domingo, 28 de março de 2021

OS MONSTROS - VI


            

GRÉCIA   ANTIGA

Para uma melhor compreensão do que antes já se disse,  desviemos o nosso olhar para Creta, onde viveu Minos, rei da ilha. Filho de Zeus e da princesa fenícia Europa, teve ele o seu trono disputado por dois irmãos. Pedindo um sinal divino que o confirmasse como único imperador, Minos foi atendido. Com essa finalidade, o deus Poseidon fez sair das águas do mar de Creta um touro maravilhoso, que em seguida deveria ser sacrificado.

Deuses, como se sabe, se alimentam de nosso sacrifício. O sacrifício é um símbolo de renúncia, implicando uma troca entre o material e o espiritual. Na antiguidade, o sacrifício tinha por objetivo assegurar a salvação e devolver a inocência a um povo para que se livrasse assim de suas faltas, projetando-as sobre uma vítima, que recolhia as referidas faltas, executada (sacrificada) em seguida de maneira ritual. 

Símbolo de expiação, de purificação e de súplica, o sacrifício se apresenta muitas vezes sob o aspecto de uma morte ritual acompanhada de injúrias, de agressões, chicotadas, lapidação ou cuspidas lançadas sobre a vítima a ser sacrificada, como o exemplo muito conhecido do chamado bode expiatória, que carregaria consigo os males de toda a comunidade. 

A palavra sacrifício quer dizer tornar sagrado, sacrum facere. É o ato que permite ao humano a sua entrada na esfera do numinoso, ou seja, de um plano superior de vida, do divino, se quisermos. Todo sacrifício era na origem a oferta de alguma coisa, de um vegetal, de um animal, de um ser humano, de algo de valor, um bem, do qual se abria mão, se matava, que se entregava, para atrair as boas graças das potências divinas. O sacrifício, aos poucos, tomou o caminho de morte, de perda, especialmente de uma perda interior pela qual o ser humano se tornava mais digno neste comércio com o céu, ou seja, da ideia de uma vida superior que ele carregava dentro dele e à qual ele acedia.

POSEIDON
O animal enviado por Poseidon era, entretanto, tão maravilhoso que Minos não resistiu; logo pensou em utilizá-lo como reprodutor para aumentar ainda mais o seu enorme rebanho e, consequentemente, a sua riqueza. Assim fez, entregando ao sacrifício um touro de seu rebanho, muito inferior ao animal enviado pelos deuses. 

A punição veio imediatamente: a rainha Pasífae, mulher de Minos, foi tomada por uma incestuosa paixão erótica pelo animal. Ela pediu a Dédalo, o grande inventor grego, então exilado na ilha, que fabricasse, com toda a sua arte, o simulacro de uma fêmea, na qual ela entraria, para poder se unir sexualmente ao touro maravilhoso. Esta a vingança divina com relação à hybris de Minos. Algumas versões do mito nos informam que esta paixão contra natura foi inspirada a Pasífae por Afrodite por ter o pai da rainha de Creta, o deus Hélio, revelado publicamente os seus amores com o deus Ares, um episódio que nunca deixou de ser comentado nas festas do Olimpo. 

CNOSSOS
Da união da rainha com o touro divino nasceu o Minotauro, um ser humano gigantesco, com cabeça de touro, um monstro horrível que se alimentava de carne humana. Tamanha foi a vergonha dos reis de Creta que eles imediatamente pensaram num meio de escondê-lo. Mais uma vez Dédalo foi convocado. Pediram que ele construísse um imenso palácio, ao qual se deu o nome de Labirinto, na capital do país, Cnossos. Nos subterrâneos dessa grande construção o monstro foi encerrado. Para alimentá-lo era necessário, como se disse, lhe dar carne humana. Os gregos, à época, derrotados pelos cretenses, então uma civilização poderosa e esplêndida, pagavam-lhes um tributo por meio do qual o alimento do monstro era obtido. Enviavam anualmente muitos jovens para saciar a fome do Minotauro.

 MURAL  EM  CNOSSOS 
Mais tarde, Teseu, herói e rei de Atenas, irá a Creta e matará o Minotauro, com o auxilio da princesa Ariadne, filha de Minos. Pelo lado dos reis de Creta, esta história nos fala da cegueira das paixões. Pelo lado de Minos, o que temos é o desejo do lucro a qualquer preço, o desejo irrefreável da riqueza, a corrupção do dinheiro dos seres humanos no seu mais alto grau. Por parte de Pasífae, a sensualidade exagerada, o prazer dos sentidos numa de suas formas mais degradadas, a zoofilia. O fruto da perversão dos reis de Creta é o Minotauro, cuja crônica se liga à civilização cretense como um produto histórico da chamada era astrológica de Touro, situada mais ou menos entre 4000 e 2000 aC.

