festas em honra ao deus persa não só contribuíram para que os romanos estabelecessem a data de nascimento de Cristo no final do mês de dezembro como para inspirar a iconografia cristã. Tanto o nascimento de Jesus (estábulo de Belém) como seu túmulo, quando de sua inumação, foram fixados em grutas. Mais ainda: registre-se que João Evangelista recebeu a visão do Apocalipse numa caverna na ilha de Patmos.     


domingo, 28 de março de 2021

OS MONSTROS - VI


            

GRÉCIA   ANTIGA

Para uma melhor compreensão do que antes já se disse,  desviemos o nosso olhar para Creta, onde viveu Minos, rei da ilha. Filho de Zeus e da princesa fenícia Europa, teve ele o seu trono disputado por dois irmãos. Pedindo um sinal divino que o confirmasse como único imperador, Minos foi atendido. Com essa finalidade, o deus Poseidon fez sair das águas do mar de Creta um touro maravilhoso, que em seguida deveria ser sacrificado.

Deuses, como se sabe, se alimentam de nosso sacrifício. O sacrifício é um símbolo de renúncia, implicando uma troca entre o material e o espiritual. Na antiguidade, o sacrifício tinha por objetivo assegurar a salvação e devolver a inocência a um povo para que se livrasse assim de suas faltas, projetando-as sobre uma vítima, que recolhia as referidas faltas, executada (sacrificada) em seguida de maneira ritual. 

Símbolo de expiação, de purificação e de súplica, o sacrifício se apresenta muitas vezes sob o aspecto de uma morte ritual acompanhada de injúrias, de agressões, chicotadas, lapidação ou cuspidas lançadas sobre a vítima a ser sacrificada, como o exemplo muito conhecido do chamado bode expiatória, que carregaria consigo os males de toda a comunidade. 

A palavra sacrifício quer dizer tornar sagrado, sacrum facere. É o ato que permite ao humano a sua entrada na esfera do numinoso, ou seja, de um plano superior de vida, do divino, se quisermos. Todo sacrifício era na origem a oferta de alguma coisa, de um vegetal, de um animal, de um ser humano, de algo de valor, um bem, do qual se abria mão, se matava, que se entregava, para atrair as boas graças das potências divinas. O sacrifício, aos poucos, tomou o caminho de morte, de perda, especialmente de uma perda interior pela qual o ser humano se tornava mais digno neste comércio com o céu, ou seja, da ideia de uma vida superior que ele carregava dentro dele e à qual ele acedia.

POSEIDON
O animal enviado por Poseidon era, entretanto, tão maravilhoso que Minos não resistiu; logo pensou em utilizá-lo como reprodutor para aumentar ainda mais o seu enorme rebanho e, consequentemente, a sua riqueza. Assim fez, entregando ao sacrifício um touro de seu rebanho, muito inferior ao animal enviado pelos deuses. 

A punição veio imediatamente: a rainha Pasífae, mulher de Minos, foi tomada por uma incestuosa paixão erótica pelo animal. Ela pediu a Dédalo, o grande inventor grego, então exilado na ilha, que fabricasse, com toda a sua arte, o simulacro de uma fêmea, na qual ela entraria, para poder se unir sexualmente ao touro maravilhoso. Esta a vingança divina com relação à hybris de Minos. Algumas versões do mito nos informam que esta paixão contra natura foi inspirada a Pasífae por Afrodite por ter o pai da rainha de Creta, o deus Hélio, revelado publicamente os seus amores com o deus Ares, um episódio que nunca deixou de ser comentado nas festas do Olimpo. 

CNOSSOS
Da união da rainha com o touro divino nasceu o Minotauro, um ser humano gigantesco, com cabeça de touro, um monstro horrível que se alimentava de carne humana. Tamanha foi a vergonha dos reis de Creta que eles imediatamente pensaram num meio de escondê-lo. Mais uma vez Dédalo foi convocado. Pediram que ele construísse um imenso palácio, ao qual se deu o nome de Labirinto, na capital do país, Cnossos. Nos subterrâneos dessa grande construção o monstro foi encerrado. Para alimentá-lo era necessário, como se disse, lhe dar carne humana. Os gregos, à época, derrotados pelos cretenses, então uma civilização poderosa e esplêndida, pagavam-lhes um tributo por meio do qual o alimento do monstro era obtido. Enviavam anualmente muitos jovens para saciar a fome do Minotauro.

 MURAL  EM  CNOSSOS 
Mais tarde, Teseu, herói e rei de Atenas, irá a Creta e matará o Minotauro, com o auxilio da princesa Ariadne, filha de Minos. Pelo lado dos reis de Creta, esta história nos fala da cegueira das paixões. Pelo lado de Minos, o que temos é o desejo do lucro a qualquer preço, o desejo irrefreável da riqueza, a corrupção do dinheiro dos seres humanos no seu mais alto grau. Por parte de Pasífae, a sensualidade exagerada, o prazer dos sentidos numa de suas formas mais degradadas, a zoofilia. O fruto da perversão dos reis de Creta é o Minotauro, cuja crônica se liga à civilização cretense como um produto histórico da chamada era astrológica de Touro, situada mais ou menos entre 4000 e 2000 aC.

