sábado, 3 de março de 2012

DIVAGAÇÕES SOBRE O RISO

Como acontecimento físico, o riso nada mais é que uma demonstração de alegria, de contentamento, pela expressão do rosto de alguém, por certos movimentos da boca e dos músculos faciais, acompanhados de expirações bruscas e contínuas ruidosas. Cada cultura tem, inclusive à sua maneira, construções verbais peculiares para provocá-lo, para despertar o risível, usando para tanto vários recursos, como, por exemplo, as chamadas expressões idiomáticas, no geral incompreensíveis se traduzidas literalmente.

Lembro, por exemplo, que os franceses têm se dilater la rate, expressão pela qual ligam o riso descontrolado à dilatação do baço. Curiosamente, os mesmos franceses associam o riso ao bidê pelo verbo se bidonner, rir muito. No Dictionary of the Underworld, publicado pelas Wordsworth Editions, o riso (laugh) aparece unido a palavras como water e weed para designar, respectivamente, álcool (bebida alcoólica) e erva daninha (maconha, fig.dir.). Laugh off (riso mais fora, separação, distância) é disfarçar sorrindo e a fit of laughter (apropriado, adequado, mais riso) pode ser um ataque de riso. Os italianos têm ridere a denti stretti, algo assim como rir de dentes fechados para nos falar de alguém que ri contrariado, contra a sua vontade. Nós, por exemplo, aproximamos riso e bandeiras (rir às bandeiras despregadas) para falar de alguém que ri às claras, sem dissimulação. A expressão “morrer de rir” se aproxima desta última, uma expressão hiperbólica, exagerada. Risu dissolvebat ilia sua, diziam os latinos: quebravam-se os ossos de tanto rir, arrebentar de tanto rir.

Entre nós e em outras línguas, como o francês, usamos “desopilar o fígado”, ou seja, desobstruir o fígado para libertar a bile negra, causadora de mau humor ou de melancolia. Lembremos que bile negra em latim é atrabilis (atra, negro, sombrio, e bile ou bilis, substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado, produtora de mau humor, mau gênio) e em grego melancolia (mela, negro, e bile ou biles, o mesmo que em latim, substância causadora de abatimento mental e físico, depressão).

Para classificar os risos, podemos nos referir a riso aberto, riso claramente exteriorizado, franco; riso amarelo, riso contrafeito, constrangido; riso frouxo, riso contido; riso louco, riso incontido; perdido de riso, que não pode controlar ou suster o riso; riso canino ou riso sardônico, riso semelhante a um arreganhar de dentes, provocado por espasmo facial, especialmente no tétano. Acrescente-se que nos dicionários a palavra sardônico denota também ironia maldosa, zombaria, sarcasmo. Não podemos esquecer, porém, que sardônico vem do latim, “Sardinia”, ilha do mar Mediterrâneo. A Sardenha, antes Sardus, era não só célebre pelos seus peixes saborosos, as sardinhas. Havia nessa ilha uma erva muito tóxica, cuja ingestão provocava uma crispação dos maxilares, um rictus doloroso, chamado por isso de riso sardônico.

Como uma pessoa ri? O riso pode ser simplesmente um ato social; começa pelo rosto e pode se espalhar pelo corpo. Há quem diga que envelhecemos quando deixamos de rir. Onde encontrá-lo? Um veio muito rico a ser explorado quanto ao riso, por exemplo, pouco notado, está na Bíblia, inclusive nos chamados semitismos que encontramos no seu texto, os seus idiotismos peculiares, de grande riqueza, aliás, nas línguas semíticas. Presentes também na Bíblia uma das características mais interessantes encontradas nas antigas mitologias, a de unir os nomes e o destino dos personagens. A história de Isaac é um exemplo.

ABRAÃO E SARA

Sara e Abraão, como se sabe, já eram muito velhos quando este anunciou que sua mulher esperava um filho. A declaração foi motivo de muita risada, de chacotas, pois, ao que parece, tinham ambos cerca de noventa anos. Quando a criança nasceu lhe deram o nome de Isaac, que etimologicamente se liga à palavra gargalhada. Moisés, por exemplo, que foi encontrado pela filha do faraó num cesto flutuando nas águas do rio Nilo, tem seu nome derivado de um jogo de palavras, mo, água, e uje, salvar, o “salvo das águas”. E por aí se vai...