DIONISO
Na antiga tradição grega, o touro era o animal que simbolizava o deflagrar irrefreável da violência. Era por essa razão consagrado a Poseidon, deus dos oceanos, e a Dioniso, deus das metamorfoses, traduzindo como símbolo uma força calorosa e fertilizante, assimilada à falta de limites e, por isso, a tempestades e furacões, como se colocou. 

O tema do Minotauro ilustra a situação do desejo injusto quando eles nos vitima. É a representação mais perfeita da falta de controle diante das pressões internas, a submissão à pressão dos sentidos, a concessão mentirosa e os subterfúgios que usamos para nos desculpar diante dos nossos fracassos em procurar controlá-los, minimamente que seja. Numa primeira abordagem, a história do Minotauro nos coloca claramente dentro da esfera do passional, que se opõe ao que que é razoável, lógico, racional. Sem entrar no campo religioso, o que temos diante nós é a oposição entre o que os gregos chamavam de pathos e logos. Se este nos remete ao campo do racional, da ordem, da harmonia, da claridade, da universalidade da vida, o pathos se liga diretamente ao irracional, a sentimentos e emoções, à desordem, à desarmonia, à obscuridade, à particularidade, à doença, à loucura, à morte. 

   MURAL   EM   KNOSSOS

O mito também nos deixa claro, como muitos filósofos apontaram, que as paixões têm sempre um caráter terrível, inevitável muitas vezes, ameaçando a alma de desordem, de intranquilidade e de desassossego. Quando isto acontece no ser humano, a parte inferior (epithymia) invade a superior (logistikon). Por isso, as paixões, seja sob o ponto de vista religioso, psicológico, médico ou moral, em todas as tradições e épocas, sempre foram objeto de muita preocupação, de muita vigilância. Impondo-se, as paixões são sempre deploráveis, mesmo aquelas que a razão pode justificar, as socialmente aceitas, as chamadas paixões positivas. De qualquer modo, porém, mesmo estas, desequilibram sempre o ser humano, o colocam numa situação de vítima, já que o encerram muitas vezes num único modo de ser, devendo por isso ser controladas, atenuadas. 

Psicanaliticamente, o Minotauro deve ser visto como a expressão do recalque, do que não pode ser exibido à luz do dia, exposto, isto é admitido pela consciência. O Minotauro deve por essa razão ser escondido na escuridão do subconsciente (os labirintos, os corredores subterrâneos do palácio construído por Dédalo, símbolo do artista corrupto, aquele que produz apenas para satisfazer os poderosos). 

O recalque, lembremos, é um mecanismo de defesa que, teoricamente, tem a função de fazer com que as exigências pulsionais, as condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a eles ligados, passem do campo da consciência para o inconsciente, ao entrarem em choque as exigências contrárias. 

O recalque, lembre-se, não lida com as pulsões em si, mas com os seus símbolos, aquilo as representa, imagens ou ideias, conteúdos que, apesar de recalcados, continuam ativos no inconsciente, prontos para assediar o consciente, atacá-lo mesmo, apesar de todo o cuidado em se mantê-los contidos, abafados. 

Dessa história sai também a palavra labirinto, que pode tomar vários sentidos. A palavra, numa leitura religiosa, por exemplo, serviria para alegorizar o mundo, o mundo como labirinto, a dispersão, a queda, a perdição e a perplexidade do espírito diante da vida fenomênica. A redenção só seria possível se fosse encontrado um meio de sair dele, se obtivéssemos o fio de de Ariadne. O fio, como símbolo, em todas as tradições, lembra a ligação entre dois estados da existência, dois modos de ser. Os hindus dão o nome de sutra ao fio como elemento de ligação entre o corpo material e o corpo anímico. 

No mito grego, como se disse, Teseu foi a Creta para libertar a Grécia (Atenas) do pagamento do tributo (carne humana) ao monstro. Foi ajudado pela princesa Ariadne, filha de Minos e de Pasífae, que lhe forneceu um fio com o qual ele poderia entrar e sair do labirinto. Sem este fio, ninguém conseguiria sair vivo daquela imensidão que eram os subterrâneos do palácio, cheios de túneis, desvios, corredores, salões e escadarias, em níveis diversos. 