DIONISO
Na antiga tradição grega, o touro era o animal que simbolizava o deflagrar irrefreável da violência. Era por essa razão consagrado a Poseidon, deus dos oceanos, e a Dioniso, deus das metamorfoses, traduzindo como símbolo uma força calorosa e fertilizante, assimilada à falta de limites e, por isso, a tempestades e furacões, como se colocou. 

O tema do Minotauro ilustra a situação do desejo injusto quando eles nos vitima. É a representação mais perfeita da falta de controle diante das pressões internas, a submissão à pressão dos sentidos, a concessão mentirosa e os subterfúgios que usamos para nos desculpar diante dos nossos fracassos em procurar controlá-los, minimamente que seja. Numa primeira abordagem, a história do Minotauro nos coloca claramente dentro da esfera do passional, que se opõe ao que que é razoável, lógico, racional. Sem entrar no campo religioso, o que temos diante nós é a oposição entre o que os gregos chamavam de pathos e logos. Se este nos remete ao campo do racional, da ordem, da harmonia, da claridade, da universalidade da vida, o pathos se liga diretamente ao irracional, a sentimentos e emoções, à desordem, à desarmonia, à obscuridade, à particularidade, à doença, à loucura, à morte. 

   MURAL   EM   KNOSSOS

O mito também nos deixa claro, como muitos filósofos apontaram, que as paixões têm sempre um caráter terrível, inevitável muitas vezes, ameaçando a alma de desordem, de intranquilidade e de desassossego. Quando isto acontece no ser humano, a parte inferior (epithymia) invade a superior (logistikon). Por isso, as paixões, seja sob o ponto de vista religioso, psicológico, médico ou moral, em todas as tradições e épocas, sempre foram objeto de muita preocupação, de muita vigilância. Impondo-se, as paixões são sempre deploráveis, mesmo aquelas que a razão pode justificar, as socialmente aceitas, as chamadas paixões positivas. De qualquer modo, porém, mesmo estas, desequilibram sempre o ser humano, o colocam numa situação de vítima, já que o encerram muitas vezes num único modo de ser, devendo por isso ser controladas, atenuadas. 

Psicanaliticamente, o Minotauro deve ser visto como a expressão do recalque, do que não pode ser exibido à luz do dia, exposto, isto é admitido pela consciência. O Minotauro deve por essa razão ser escondido na escuridão do subconsciente (os labirintos, os corredores subterrâneos do palácio construído por Dédalo, símbolo do artista corrupto, aquele que produz apenas para satisfazer os poderosos). 

O recalque, lembremos, é um mecanismo de defesa que, teoricamente, tem a função de fazer com que as exigências pulsionais, as condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a eles ligados, passem do campo da consciência para o inconsciente, ao entrarem em choque as exigências contrárias. 

O recalque, lembre-se, não lida com as pulsões em si, mas com os seus símbolos, aquilo as representa, imagens ou ideias, conteúdos que, apesar de recalcados, continuam ativos no inconsciente, prontos para assediar o consciente, atacá-lo mesmo, apesar de todo o cuidado em se mantê-los contidos, abafados. 

Dessa história sai também a palavra labirinto, que pode tomar vários sentidos. A palavra, numa leitura religiosa, por exemplo, serviria para alegorizar o mundo, o mundo como labirinto, a dispersão, a queda, a perdição e a perplexidade do espírito diante da vida fenomênica. A redenção só seria possível se fosse encontrado um meio de sair dele, se obtivéssemos o fio de de Ariadne. O fio, como símbolo, em todas as tradições, lembra a ligação entre dois estados da existência, dois modos de ser. Os hindus dão o nome de sutra ao fio como elemento de ligação entre o corpo material e o corpo anímico. 

No mito grego, como se disse, Teseu foi a Creta para libertar a Grécia (Atenas) do pagamento do tributo (carne humana) ao monstro. Foi ajudado pela princesa Ariadne, filha de Minos e de Pasífae, que lhe forneceu um fio com o qual ele poderia entrar e sair do labirinto. Sem este fio, ninguém conseguiria sair vivo daquela imensidão que eram os subterrâneos do palácio, cheios de túneis, desvios, corredores, salões e escadarias, em níveis diversos. 

   FIO   DE   ARIADNE  

O nome Ariadne admite vários sentidos: a muito veneranda, a muito pura, a muito luminosa. Ela é como tal uma representante do mundo matriarcal enquanto Teseu o é do patriarcado. Dois mundos que deveriam se completar, pois. O mito nos diz, entretanto, que tal não aconteceu. A promessa era a de que Teseu, uma vez vencido o monstro, voltaria a Atenas levando s princesa como sua mulher. Ora, ao retornar, o casal resolveu fazer uma parada para descanso na ilha de Naxos. Passaram a noite juntos. Na manhã seguinte, quando Ariadne acordou, não viu mais Teseu. Correu à praia, olhou o mar. Ao longe, as velas negras do barco do herói grego e a certeza de que fora abandonada.

ARIADNE EM NAXOS ( EVELYN DE MORGAN, 1855 - 1910 )

Essa história nos revela claramente que Teseu se aproveitou de Ariadne; valeu-se dela e a abandonou. Essa história permite, porém, outras leituras: há entre os personagens uma inadaptação mútua. Ariadne lhe forneceu o fio na esperança de prendê-lo. É uma figura do matriarcado que cede para conquistar. Dois mundos em conflito, um, o de Ariadne, agonizante, o matriarcado; o outro, o de Teseu, o patriarcado se afirmando cada vez mais sobre o outro, preparando-se para derrotá-lo, o que de fato aconteceu, imponde-lhe os seus valores.