Desde os gregos, de Homero, mais exatamente, para quem ressoava no Olimpo um riso inextinguível, inúmeros filósofos, poetas, historiadores, cômicos, psicólogos, médicos, sociólogos, humoristas, adivinhos ou profetas vêm tentando decifrar o riso. Uma definição que nos vem da Itália de hoje nos diz que rir é manifestar uma espotânea reação de hilariedade, suscitada no ânimo de uma pessoa através da modificação da mímica facial, consequente do estiramento dos lábios com modificação do rítmo respiratório. Fala-se também nessa definição que para haver o riso é necessária a contração de 15 músculos faciais (Dizionario della lingua italiana, de G.Devoto e G.C.Oli).


AFRODITE (BOTTICELLI)

Os antigos gregos sabiam que onde a deusa Afrodite fosse louvada haveria, risos, jogos, bricadeiras, paz, doçura. Sabiam também os gregos que as crianças pequenas, os bebês, gostam de rir, apreciam o carinho, as coisas doces, as frutas, tudo isto fazendo parte do universo da deusa. As crianças gostam de brincar e de sorrir. Sabem disso instintivamente.


FRISO GREGO - CRIANÇAS BRINCANDO

Freud, no seu trabalho sobre o humor e sua relação com o inconsciente, analisou como o riso triunfa sobre a repressão. O riso e o desejo, segundo ele, têm muito em comum: nenhum dos dois pode ser forçado. Se forçado, é um vexame. Pela graça de Afrodite, nossa inocência se renova, pois ela restaura a cada encontro amoroso a singularidade da primeira vez. Afrodite é, neste sentido, o oposto de D.Juan, que quer encontrar a primeira vez na enésima. Com Afrodite, renascemos a cada momento. Fica aqui a pergunta: será por isto que a palavra bebê entra tanto nas relações amorosas, os parceiros usando-a para se dirigir um ao outro, “meu bebê”?

Queiramos ou não, estamos sempre presos à nossa época, aos valores e às ideias do tempo em que vivemos. Nada tão risível como pensamentos e grandes “verdades” que orgulhosamente foram apresentados num determinado tempo e que depois foram lidos e apreciados em outro. Parecem-nos tão ridículos...

Tomemos, por exemplo, o caso de um filósofo do séc. XIX, muito lido e estudado ainda, sobre o qual, com admiração, são produzidas teses e dissertações universitárias em todo o mundo ocidental. Ele é tido como um campeão das liberdades individuais, aquele que lutou contra o moralismo desgastado, o puritanismo decrépito. Frases como as que apresentamos a seguir não provocaram (só os meios religiosos levantaram sua voz contra ele) grande espanto no período em que apareceram. Lembro-me de um caso pessoal: na minha juventude, ao ler um livro desse filósofo, meu professor de filosofia, um jesuíta, me citou o índex (lista oficial de livros cuja leitura a igreja católica romana proibia, cuja leitura era considerada perigosa à fé e à moral), me falou pecado mortal, excomunhão etc. Grande parte do que esse filófoso escreveu reflete, contudo, o mundinho pequeno-burguês em que ele estava mergulhado e como adotava as suas ideias:

Quando se abre um livro escrito por uma mulher logo se dá um suspiro; mais uma cozinheira que largou o fogão” (Obras Filosóficas completas, XI, 419).”
“A mulher constitui a segunda falha de Deus” (O Anticristo).
“A frigidez sexual nos espíritos superiores é essencial à economia da humanidade” (Humano, demasiadamente Humano).
“Os porcos chafurdam no gozo e quem quer que pregue o gozo veja se ele não traz em si um grão de porco” (Zaratustra).
No mais, há ainda a se registrar que esse filósofo tinha grande medo de perder a visão por estar se masturbando demais...

Aliás, foi Kierkgaard quem escreveu, não me lembro mais onde, que toda tese está exposta ao riso dos deuses. O riso dos deuses quanto à nossa pretensão, à nossa soberba, ao nosso orgulho, à nossa empáfia doutoral...