   FIO   DE   ARIADNE  

O nome Ariadne admite vários sentidos: a muito veneranda, a muito pura, a muito luminosa. Ela é como tal uma representante do mundo matriarcal enquanto Teseu o é do patriarcado. Dois mundos que deveriam se completar, pois. O mito nos diz, entretanto, que tal não aconteceu. A promessa era a de que Teseu, uma vez vencido o monstro, voltaria a Atenas levando s princesa como sua mulher. Ora, ao retornar, o casal resolveu fazer uma parada para descanso na ilha de Naxos. Passaram a noite juntos. Na manhã seguinte, quando Ariadne acordou, não viu mais Teseu. Correu à praia, olhou o mar. Ao longe, as velas negras do barco do herói grego e a certeza de que fora abandonada.

ARIADNE EM NAXOS ( EVELYN DE MORGAN, 1855 - 1910 )

Essa história nos revela claramente que Teseu se aproveitou de Ariadne; valeu-se dela e a abandonou. Essa história permite, porém, outras leituras: há entre os personagens uma inadaptação mútua. Ariadne lhe forneceu o fio na esperança de prendê-lo. É uma figura do matriarcado que cede para conquistar. Dois mundos em conflito, um, o de Ariadne, agonizante, o matriarcado; o outro, o de Teseu, o patriarcado se afirmando cada vez mais sobre o outro, preparando-se para derrotá-lo, o que de fato aconteceu, imponde-lhe os seus valores.

Teseu não entendeu que o fio de Ariadne significava a oportunidade de um segundo nascimento (união entre o masculino e o feminino de sua personalidade). Fixado unicamente no seu lado masculino, usou o fio e abandonou a princesa, que, como o mito nos conta, foi encontrada pelo deus Dioniso na praia de Naxos. Dioniso a transformará em sua mulher e depois a matou, ou melhor, sacrificou. Antes, para celebrar a sua união com a princesa, Dioniso a presenteou com um belíssimo diadema, que depois será colocado nos céus como a constelação Corona Borealis. Lembro que astrologicamente uma das “vítimas” das influências desta constelação foi a princesa Diane, da Inglaterra, conforme depreendemos da leitura de sua carta astral.

Ariadne é um símbolo feminino, o da mulher que, fixada nas suas prerrogativas matriarcais, tenta manter o seu status, não sabendo se renovar, diante da ascendente ordem patriarcal. Numa outra leitura, Ariadne era em Creta uma antiga divindade da vegetação que na “nova ordem” (a nova ordem era a cultura do vinho, Dioniso) perdeu o seu poder, a sua posição cultual, mas com direito, na sua agonia final, a uma apoteose digna. Dioniso é a inapelável destruição das formas que não sabem se renovar. 

DIONISO E ARIADNE (TICIANO VECELLIO, 1490-1576)

Na ilha de Naxos, como recorda Plutarco, celebravam-se festas que tinham um duplo caráter, em honra a Ariadne e a Dioniso. Festas da dor e da alegria, com muitos cantos primaveris e ditirâmbicos. Estas festas viam a princesa como uma deusa da vegetação que tinha que morrer e renascer anualmente para dar lugar ao vinho (plantações do deus). 

Ariadne foi para Teseu, de certo modo, segurança, proteção e ternura. De outro modo, ao tentar levar essas funções muito longe (mãe-amante que abafa, castra e mata), ela significava riscos de opressão, de estreiteza, de limitação, insuportáveis para uma figura típica do patriarcado como Teseu. 

O encontro de Ariadne com Teseu marca a última fase do matriarcado e o início do acesso do patriarcado ao poder, na eterna alternância histórica das forças que atuam no universo, no jogo das polaridades. O matriarcado como se sabe está ligado a cultos agrários, nos quais a mulher ocupa posição importante, como doadora da vida. 

Com a afirmação das forças patriarcais, sobretudo sob o ponto de vista religioso (religiões do pai), submetido o princípio feminino ao masculino, a mulher, como grande-mãe, não deixará de ser reverenciada, mas sempre numa situação subalterna. Criam-se, por exemplo, ficções como a de virgens dando à luz a heróis e profetas. As diversas madonas que vão aparecer na arte ocidental, principalmente no Renascimento vêm desse mundo. 

O grande modelo da madona na arte ocidental se inspira claramente em Perséfone, como ela aparece na segunda fase (epopteia, contemplação) dos mistérios eleusinos, com um menino-deus de nome Brimo nos braços. 