Teseu não entendeu que o fio de Ariadne significava a oportunidade de um segundo nascimento (união entre o masculino e o feminino de sua personalidade). Fixado unicamente no seu lado masculino, usou o fio e abandonou a princesa, que, como o mito nos conta, foi encontrada pelo deus Dioniso na praia de Naxos. Dioniso a transformará em sua mulher e depois a matou, ou melhor, sacrificou. Antes, para celebrar a sua união com a princesa, Dioniso a presenteou com um belíssimo diadema, que depois será colocado nos céus como a constelação Corona Borealis. Lembro que astrologicamente uma das “vítimas” das influências desta constelação foi a princesa Diane, da Inglaterra, conforme depreendemos da leitura de sua carta astral.

Ariadne é um símbolo feminino, o da mulher que, fixada nas suas prerrogativas matriarcais, tenta manter o seu status, não sabendo se renovar, diante da ascendente ordem patriarcal. Numa outra leitura, Ariadne era em Creta uma antiga divindade da vegetação que na “nova ordem” (a nova ordem era a cultura do vinho, Dioniso) perdeu o seu poder, a sua posição cultual, mas com direito, na sua agonia final, a uma apoteose digna. Dioniso é a inapelável destruição das formas que não sabem se renovar. 

DIONISO E ARIADNE (TICIANO VECELLIO, 1490-1576)

Na ilha de Naxos, como recorda Plutarco, celebravam-se festas que tinham um duplo caráter, em honra a Ariadne e a Dioniso. Festas da dor e da alegria, com muitos cantos primaveris e ditirâmbicos. Estas festas viam a princesa como uma deusa da vegetação que tinha que morrer e renascer anualmente para dar lugar ao vinho (plantações do deus). 

Ariadne foi para Teseu, de certo modo, segurança, proteção e ternura. De outro modo, ao tentar levar essas funções muito longe (mãe-amante que abafa, castra e mata), ela significava riscos de opressão, de estreiteza, de limitação, insuportáveis para uma figura típica do patriarcado como Teseu. 

O encontro de Ariadne com Teseu marca a última fase do matriarcado e o início do acesso do patriarcado ao poder, na eterna alternância histórica das forças que atuam no universo, no jogo das polaridades. O matriarcado como se sabe está ligado a cultos agrários, nos quais a mulher ocupa posição importante, como doadora da vida. 

Com a afirmação das forças patriarcais, sobretudo sob o ponto de vista religioso (religiões do pai), submetido o princípio feminino ao masculino, a mulher, como grande-mãe, não deixará de ser reverenciada, mas sempre numa situação subalterna. Criam-se, por exemplo, ficções como a de virgens dando à luz a heróis e profetas. As diversas madonas que vão aparecer na arte ocidental, principalmente no Renascimento vêm desse mundo. 

O grande modelo da madona na arte ocidental se inspira claramente em Perséfone, como ela aparece na segunda fase (epopteia, contemplação) dos mistérios eleusinos, com um menino-deus de nome Brimo nos braços. 

Receptáculo da vida, matriz na qual foi concebido o mundo animado, associada às águas originais, a figura materna aparece em todas as tradições sob uma forma múltipla de aspectos, da mãe-virgem, passando-se pela madrasta infame, à prostituta. É sob estes três principais aspectos que as religiões patriarcais a vêm.

KALI
Os mitos, lembre-se, sempre utilizaram a imagem da Mãe Universal para conferir ao cosmos as suas originais propriedades femininas como nutriz e protetora. Há mais de 5.000 anos os cultos de inúmeras Grandes-Mães eram celebrados em grande parte do mundo já civilizado. Eram, no geral, divindades ligadas à terra, ao mundo da agricultura como símbolos da fertilidade. Nessa condição, as Grandes-Mães sempre representaram a vida e também a morte. Nascimento: saída da matriz; morte: retorno à Terra-Mãe. Na Índia, por exemplo, Kali é o nome da Grande-Mãe que sob o seu duplo aspecto é tanto terrível como benevolente. 

A psicologia moderna vê (entende?) que o arquétipo maternal sempre evoca as origens, a natureza, a vida instintiva, a criação passiva no seu aspecto gerador. Daí para esse entendimento a mãe encarnar sempre o aspecto vegetativo da criação, o inconsciente, os fundamentos da consciência, mas, ao mesmo tempo, a obscuridade noturna e angustiante.

MADONA  COM A  CRIANÇA  ( FILIPPO LIPPI, 1406 - 1469 )

Sob seu aspecto nutriente, a mãe é símbolo de saciedade, de carinho, de amor, de calor, de compreensão. Ela é proteção, refúgio, abrigo sempre procurado quando das tempestades da vida. Primeiro objeto de amor do que nasce, a mãe é também um primeiro ideal, conservado como fundamento inconsciente de todas as imagens de felicidade, de verdade, de beleza, de perfeição, que todas as imagens da Madona com o Bambino, por exemplo, procuraram fixar na arte da Renascença. 

No psiquismo masculino, a imagem materna tem relação com o inconsciente, significando uma relação (fixação) prolongada com ela um complexo (conjunto de sentimentos) a que a psicanálise deu o nome de complexo de Édipo: amor e desejo de reintegrar com ela um paraíso perdido contra o qual se opõe a figura paterna, odiada, no mais das vezes, inconscientemente.