Durante o Renascimento, o riso, na sua forma mais radical, universal e alegre, separou-se pela primeira vez das camadas populares mais baixas e com a língua “vulgar” da época penetrou decisivamente no seio da grande literatura e da ideologia superior, contribuindo para obras de alcance mundial.

Os melhores exemplos estão no Decameron, de Boccaccio, praticamente em tudo o que Rabelais escreveu, em Cervantes, e em muitos dramas e comédias de Shakespeare.

Quanto à gargalhada, todos concordamos: é risada forte, prolongada, ruidosa. A raiz é garg, uma onomatopeia do ruído da água durante o gargarejo ou da garganta quando o alimento é engolido sofregamente. Os nobres ingleses (sécs. XVIII e XIX) recomendavam a seus filhos que fossem vistos sempre sorrindo, nunca gargalhando. O sorriso sempre foi considerado como mais elevado, superior à gargalhada e ao riso convulsivo, estes sempre tidos como mais instintivos. Já o sorriso seria uma forma mais humanizada da risada, sendo muito importante na chamada Patognomonia (estudo dos sinais que nos permitem conhecer doenças).

Se formos à Astrologia, que tem muito a dizer sobre o tema ora abordado, lembre-se, por exemplo, que ela liga a gargalhada ao elemento fogo (signo de Áries) e, no corpo humano, ao baço, este sempre considerado como sede natural de emoções e de paixões. Plínio, o Velho, já registrava na sua História Natural, fazendo coro com antigas tradições orientais, que pessoas que tinham dificuldades para controlar a gargalhada ou que gargalhavam muito podiam apresentar problemas no baço (dilatação). Os antigos chineses, por sua vez, sempre consideraram o baço no corpo humano como um depósito de energia, ligando-se ele, como tal, ao equinócio da primavera, isto é, ao signo de Áries (maiores detalhes sobre o baço e o riso neste blog, no artigo Calundu & Spleen).

A palavra sorriso vem de subridere, algo assim como rir em tom menor. O sorriso permanece muitas vezes inconscientemente estampado no rosto das pessoas como um tique, um cacoete, com finalidade de aliviar tensões. Por esta e outras razões (desejo de despertar simpatia) é que há sempre algo no sorriso que o caracteriza como uma máscara, um disfarce. Um exemplo disto está no chamado sorriso oriental, enigmático, pois nos obriga sempre a decifrá-lo.

CHISU RYU - ATOR DE YASSUJIRO OSU

Quando Leonardo da Vinci foi para Florença, recebeu uma encomenda: pintar o retrato de Lisa Gherlandini, mulher de Francisco del Giocondo, proeminente comerciante florentino. O retrato de Mona Lisa (Mona é uma contração de Madona) foi o resultado, a mais famosa tela da pintura ocidental, hoje no Louvre. Depois de passar quatro anos trabalhando nela, dando-a por não concluída, Leonardo a levou para a França, onde morreu.

MONALISA

Segundo Giorgio Vasari, o sorriso da Mona Lisa é “mais divino que humano”. Vasari afirma que Leonardo se serviu de músicos e bufões, palhaços, para evitar que o seu modelo parasse de sorrir e caísse na expressão melancólica convencional. Outros dizem que Leonardo, além do auxílio dos bufões, também participava, conversando sempre que possível com o seu modelo para que o sorriso não lhe fugisse do rosto. Esse mesmo sorriso, aliás, pode ser também notado no desenho A Gioconda Nua, do mesmo Leonardo, hoje também na França.

Quanto à inspiração desse tipo de sorriso, Leonardo a buscou provavelmente no famoso “sorriso arcaico”, da arte grega. Colocou-o no rosto de muitos modelos femininos, principalmente nos temas maternos (Leonardo, como filho adotivo, era fixado nesse tema), como os de Leda, mãe de Helena, de Clitmnestra e dos Dióscuros, e de Santa Ana, mãe da Virgem Maria.