Receptáculo da vida, matriz na qual foi concebido o mundo animado, associada às águas originais, a figura materna aparece em todas as tradições sob uma forma múltipla de aspectos, da mãe-virgem, passando-se pela madrasta infame, à prostituta. É sob estes três principais aspectos que as religiões patriarcais a vêm.

KALI
Os mitos, lembre-se, sempre utilizaram a imagem da Mãe Universal para conferir ao cosmos as suas originais propriedades femininas como nutriz e protetora. Há mais de 5.000 anos os cultos de inúmeras Grandes-Mães eram celebrados em grande parte do mundo já civilizado. Eram, no geral, divindades ligadas à terra, ao mundo da agricultura como símbolos da fertilidade. Nessa condição, as Grandes-Mães sempre representaram a vida e também a morte. Nascimento: saída da matriz; morte: retorno à Terra-Mãe. Na Índia, por exemplo, Kali é o nome da Grande-Mãe que sob o seu duplo aspecto é tanto terrível como benevolente. 

A psicologia moderna vê (entende?) que o arquétipo maternal sempre evoca as origens, a natureza, a vida instintiva, a criação passiva no seu aspecto gerador. Daí para esse entendimento a mãe encarnar sempre o aspecto vegetativo da criação, o inconsciente, os fundamentos da consciência, mas, ao mesmo tempo, a obscuridade noturna e angustiante.

MADONA  COM A  CRIANÇA  ( FILIPPO LIPPI, 1406 - 1469 )

Sob seu aspecto nutriente, a mãe é símbolo de saciedade, de carinho, de amor, de calor, de compreensão. Ela é proteção, refúgio, abrigo sempre procurado quando das tempestades da vida. Primeiro objeto de amor do que nasce, a mãe é também um primeiro ideal, conservado como fundamento inconsciente de todas as imagens de felicidade, de verdade, de beleza, de perfeição, que todas as imagens da Madona com o Bambino, por exemplo, procuraram fixar na arte da Renascença. 

No psiquismo masculino, a imagem materna tem relação com o inconsciente, significando uma relação (fixação) prolongada com ela um complexo (conjunto de sentimentos) a que a psicanálise deu o nome de complexo de Édipo: amor e desejo de reintegrar com ela um paraíso perdido contra o qual se opõe a figura paterna, odiada, no mais das vezes, inconscientemente.

É por essa razão que na Oniromancia as frequentes aparições da figura materna indicam uma falta de autonomia na conduta da existência. No inconsciente masculino, a aparição da figura materna costuma se dar por imagens que lembram a água e suas profundezas, a Lua, feiticeiras, pesadelos infantis, baleias, sempre ligadas a aspectos devoradores, à sua autoridade excessiva, à sua ausência ou maldade. Evidente, todas estas imagens indicam claramente ao sonhante a necessidade de se livrar da influência onipresente da mãe para adquirir um eu autônomo. 

As imagens maternais, arquetipicamente, podem tomar, num sentido pessoal, a forma de uma governanta, de uma ama-de-leite, de uma velha ama, de um animal (vaca) e, num sentido mais amplo, de uma gruta, de uma fonte, de uma igreja, de uma universidade, de uma cidade, de um país, da floresta. Não é por acaso que Alma Mater, por exemplo, é uma expressão muito usada, em determinados meios universitários, para designar a escola em que se formaram.

O tema do Minotauro é uma ilustração do desejo injusto, da submissão à pressão dos sentidos, das concessões mentirosas, dos subterfúgios que inventamos para apaziguar a nossa consciência. Psicanaliticamente, o Minotauro é, como se disse, a expressão do recalque, do que não pode ser exibido à luz do dia (admitido pela consciência) e que, por isso, deve ser escondido na escuridão do labirinto (subconsciente). O recalque é um mecanismo de defesa que, teoricamente, tem por função fazer com que as exigências pulsionais, condutas e atitudes, além dos conteúdos psíquicos a ela ligados, passem do campo da consciência para o do inconsciente, ao entrarem em choque com exigências contrárias.


Dessa história sai também a palavra labirinto, que pode tomar vários sentidos. A palavra, numa leitura religiosa, servirá para alegorizar o mundo, o mundo como labirinto, a queda e a perdição da alma na dispersão e na perplexidade da vida fenomênica. A redenção só seria possível se alguém nos fornecesse um meio de sair dessa dispersão (o fio de Ariadne), que nos ajudasse a encontrar o caminho para sair dos corredores desse mundo subterrâneo. 