É por essa razão que na Oniromancia as frequentes aparições da figura materna indicam uma falta de autonomia na conduta da existência. No inconsciente masculino, a aparição da figura materna costuma se dar por imagens que lembram a água e suas profundezas, a Lua, feiticeiras, pesadelos infantis, baleias, sempre ligadas a aspectos devoradores, à sua autoridade excessiva, à sua ausência ou maldade. Evidente, todas estas imagens indicam claramente ao sonhante a necessidade de se livrar da influência onipresente da mãe para adquirir um eu autônomo. 

As imagens maternais, arquetipicamente, podem tomar, num sentido pessoal, a forma de uma governanta, de uma ama-de-leite, de uma velha ama, de um animal (vaca) e, num sentido mais amplo, de uma gruta, de uma fonte, de uma igreja, de uma universidade, de uma cidade, de um país, da floresta. Não é por acaso que Alma Mater, por exemplo, é uma expressão muito usada, em determinados meios universitários, para designar a escola em que se formaram.

O tema do Minotauro é uma ilustração do desejo injusto, da submissão à pressão dos sentidos, das concessões mentirosas, dos subterfúgios que inventamos para apaziguar a nossa consciência. Psicanaliticamente, o Minotauro é, como se disse, a expressão do recalque, do que não pode ser exibido à luz do dia (admitido pela consciência) e que, por isso, deve ser escondido na escuridão do labirinto (subconsciente). O recalque é um mecanismo de defesa que, teoricamente, tem por função fazer com que as exigências pulsionais, condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a ela ligados, passem do campo da consciência para o do inconsciente, ao entrarem em choque com exigências contrárias.


Dessa história sai também a palavra labirinto, que pode tomar vários sentidos. A palavra, numa leitura religiosa, servirá para alegorizar o mundo, o mundo como labirinto, a queda e a perdição da alma na dispersão e na perplexidade da vida fenomênica. A redenção só seria possível se alguém nos fornecesse um meio de sair dessa dispersão (o fio de Ariadne), que nos ajudasse a encontrar o caminho para sair dos corredores desse mundo subterrâneo. 

O labirinto pode ser também uma ilustração do mundo do erro, da necessidade que temos de ultrapassar os limites de uma vida vegetativa, na qual a maioria vive encerrada. Quando nascemos, entramos nesse mundo, somos quase vegetais. Precisamos caminhar em direção do animal e deste em direção do humano. Encontrar a saída, a luz, é muito difícil. Por isso, em muitas tradições a entrada na vida lembra a entrada num labirinto. No mundo das interpretações, a entrada no labirinto pode aparecer muitas vezes como uma ilustração da viagem noturna do Sol. Ao se esconder atrás das montanhas ou mergulhar no oceano, o Sol inicia uma viagem subterrânea que lembra muito uma viagem labiríntica. 

Outros consideram o labirinto como uma representação da mente do homem desprovido de uma dimensão espiritual em sua vida. Na catedral de Chartres e em muitas outras encontramos labirintos esculpidos (desenhos) nas pedras do seu solo para representar a vida como peregrinação e as dificuldades que nela podemos encontrar. Os labirintos nas catedrais europeias são chamados de caminhos de Jerusalém, considerados como substitutos da verdadeira peregrinação. 

A arte barroca  e a que lhe sucedeu, a arte rococó, em muitos parques públicos e privados,  (castelos), principalmente na França, transformam os labirintos, de esquemas relativamente simples, em verdadeiros dédalos (outro nome de labirinto) de vegetação alta e espessa, com o objetivo de divertir os visitantes.

Os labirintos na arte ocidental tomaram sempre o caminho que se estende por várias direções, falando-nos de encruzilhadas, possibilidade de escolhas, extravios, erros etc. Na linguagem corrente, a palavra labirinto tem invariavelmente o sentido de complicação, de enredamento, de um domínio do espaço problemático, possuindo um valor negativo,  traduzindo sempre a ideia de uma construção tortuosa destinada a desorientar as pessoas. 

No Renascimento, a imagem do labirinto começa a ser usada para representar a confusão da vida interior do homem. Entenda-se: na Idade Média, o mundo exterior era ainda ameaçador, o labirinto estava fora. No fim da Idade Média, os poetas começaram  a pensar que o labirinto estava dentro do homem e, como tal, era ele que o projetava para fora. De objetivo, o labirinto se torna uma figura subjetiva. 

O primeiro escritor a propor uma leitura totalmente nova do labirinto foi Boccaccio (1313-1375), gênio da poesia. Numa obra, Il Corbaccio (O Sonho), que tem por subtítulo Laberinto d´amore, o poeta descobre os caminhos tortuosos do amor. Apaixonou-se por uma bela viúva que não lhe deu a mínima atenção, ridicularizando-o inclusive.  A esse descaminho amoroso ele deu também o nome de curral dos porcos de Vênus. Daí para frente, a imagem do labirinto se integrou à poesia amorosa, designando uma espécie de prisão sem portas, cárcere voluntário no qual o poeta se encerrava.  

Aos poucos, nos séculos seguintes, o labirinto deixou de ser a imagem de uma sedução, de encantamento, de um sortilégio mais ou menos longo, para se tornar a imagem do próprio mundo. O foco da interpretação do labirinto deixou de se fixar na tensão entre o interior e o exterior, para considerar o próprio mundo como labirinto, de aparências enganadoras. 