Freud nos diz que o sorriso foi a expressão que por primeiro revelou satisfação e que por isso se tornou a mais usual nos relacionamentos humanos. Ele, o sorriso, surge sempre como uma expressão substituta para moderar todas as situações atuantes sobre a fisionomia, a raiva que foi reprimida, o temor que foi superado, o choro contido. Tudo isso é, no geral, substituído por um sorriso. Temos, no lugar, então, em muitos casos, o já mencionado riso amarelo, o sorriso contrafeito, para disfarçar alguma coisa, uma decepção. Na arte, lembre-se novamente, temos o sorriso arcaico, de convenção desconhecida, característico da estatuária grega antiga.

No capítulo de algumas patologias, como no caso de doenças mentais, não podemos esquecer o sorriso repentino, impulsivo, como no caso dos histéricos, cujo melhor exemplo, no mito grego, é o do frenético Aquiles. De um modo geral, porém, o que fica é que boa parte dos sorrisos tem a finalidade de ocultar a ansiedade, um certo mal-estar físico e psíquico simplesmente porque estamos no mundo, expectantes diante de alguma coisa indefinida, talvez de um perigo não determinado, diante do qual nos sentimos indefesos.

O conceito de humor (do latim, humeo, estar misturado) foi introduzido na literatura inglesa por Robert Burton em “A Anatomia da Melancolia”, em 1621. Foi definido desde então nos dicionários da língua inglesa como a qualidade que tem um discurso, um texto, uma ação que tende a provocar o riso.

Há que se mencionar, todavia, que, antes de Burton, Ben Johnson já havia proposto na sua comédia “Every Man out of his Humour” (1599) a primeira definição desta palavra. Ele a associava à antiga doutrina dos humores dos gregos e a fazia correlata do termo “mania”, excitação.

Na doutrina dos humores (ciência dos temperamentos) dos gregos, era dado o nome de humor a um líquido secretado pelo corpo e que era tido como determinante das condições físicas e mentais do indivíduo. Desde a antiguidade grega (Hipócrates) estavam definidos os quatro humores que indicavam os quatro temperamentos, cada um deles ligado a um elemento: colérico (fogo), sanguíneo (ar), melancólico (àgua) e fleugmático (terra). É com base nesta antiga doutrina que podemos, na Astrologia, por exemplo, ligar o riso e a gargalhada ao elemento fogo e o humor ao elemento terra, com uma certa contribuição do elemento ar.



O conceito de humor começou a partir dos ingleses então a ser usado em todas as literaturas, dando-se ênfase àquilo que provocava o riso, a chamada vis comica dos autores latinos. Nessa acepção, a literatura humorística abrange obras tão diferentes como os contos de Boccaccio, os textos de Rabelais, as comédias de Molière, as sátiras de Swift, a poesia irônica de Heine, a prosa burlesca de Gogol e a desgraça melancólico-ridícula de Chaplin no cinema.

CHAPLIN

O humor, porém, já estava há muito presente no mundo. Refiro-me, por exemplo, mais uma vez, à Bíblia, ao livro dos Provérbios, onde encontramos pérolas como estas: “Goteira pingando em dia de chuva e mulher briguenta são muito semelhantes” ou “A mulher formosa e insensata é como um anel de oiro na tromba de uma porca”. A arte de negociar dos povos semitas, quando pensamos em humor, está bem representada tanto no Antigo Testamento como no Novo. Abrão, por exemplo, ao interceder por Sodoma, num longo diálogo com Deus, não se acanhou de pechinchar descaradamente, pedindo que menos pecadores fossem sacrificados (Gênesis, cap. XVIII).

SODOMA (GUSTAVE DORÉ)

Disso tudo resulta uma grande dificuldade para se conceituar o humor. Além disso, não existe uma explicação satisfatória para o fenômeno, em que pese o importante trabalho de Henri Bergson, Le Rire. O melhor, parece-me, será considerar o humor como a faculdade de captar e exprimir o ridículo, o risível, o ambíguo, o triste-alegre, com elementos que tocam o sentimento, agindo inclusive sobre o intelecto, com a possibilidade de se chegar a um estado entre as lágrimas e o riso.