O labirinto pode ser também uma ilustração do mundo do erro, da necessidade que temos de ultrapassar os limites de uma vida vegetativa, na qual a maioria vive encerrada. Quando nascemos, entramos nesse mundo, somos quase vegetais. Precisamos caminhar em direção do animal e deste em direção do humano. Encontrar a saída, a luz, é muito difícil. Por isso, em muitas tradições a entrada na vida lembra a entrada num labirinto. No mundo das interpretações, a entrada no labirinto pode aparecer muitas vezes como uma ilustração da viagem noturna do Sol. Ao se esconder atrás das montanhas ou mergulhar no oceano, o Sol inicia uma viagem subterrânea que lembra muito uma viagem labiríntica. 

Outros consideram o labirinto como uma representação da mente do homem desprovido de uma dimensão espiritual em sua vida. Na catedral de Chartres e em muitas outras encontramos labirintos esculpidos (desenhos) nas pedras do seu solo para representar a vida como peregrinação e as dificuldades que nela podemos encontrar. Os labirintos nas catedrais europeias são chamados de caminhos de Jerusalém, considerados como substitutos da verdadeira peregrinação. 

A arte barroca  e a que lhe sucedeu, a arte rococó, em muitos parques públicos e privados,  (castelos), principalmente na França, transformam os labirintos, de esquemas relativamente simples, em verdadeiros dédalos (outro nome de labirinto) de vegetação alta e espessa, com o objetivo de divertir os visitantes.

Os labirintos na arte ocidental tomaram sempre o caminho que se estende por várias direções, falando-nos de encruzilhadas, possibilidade de escolhas, extravios, erros etc. Na linguagem corrente, a palavra labirinto tem invariavelmente o sentido de complicação, de enredamento, de um domínio do espaço problemático, possuindo um valor negativo,  traduzindo sempre a ideia de uma construção tortuosa destinada a desorientar as pessoas. 

No Renascimento, a imagem do labirinto começa a ser usada para representar a confusão da vida interior do homem. Entenda-se: na Idade Média, o mundo exterior era ainda ameaçador, o labirinto estava fora. No fim da Idade Média, os poetas começaram  a pensar que o labirinto estava dentro do homem e, como tal, era ele que o projetava para fora. De objetivo, o labirinto se torna uma figura subjetiva. 

O primeiro escritor a propor uma leitura totalmente nova do labirinto foi Boccaccio (1313-1375), gênio da poesia. Numa obra, Il Corbaccio (O Sonho), que tem por subtítulo Laberinto d´amore, o poeta descobre os caminhos tortuosos do amor. Apaixonou-se por uma bela viúva que não lhe deu a mínima atenção, ridicularizando-o inclusive.  A esse descaminho amoroso ele deu também o nome de curral dos porcos de Vênus. Daí para frente, a imagem do labirinto se integrou à poesia amorosa, designando uma espécie de prisão sem portas, cárcere voluntário no qual o poeta se encerrava.  

Aos poucos, nos séculos seguintes, o labirinto deixou de ser a imagem de uma sedução, de encantamento, de um sortilégio mais ou menos longo, para se tornar a imagem do próprio mundo. O foco da interpretação do labirinto deixou de se fixar na tensão entre o interior e o exterior, para considerar o próprio mundo como labirinto, de aparências enganadoras. 

Na Renascença o labirinto deixou de ser uma realidade exterior e hostil, uma realidade da qual o homem só se salvaria pela misericórdia divina. A partir de então fixa-se a leitura de que o labirinto é o espaço em que nos movimentamos, um lugar onde cada um tem que encontrar pessoalmente o seu próprio caminho. Desaparece também a ideia de que a saída do labirinto poderia levar a esta ou aquela meta. A obra de Kafka parece ter posto um final a essa ideia, de que há um centro a alcançar. Seu personagem K., perdido entre o Castelo e Josefov, em Praga, anda pelas ruas, entra por ruelas,
atravessa pontes, abre portas, mas não consegue chegar a lugar nenhum, para afinal ser julgado sem saber bem o que acontece. Com a obra de Kafka chegamos definitivamente à conclusão de que não há metas, mas tão somente caminhos. Dessacralizado o espaço, perdida a ideia de um centro, com Kafka começa aquilo que podemos chamar de errância moderna, um processo que James Joyce, na literatura, com o seu Ulisses, levará às últimas consequências.