Na Renascença o labirinto deixou de ser uma realidade exterior e hostil, uma realidade da qual o homem só se salvaria pela misericórdia divina. A partir de então fixa-se a leitura de que o labirinto é o espaço em que nos movimentamos, um lugar onde cada um tem que encontrar pessoalmente o seu próprio caminho. Desaparece também a ideia de que a saída do labirinto poderia levar a esta ou aquela meta. A obra de Kafka parece ter posto um final a essa ideia, de que há um centro a alcançar. Seu personagem K., perdido entre o Castelo e Josefov, em Praga, anda pelas ruas, entra por ruelas,
atravessa pontes, abre portas, mas não consegue chegar a lugar nenhum, para afinal ser julgado sem saber bem o que acontece. Com a obra de Kafka chegamos definitivamente à conclusão de que não há metas, mas tão somente caminhos. Dessacralizado o espaço, perdida a ideia de um centro, com Kafka começa aquilo que podemos chamar de errância moderna, um processo que James Joyce, na literatura, com o seu Ulisses, levará às últimas consequências. 

domingo, 21 de fevereiro de 2021

NIETZSCHE: MITOLOGIA E ASTROLOGIA

  

KANT   E   NIETZSCHE

Para começar, a constatação de que Kant e Nietzsche, talvez mais este do que aquele, tenham sido as maiores vocações da filosofia alemã. O grande objetivo deste último foi, sem dúvida, a procura de uma síntese entre o mundo dionisíaco dos desejos e o mundo apolíneo da sabedoria . 


LOS BORRACHOS (DIEGO VELÁZQUES, 1599 - 1660)

Dioniso, o deus de Nysa, era o deus do vinho que atuava através da orgia, do êxtase, do entusiasmo e da libertação. Era o condutor dos mystai (iniciados) que iam a Elêusis  buscar, nos Mistérios que lá se realizam no outono, a transformação, uma espécie de renascimento, um outro tipo de vida. Já Apolo representava a síntese de um vasto sincretismo (mais de 200 apelidos). No mundo grego, como filho de Zeus e da oriental titânida Leto, foram sendo absorvidos por Apolo vários elementos de origens diversas, escandinavas, asiáticas, egeias e sobretudo helênicas, para torná-lo o deus da aristocracia grega. Seu culto se impôs ao do deus Hélios, passando ele a representar um ideal de cultura e de sabedoria. Alto, majestoso, solar, tornou-se deus protetor da vegetação, dos rebanhos, dos pastores, da família, dos marinheiros, da arte, da música, dos poetas, da medicina, sempre atuando em oposição às divindades que representavam as forças ctônicas. Sua proposta fundamental era a do equilíbrio dos desejos e da orientação das pulsões humanas na direção de uma espiritualização progressiva.


DIONISO E APOLO
Quanto a Nietzsche, os temas principais que se distribuíam por sua obra filosófica, além do diálogo Dioniso-Apolo, temos: a recusa da moral cristã, de escravos, como disse; a morte de Deus, a inversão de valores; a teoria do super-homem e a teoria do eterno retorno. Astrologicamente, segundo carta astral de Nietzsche, além de outras influências, ressalte-se que, sob o ponto vista intelectual, tudo o que está acima tem a ver com o planeta Mercúrio e de suas relações com Marte, Saturno, Urano, Júpiter, Lua e os nós lunares. Tal configuração nos coloca diante de uma mente poderosa e voltada para interesses muito diversos. Nós consultamos o planeta Mercúrio para obter informações,, dentre outras coisas, das faculdades intelectuais do nativo.

SIGNO  DE  SAGITÁRIO
A destacar, nessa configuração, o signo de Sagitário, o signo das buscas distantes, que tem a ver por isso, culturalmente, com estudos superiores, filosofia, religião, línguas, longas viagens físicas ou mentais, peregrinações etc. Se o tema astral de que tratamos for harmônico, Sagitário e seu planeta regente, Júpiter, encaminharão  o nativo para um conformismo confortável, bem adaptado aos usos e costumes estabelecidos, tornando-o partidário da legalidade e das convenções sociais vigentes. Se o tema astral for dissonante (caso de Nietzsche), o nativo tenderá a uma independência tumultuada, à revolta, à afirmação do seu eu, à proclamação de que os direitos individuais devem prevalecer sobre os da sociedade. O indivíduo, neste caso, costuma insurgir-se contra a verdade do seu tempo, comportando-se muitas vezes como um inadaptado, um insubmisso.  

A carta astral de N. nos aponta para um radical individualista, um iconoclasta muitas vezes, além de um crítico e astuto filósofo, um apaixonado poeta, um psicólogo empírico e um profeta visionário. No seu todo, estamos também diante de um tema astral que descreve não só uma titânica luta de um homem consigo mesmo, como com o agonizante cenário histórico em que ela acontece. 