Quando humor e ironia andam juntos, sinal de inteligência superior, o efeito é o sorriso, nunca a gargalhada. Só grandes escritores, como James Joyce ou Machado de Assis, alimentados certamente pela perspicuitas dos latinos, fruto de uma longa convivência com os clássicos de várias literaturas, condição prévia da credibilidade do seu discurso, conseguiram juntar o humor e a ironia. Ambos, humor e ironia, pedem sempre, estilisticamente, um grande amor pelos tropos e pelas figuras de retórica, pelo uso de paradoxos, trocadilhos, oxímoros, calembures etc., o que só pode ser obtido por uma convivência com o que há melhor na literatura. O resto será riso e gargalhada...


MACHADO DE ASSIS

A ironia, segundo Freud, é sinal de maturidade emocional, além de ser, para ele, o único fenômeno no reino do cômico que se aproxima do sublime. Na sua forma mais baixa, que ocupa quase todo o espaço da comunicação de massas, dá-se também o nome de humor (?) escrachado a tudo aquilo que produz o riso ou a gargalhada (escracho é também nome de retrato tirado na polícia). Outra classificação, equivalente: humor esculachado, também uma forma de humor afrontoso, deselegante, rude, muito cultivado também nos programas de TV e pela nossa publicidade, cada vez mais boçal, onde impera o chulo, inclusive a violência física, tudo sempre muito ultrajante. Esculacho é palavra que veio para a nossa língua, segundo alguns, do inglês, de scratch, arranhar, ou, segundo outros, do francês, de crachat, cusparada.

SÓCRATES E SEUS DISCÍPULOS

A ironia entre os gregos (eironeia) era a arte de interrogar fingindo ignorância. Euroneimai quer dizer fingir-se de ignorante. Sócrates a levou para a filosofia. De um modo geral, todos a consideram uma forma superior de humor. Ela vem sempre com um sorriso, uma alegria bastante moderada, pois é sempre um triunfo do ego.

No seu sentido mais imediato, a ironia é uma figura de linguagem pela qual se diz o contrário do que se quer dar a entender. É o caso do sentido oposto, diverso, emprego inteligente de contrastes. No teatro, temos a chamada ironia dramática, descompasso entre a situação desenvolvida num drama e as palavras que são proferidas, não entendidas pelos personagens, mas pela platéia.


A ironia passa no geral por uma forma de deboche, de desprezo, e nela podemos distinguir: a) a boa ironia, ou ironia socrática, que procede do sentimento (falso?) de nossa ignorância e se exprime por interrogações aparentemente ingênuas; b) a má ironia, destrutiva ou autodestrutiva, que procede do sentimento de nossa impotência com relação ao nosso destino. A ironia se utiliza geralmente da antífrase, que consiste em fazer entender o que se quer dizer dizendo exatamente o contrário.

Na Idade Média, havia um sentido da ironia, hoje perdido, que procurava a depreciação de algo por uma mentira ou pelo ato de enganar os outros para se tirar vantagens. Santo Tomás de Aquino tratou desse tipo de ironia e de outras coisas referentes ao riso no seu Tratado sobre o Brincar (Comentário à Ética a Nicômaco, Livro IV).

Tudo o que pudermos dizer do riso nas suas várias formas de manifestação literárias também se inclui no chamado gênero cômico e nos remete, em última instância, ao deus Dioniso. Em grego, koimoidia era o canto do komos, este um cortejo ritual de camponeses, alegre e barulhento, onde havia também muita comida, sempre uma forma de se honrar o deus.

Comédia, durante muito tempo, foi a designação usada para se definir peça de teatro em geral. Comédie Française e Théâtre Français são sinônimos e comédien tanto se refere a um ator cômico como a alguém que tanto trabalhe como mimo ou ator trágico. Em Aristóteles, cômico e comédia apareciam associados à imitação de homens de qualidade moral inferior, não com relação a vícios, mas com relação ao risível.

Quando lidamos com o cômico, sob o olhar psicanalítico, é preciso fazer uma distinção muito sutil entre o cômico com o qual nos deparamos na vida, espontâneo, e com aquele que é provocado deliberadamente. No caso deste último, para o seu êxito, há necessidade de dois fatores: que os impulsos da vida instintiva sejam satisfeitos e que as objeções do superego sejam ludibriadas.