N. tem o grau inicial do seu signo ascendente no final de Escorpião, estendendo-se ele até o final de Sagitário. O ascendente num tema ou mapa astral é o signo que indica como chegamos ao mundo. Como tal, descreve a personalidade visível, o corpo físico, o modo pelo qual o nativo se apresenta aos outros, a imagem que oferece ao mundo, imagem que, no geral, pode ser muito diferente do seu eu interior. N. tem dois signos importantes no seu ascendente, Escorpião e Sagitário. O signo solar (que indica o eu interior, a vontade, o que pretendemos ser) de N. ocupa o signo de Libra. A combinação destes signos (Escorpião, Sagitário e Libra), no caso de N., indica uma sensibilidade dolorosa, uma natureza emotiva e atormentada (Escorpião), que procura a verdade (Sagitário), seduzida pelo equilíbrio, pela harmonia (Libra), mas, todavia, trabalhada por surdas paixões (escórpio-arianas) que solapam seus esforços, tudo isto agravado pela presença da Lua (mãe, infância, passado, memórias) no ascendente (afetando-o até fisicamente) e de Júpiter (regente de Sagitário), na casa IV (o mundo familiar, a casa natal), a apontar, no caso de N., para uma  poderosa influência religiosa (Júpiter, dentre outras coisas, tem a ver com vida religiosa, profetas, sacerdotes etc).


NIETZSCHE  (CURT STOEVING, 1863 - 1939)

Nietzsche, como sabemos, viveu num meio excessivamente feminino, sua infância foi austera, sendo seu pai um pastor luterano, fato a que muitos atribuem, principalmente, o seu conflito com o catolicismo. Somos informados também, tanto por estudiosos de sua obra como por observações suas, que ele herdou do pai uma certa morbidez que o impediu de gozar plenamente a vida. Aliás, dizia o próprio Nietzsche que havia recebido do pai muitos dons, privilégios, menos a capacidade de dizer sim à vida. Daí a sua natureza melancólica, decadente, completava.  

De um modo geral, as pessoas que, como Nietzsche, têm Escorpião no ascendente costumam ser reservadas exteriormente enquanto interiormente são muito intensas, extremistas, intransigentes, obstinadas, obsessivas até. Lembre-se que Escorpião, auge do outono, relacionado com a água, signo feminino e fecundo, portanto, é o oitavo signo (oito é o número da morte) na ordem zodiacal. Seus regentes são Plutão e Marte. Escorpião representa a morte, as riquezas escondidas, o mistério, o desejo, a sexualidade (veja a obra do escorpiano Freud). É conhecido como o signo da serpente. Diante dele, em oposição, se encontra Touro, relacionado com os prados, as florestas, o verde, os campos (o Jardim do Éden) e o fruto da tentação (a maçã). Touro representa também a voz; Escorpião o sexo (relação entre voz e puberdade). Em Touro temos o que cresce sobre a terra; em Escorpião, o que se decompõe sob a terra. Na natureza, Escorpião tem relação com a morte da vegetação, a queda e decomposição das folhas e dos galhos, momento no ciclo anual em que as formas declinam e a escuridão começa a vencer. Analogicamente, lembra a destruição dos valores objetivos e das formas exteriores através de um processo de fermentação, de putrefação e de decomposição, que vai favorecer, mais adiante, depois da escuridão e do frio do inverno, o aparecimento de novas formas (primavera).

SIGNO DE ESCORPIÃO
O signo de Escorpião representa, nesse sentido, o mundo infernal, aquilo que se esconde de nós, que fica ao abrigo dos nossos olhos e da mente consciente, isto é, a vida subconsciente. Touro, auge da primavera, oposto a Escorpião, é um signo de terra, tem a ver com a matéria, com os frutos, o dinheiro (os juros como frutos do dinheiro) Já Escorpião representa as riquezas escondidas, subterrâneas, mundo governado por Plutão (o rico, em grego, rico de possibilidades). Não é por acaso que o signo de Escorpião governa a psicanálise, todas as profissões ligadas direta ou indiretamente à morte, à tanatologia, à escatologia (do grego eskhatos, o último, o fim, os excrementos, no caso). No corpo físico,  Escorpião  governa os órgãos genitais, o reto, o nariz (sexo é cheiro). Escorpião, na geografia universal, domina o mundo árabe, por oposição a Touro, que governa Israel (país fundado em maio de 1948, mês do Touro, signo do dinheiro). A propósito, lembrar que Marx e Freud eram taurinos, ambos com o Sol nesse signo. Quanto ao ascendente, Marx era aquariano (humanidade) e Freud escorpiano (vida subconsciente).    

PHTONOS
N., apesar de sua brilhante inteligência era animado interiormente ao nível de suas entranhas pela exasperação de suas pulsões como se pode depreender astrologicamente pela oposição Sol-Plutão. Tradução: interiormente, tudo tratado com muita intensidade, de forma apaixonada. Emoções contidas, porém. Insistência quanto à necessidade de conhecer inclusive os segredos dos outros. Trabalhos e atividades conduzidos solitariamente, tendência à inveja (Phtonos, divindade grega), comportamento possessivo com marcantes traços obsessivos. Simbolicamente, embora N. nunca tivesse chegado a ser simbolicamente um Tyrannosaurus Rex, tinha ele a mania de tratar os outros como objetos a serem controlados, sempre segundo o seu arbítrio, a seu modo. Mais: desejo de ser respeitado como um expert no seu campo de atuação. Por isso, sua admiração por líderes poderosos de carismática e magnética personalidade. Difícil admitir o diálogo, o ponto de vista dos outros na convivência social. Nenhuma interferência aceita. O “destino” há de forçá-lo a entender algumas lições ao colocar no seu caminho pessoas que refletirão o seu o seu lado negativo com relação a si mesmo. Quanto maior a insistência no seu “modo” de ser, de pensar e de agir, maiores as lições a serem recebidas. Estamos diante de alguém que jamais admitia que pudesse errar, fazendo com que os outros se sentissem intimidados e pudessem, antes, quem sabe, partir para ataques. Com tudo isto, apesar de seu aspecto positivo com Netuno, perdeu-se o que acima falamos de Apolo, adquirindo a sua afirmação solar um caráter dominador, impositivo, indiferente com relação aos outros.