A diversidade de formas e de sentidos do cômico deu lugar a uma tipologia muito interessante, baseada nos modos utilizados. Por isso, é possível falar em comédia que têm temas baseados em costumes, em tipos humanos, em palavras, em gesticulação etc. Mais ainda: dentro da órbita do cômico, convivem, por exemplo, manifestações muito interessantes e diferentes, unindo-se desenho e palavra. Uma dessas formas de união, por exemplo, é a caricatura. O italiano “caricare” e o francês charger (charge, caricatura) definem no fundo a mesma ideia: carregar, sobrecarregar. Não é por acaso que revistas cômicas como o Malho, no Brasil, e Punch, na Inglaterra tiveram tais nomes.

O gênero teatral mais ligado ao riso é a comédia, na origem festas celebradas em honra ao deus Dioniso. Tinha um caráter campestre, por oposição à tragédia, urbana, mais solene. O propósito da comédia era o de divertir, nela se incluindo também o escandaloso, o ridículo, tudo em meio a cantos burlescos, comida, bebida, desregramentos.

DIONÍSIAS

Aos poucos, no mundo grego, tanto a comédia como a tragédia, antes festas populares espontâneas, acabaram por se institucionalizar. O governo das cidades gregas, especialmente Atenas, as encampou, procurando esvaziá-las de seu caráter revolucionário, principalmente a comédia por causa de suas propostas anárquicas.

O grande nome da comédia grega foi Aristófanes, um dos maiores gênios da arte teatral em todos os tempos. Seu humor é inteligente, ainda que por vezes seus textos descambem para o deboche e para o obsceno. Produzidas há 2500 anos, a maior parte das comédias de Aristófanes é atualíssima.

Em As Vespas (422 aC), por exemplo, discute-se o problemas dos tribunais do júri em Atenas. Questiona-se na comédia se o júri, como instituto jurídico, era bom ou mau. Ao final da discussão chega-se à conclusão, depois de muitas gozações, de que o maior mérito dele era o de propiciar um bom dinheiro aos juízes.

Na comédia As Aves (411 aC), dois cidadãos, cansados da corrupção, da burocracia e dos sicofantas que infestavam a cidade (sicofantas eram os delatores profissionais) transformaram-se em aves, buscando um novo lugar para viver. Fundaram uma cidade, livre desses problemas. Logo, porém, os humanos aderiram à mania de se transformar em aves e, dentro em pouco, a nova cidade, só habitada por aves, começou a sofrer dos mesmos males de Atenas.

Na mitologia grega, um dos menos conhecidos filhos da deusa Nix é Momo, o Sarcasmo. Sua história não é muito volumosa, mas ele está muito presente na arte e no cotidiano das pessoas. Momo tem relação com o verbo mokasthai, zombar, escarnecer, ridicularizar. A raiz que está por trás deste verbo, mou exprime uma ideia de desdém, de menoscabo, um trejeito feito com os lábios a lembrar deboche, pouco caso, com o objetivo de se desqualificar o que é apresentado ou dito. Momo acabou por personificar o sarcasmo.

MÁSCARAS DA COMÉDIA GREGA

Os gregos tinham a palavra sarkasmós, riso amargo, do verbo sarkádzo, que tem o sentido de abrir a boca para mostrar os dentes. O verbo também significa mostrar os dentes como um cão. Depois, mostrar os dentes com um riso amargo e crispado. Já sarkidzo é arrancar a carne, a pele, dilacerar. Daí sai sarcófago (sarkophagos), devorador de carne. Indo mais fundo, podemos chegar à palavra grega sarx, sarkos, carne, de onde tudo provém.

Momo, na mitologia, passou desde então a significar também açoite, ironia cáustica, ato de abrir a boca para dilacerar, maledicência, crítica feroz. Expulso do Olimpo, porque irreverente e profanador, acolhido por escritores e poetas, Momo foi para a literatura, para o teatro e para a filosofia. Dioniso, como deus do teatro, “entregou” então a Momo a tutela do chamado drama satírico, gênero teatral que fazia parte das chamadas Dionísias Urbanas.