NÊMESIS
Muito criativo, como o comprovam, por exemplo, seus aforismos, deseja sempre inovar, construir ou reconstruir, embora raramente ou nunca se sinta satisfeito com os resultados obtidos. No mais, quanto a este aspecto, tendências à manipulação, habilidade para impor seu controle, conduzindo as pessoas por caminhos por elas desconhecidos. Autoconfiante, acredita nos seus talentos, dificilmente admitindo que possa estar errado. Mais: julga-se capaz de poder lidar ou mesmo superar todas as dificuldades que encontrar. Recomendação: ser mais condescendente com os outros, permitindo que eles “tentem” antes de tentar controlá-los. Não abusar de seus poderes e talentos, lembrando-se do conceito hinduísta do karma ou, o que lhe deve ser muito mais familiar, da Nêmesis dos gregos, a deusa que curva os orgulhosos, com o fez com Narciso.  O aspecto astrológico dissonante entre Marte e Júpiter reforça as tendências negativas acima descritas: egoísmo e arrogância na maneira de agir (Marte é o planeta que nos movimenta fisicamente), quase nenhuma consideração pelo que os outros pensam ou fazem. Autoconfiança, tendências inovadoras e impulsos e recursos para isso. 

Afirmando como supremo valor humano o permanente esforço para a transcendência de valores, N. sempre teve em mente a figura por ele chamada de super-homem. Praticamente, este esforço tinha para ele um caráter libertador, uma libertação que só aconteceria para aqueles que descessem às suas ocultas profundezas dionisíacas (Dioniso é um dos deuses que “vivem” no signo de Escorpião). Ao mesmo tempo, conjugando-se com este esforço, havia que se romper com o coletivo no que ele tinha de convencional, conformista, de mediocridade moral. Não há dúvida de que os mais ricos vislumbres de N. estão nesta proposta: aumentar sempre a capacidade de nosso ego através de uma busca constante de transformações pessoais pelo aumento do nosso nível de consciência (informações e conhecimentos). Na perspectiva de N., a noção de verdade é, por isso, relativista, não podendo ser obtida senão através da ação humana. 

As relações entre o Sol e a Lua no tema de N. propõem uma luta entre a sua inclinação à autoafirmação e às forças do passado, condicionamentos, memórias etc.(Lua) que nele atuavam. Ou seja, os ideais librianos solares, apolíneos, de N. estavam em desacordo com o seu condicionamento filosófico-religioso. Constatamos que no psiquismo de N. os planetas pessoais (Mercúrio, mente; Vênus, vida afetiva; Marte, ação), com relação à sua experiência social, indicada por Júpiter e Saturno, estavam em conflito com as forças do inconsciente coletivo, da sua vida que ia além do individual e do social, representadas pelos planetas Urano, Netuno e Plutão. Tais planetas, como se sabe, são invisíveis ao olho humano, tendo, por isso, conforme a astrologia, relações com a vida inconsciente. Com exceção de Vênus, todos os demais planetas, inclusive Júpiter e Saturno (os chamados planetas sociais) têm relação com aqueles três, acima apontados.  As pressões transformadoras que N. recebia dos planetas que estão além de Saturno, situados abaixo do horizonte, não o inclinaram a se tornar um buscador espiritual, mas o situaram no plano das buscas terrestres, orientadas por seus próprios recursos e através das suas próprias ações.

Se pudéssemos tentar uma síntese do que dissemos até aqui, considerando sobretudo o componente sagitariano do seu ascendente e as relações entre o Sol, Mercúrio, Marte, Júpiter, Urano e Plutão,  afirmaríamos, a partir do tema astral de N., que estamos diante de um ser que tem um poderoso intelecto que tanto  pode abrir vieses críticos, científicos ou naturalistas, através do quais esse ser, já no início de sua trajetória filosófica (trabalhos sobre a Grécia) procurava integrar o dionisíaco e o apolíneo. Um Sol libriano, intelectualizado e culto, com o seu poderoso, primitivo e instintivo mundo subterrâneo, de natureza escorpiana/ariana, representada por Marte e Plutão. 

Quanto à dinâmica dos planetas de seu tema e à sua contraditória Lua sagitariana (a Lua sempre aponta para o passado; a flecha sagitariana é disparada a 45°, a angulação ideal para se atingir a máxima distância), N., ao invés de se fixar no ser, procurou sempre um tornar-se, um esforço que nos leva a considerá-lo, par droit de conquête (?), como o mais heraclitiano dos filósofos, defensor da tese de que tudo está em permanente fluxo no universo. Por tudo isso, N. chocou-se frontalmente com os valores religiosos que ao seu tempo impregnavam (e ainda hoje) toda a cultura ocidental, apesar da Enciclopédia, dos iluministas, de Voltaire e outros.  Importante a sua ideia de vontade de poder sempre ligada ao impulso de uma busca de conhecimento, um alargamento da consciência, na realidade sempre de natureza intelectual.  Um dos erros de N. (ou daqueles que se aproximam de sua obra e da filosofia) talvez esteja exatamente neste ponto, o de confundir informações e conhecimento com sabedoria. As duas primeiras têm relação com a mente, situando-se no plano do ter, do acúmulo; a outra, a sabedoria, pode usar as duas outras, mas situa-se, acima de tudo, no plano do ser. 

A informação e o conhecimento, embora diferentes, são adquiridos; com eles, sabemos muitas coisas sobre o mundo e as pessoas, mas interiormente em nós, se nelas fixados, nada costuma acontecer, permanecemos os mesmos. A informação que captamos deve ser aplicada por nós, questionada, comparada, reti-ratificada se for o caso, corrigida, até se transformar em algo nosso.  Assim é que chegamos ao conhecimento, mas isso não basta. É preciso, se possível, alcançar a sabedoria, que está além de ambos, informação e conhecimento. Ambos são muito  perigosos quando apenas acumulados, tão perigosos que para isto criamos inclusive instrumentos e aparelhos com espantosa memória, mas, no geral,  como se disse, fazendo-nos permanecer os mesmo ou piores interiormente. Hoje, é fácil, fútil até, transmitir informações e conhecimentos. As pessoas, atualmente, aliás, estão  carregadas de informações e conhecimentos, mas parecem  não ter nada melhorado com isso. Temos que mudar, sim, através do nosso ser, fazendo, se possível, com que informações e conhecimento que adquirimos trabalhem para isso e não apenas para exibições do nosso ego, ostentando-os sem nenhum compromisso com o nosso modo de ser. Não importa que se nos fizerem uma pergunta não saibamos respondê-la. Nesta perspectiva, saber sobre não é saber. Saber, sabedoria, é algo diferente da informação e do conhecimento. A sabedoria nasce da experiência própria, não é da ordem da memória e da inteligência (melhor se for, é claro!), é compartilhamento ou doação. Será possível levar N. nesta direção?

Em 1879, com 35 anos, N. renunciou ao seu posto de professor de filologia clássica na Universidade da Basileia e começou a perambular pelo mundo por cerca de dez anos, período em que escreveu seus melhores livros. Queria se distanciar do militarismo, da burocracia e da burguesia da Alemanha de Bismarck. Tempos depois, sua mente começou a se degenerar, pela sífilis (moléstia escorpiana, transmitida inclusive sexualmente). No caso de N., segundo a astrologia aponta, o mais provável é que a sífilis que o atacou tenha sido de natureza congênita, transmitida pela mãe (Lua, símbolo materno, regente da casa VIII, a casa da morte, em conjunção com o ascendente, corpo físico). Seus ataques de megalomania, por esse tempo, podem ser atribuídos à ação dissonante de Júpiter (o maior dos planetas; Zeus na mitologia grega), outro regente de seu  ascendente. 


ERLAND JOSEPHSON, COMO NIETZSCHE,
NO FILME DE BÉLA TARR, ALÉM DO BEM E DO MAL

Numa manhã de janeiro de 1889, ele teve um problema, uma espécie de colapso numa rua de Turin, Itália, onde se encontrava. Com os seus braços envolveu o pescoço de um cavalo que acabara de ser açoitado impiedosamente por seu dono. Depois desse incidente, jamais se recompôs. Foi declarado insano pelos médicos que o atenderam; levado para a Alemanha, passou a ter uma vida  completamente vegetativa até  25 de agosto de 1900, dia de sua morte. Astrologicamente, na morte de N., dentre outros planetas que nela intervieram, lembre-se da Lua, de Netuno e de Plutão. A primeira é a “dona” da sua casa VIII, a da morte. Netuno, na mitologia grega, é  Poseidon,, o deus que criou o cavalo (um dos símbolos do psiquismo inconsciente), quando da disputa com Palas Atena pela tutela de Atenas. Plutão, o outro, é, na mitologia grega, Hades, deus do mundo infernal, subterrâneo, ctônico. Além do que já se disse sobre este último  planeta, lembre-se mais que ele rege a vida subconsciente, as coisas escondidas. Influencia a função humana mais escondida, a mais secreta, a sexualidade. Representa a morte, o túmulo, a fecundidade, a ejaculação, os demônios interiores, os poderes secretos, a espionagem e a regeneração. Dentre outras funções que exerce, uma, muito importante: a de pôr fim às coisas para substituí-las progressivamente por outras, gerando um fato novo, um novo ser, no geral mais rico. 

TÚMULO DE
NIETZSCHE

No dia 25 de agosto de 1900, como está acima, o deus de Nysa, que “vive” no signo de Escorpião (nesse dia posicionado em Gêmeos, opondo-se a Sagitário) veio buscar Nietzsche. A Lua, dona da casa morte, atacava também o seu ascendente, seu corpo físico. A história do nosso filósofo, como a de Orfeu, nos lembra muito vivamente também a situação de “profetas” que ao perseguirem um ideal, a adotarem uma crença, uma filosofia, instigando inclusive outros para que também o façam, não se “sacrificam” o bastante para isso. Ficam apenas nos belos discursos, nas belas teses, em grandes exibições intelectuais,  fixados apenas nos aspectos exteriores das questões que propõem. Ou seja, grandes aspirações, mas dificuldades com comportamentos que as justifiquem. Dioniso, lembre-se, é o deus que destrói, que aniquila ou enlouquece os seres e as formas que não sabem “morrer”, ou seja, mudar realmente, se transformar.