No séc. II, Luciano de Samosata, uma das maiores figuras da sátira grega, genial sempre, escreveu Diálogos dos Mortos, onde nos deixou passagens de uma verve notável. Inspirado pelas sátiras de Menipo, ele corrigiu o seu realismo por uma fantasia plena de invenção e de malícia. Sua descrição do affaire Afrodite-Ares é soberba. Além do mais, destaque-se que ele escreveu limpidamente no melhor grego ático de seu século. Muito admirado pelos modernos, Luciano foi modelar para muitos, como Erasmo e Cyrano de Bergerac.

Ainda na Itália, temos um personagem muito ligado ao riso. Referimo-nos a Arlequim, personagem da commedia dell´arte, Arlecchino, no teatro desde o séc. XVII. A origem de seu nome é muito interessante. Viria ele do inglês medieval, de Herle King, isto é, Rei Harilo. Depois, passou a Harlequin, Arlecchino, nome que foi usado para designar a máscara típica de um personagem bufão, apalhaçado, cuja função era a de divertir o público durante os intervalos das teatrais. Arlequim é o farsante, o bufão, o palhaço por excelência.

A sua principal característica era a de dizer a verdade rindo; ser como Arlequim era proceder dessa maneira. A origem desta característica deve estar numa famosa frase de um poeta latino, Horácio (séc. I aC): Ridendo dicere verum, que está nas Sátiras, uma obra do poeta. Logo os que o leram a divulgaram, virando ela proverbial.

Ainda com relação a Arlequim temos também a expressão latina, cunhada no séc. XVII por Jean de Santeuil, a propósito da máscara do personagem: Ridendo castigat mores. Essa expressão logo se espalhou. Totó (fig.esq.), o famoso cômico do cinema italiano, usou-a num filme, parodiando-a. Numa cena, ele, rindo, esbofeteava um figurante de pele escura, dizendo Ridendo castigat moros. A expressão arlequinesca procura sempre, se usada seriamente, reprimir vícios e erros em tom jocoso e indulgente.

Na Idade Média, na pensínsula ibérica, a par da poesia lírica, surgiu uma inesquecível literatura, vigorosa, bastante mordaz, obscena, satírica, implacável. Tal literatura estendia-se a todos os campos, à moral, ao religioso e ao político. Os ataques eram cruéis e muitas vezes punham em risco a própria vida do poeta. A essa produção literária, de inspiração provençal (sirvantès) se deu o nome de cantigas de escárnio e de maldizer.

GREGÓRIO DE MATOS

Este artigo não poderia ser encerrado sem uma referência especial a Gregório de Matos (1633/36?-1696), a primeira grande voz da literatura brasileira. Viveu e escreveu no período barroco, entre a Bahia e Pernambuco, com a tradição portuguesa e a espanhola. Inventivo e original, introduziu na literatura a linguagem coloquial, popular, “mestiça”, a linguagem das ruas. Chamado o “Boca do Inferno”, tornou-se um poeta maldito ao denunciar os desmandos sociais, políticos e econômicos de sua época e também ao expressar poeticamente o erotismo e a sensualidade. Sua obra é de grande qualidade e beleza artística; possui muitas faces, todas inesquecíveis e antológicas. Cultivou a poesia lírica, a satírica, a filosófica, a religiosa, a pornográfica e a encomiástica. Lírico-barroco por excelência, foi e é o maior satírico de nossa literatura, irmão de Luciano de Samosata, sempre repleto de grande brasilidade:

Bela Floralva, se Amor
me fizera abelha um dia,
todo esse dia estaria
picado na vossa flor:
e quando o vosso rigor
quisestes dar-me de mão
por guardar a flor, então
tão abelhudo eu andara,
que em vós logo me vingara
com vos meter o ferrão.

Se eu fora a vosso vergel,
e na vossa flor picara,
um favo de mel formara
mais doce, que o mesmo mel:
mas como vós sois cruel,
e de natural castiço
deixais entrar no caniço
um Zangano comedor,
que vos rouba o mel, e a flor,
e a mim o vosso cortiço.