domingo, 31 de julho de 2011

EROS, AFRODITE, THANATOS E OS POETAS

Os mitos gregos fornecem os modelos para a maior parte dos comportamentos humanos, dando-lhes sentido e valor. São, para a cultura ocidental, aquilo que chamamos de arquétipos, padrões de conduta, conjunto de atitudes, posturas, modos de ser. O mundo dos arquétipos é insondável. Só o percebemos através de suas manifestações no nosso consciente. Os arquétipos são possibilidades latentes, como fatores históricos, biológicos e outros. Em função da vida que levamos, conforme as condições de tempo e lugar, as imagens arquetípicas são apresentadas ao nosso consciente. Os personagens míticos e suas histórias, gregos ou de outras mitologias, podem atuar sobre a nossa vida consciente como arquétipos do inconsciente coletivo, despojando-a de sua autonomia, gerando fenômenos de massificação, de alienação, doenças, patologias etc.


O OLIMPO

Essas imagens provêm de uma área fora do alcance de nossa vontade consciente, mas fazendo parte de nosso mundo interior. Levam-nos a agir como não pretendemos, impondo-nos papéis que não sabemos por que os desempenhamos, fazem-nos muitas vezes ficar descontentes diante de nossa maneira de agir. Quase sempre, uma sensação de fracasso, de algo que saiu como não queríamos, atos falhos, vexames... Todas estas perturbações têm forte acento emocional e são estritamente pessoais.
Embora estas imagens se assemelhem de uma pessoa para outra, sua intensidade varia muito. Muitas acabam por formar um núcleo temático, uma espécie de coágulo, e a ele vão se juntando, agregando, partículas toda vez que tal núcleo é estimulado por uma referência, por um encontro, por uma palavra que ouvimos, por um acontecimento externo ou interno que não conseguimos resolver, por fraqueza, inabilidade, incapacidade.
Esses núcleos temáticos são chamados de complexos. Neles represamos sentimentos, parcial ou totalmente inconscientes, com muita carga afetiva. Às vezes, quietos por longo tempo esses núcleos se ativam, fazendo até oposição às intenções do eu consciente, podendo inclusive romper a sua unidade. Comportamo-nos como se outro eu nos habitasse, dominando-nos. Uns são reconhecidos, outros jamais o serão. O reconhecimento intelectual desses núcleos não basta, pois o fenômeno é valorizado afetivamente. A libertação só virá se desintegrarmos os sentimentos neles represados.
Há na mitologia grega um deus, Eros, que simboliza a nossa pulsão fundamental de viver. Eternamente jovem, vem na figura de um jovem adolescente alado, nu, inquieto, com arco e flechas nas mãos. Eros confunde-se com o próprio desejo, o desejo de aproveitar, de gozar as coisas do mundo como satisfação dos sentidos, o desejo de buscar um parceiro, um amor, um amigo. Neste sentido, confunde-se com o que os antigos (e depois a Psicologia moderna também) chamavam de libido, a energia vital, a procura instintiva do prazer.
Eros encarna no mito o desejo unilateral, o desejo masculino, de um modo geral. Para contrabalançar as forças eróticas presentes no universo, os gregos criaram uma deusa, Afrodite, cujo arquétipo veio governar o prazer, o amor, a beleza, a sexualidade, a sensualidade das mulheres, levando-as a se envolverem com funções criativas e procriativas. No mito, Afrodite nasce no mar, em meio a espumas. Essa imagem de Afrodite, adulta, nua, lindíssima, será representada por muitos artistas. A deusa, pelo seu nascimento, define que o princípio da vida afetiva e, consequentemente, da vida amorosa estará para sempre ligado à água. Ou seja, amor é umidade. Os secos, os quentes e os frios têm muita dificuldade com relação à vida afetiva, ao amor, que fala de reciprocidade, de permeações. Afrodite passa por Chipre, a ilha do cobre, definindo-se como “boa condutora de eletricidade”, isto é, constituindo a polaridade passiva, feminina, por oposição à polaridade masculina, ativa. Ou seja, o princípio da água atenuando o princípio do fogo, Afrodite e Eros.

O NASCIMENTO DE VÊNUS - BOTTICELLI
Deusa de sedutora beleza (enkrateia), Afrodite era honrada em inúmeros santuários em todo o mundo mediterrâneo e da Asia Menor. A deusa surge no mundo grego para colocar as relações afetivas numa perspectiva de reciprocidade. Ela passa a simbolizar as forças irrefreáveis da fecundidade, não com relação aos frutos, mas com relação ao desejo apaixonado compartilhado.
A deusa é tanto o amor sob a forma física como o prazer dos sentidos cabendo-lhe o poder da transformação dos seres que nesses processos se envolvem. É neste sentido uma deusa alquímica, consumando relacionamentos, gerando formas novas de existência. Ela é também o impulso que vai além do sexual, representando um ímpeto tanto psicológico como espiritual que nos fala de comunicação e de comunhão. Qualquer pessoa que já tenha se apaixonado por alguém, por um lugar, por uma idéia, por um objeto artístico está lidando com os poderes da deusa. A consciência de Afrodite está presente também em todo trabalho criativo, mesmo aquele feito solitariamente. É a deusa das interações, podendo transformar uma simples conversa numa “obra de arte”. Com a deusa “presente” em nós, também podemos nos tornar mais espontâneos, como uma improvisação musical. Onde quer que apareça a consciência de Afrodite, os parceiros irradiam bem-estar, energia intensificada, a conversa é espirituosa, estimulante de pensamentos e sentimentos.
A deusa tem vários nomes, apelidos, Calipígea, Trívia, Urânia, Pandêmia, Citereia, Cípris etc. Toda pessoa que se envolve num processo afetivo, de trocas, a deusa a transforma num ser especial, quase “divino”. Quando Afrodite se apossa da personalidade de uma mulher, ela se abre para o mundo, para os outros, socializando-se. Ela aumenta o magnetismo pessoal. Quando por razões culturais e religiosas a mulher é rebaixada, Afrodite se “ausenta”. O arquétipo pode pôr uma mulher (dependendo do meio) inclusive em divergência com os padrões de moralidade vigentes. Por isso, as mulheres “Afrodite” podem ser marginalizadas, consideradas como perigosas, quando não como raptoras do masculino, como acontece com as religiões patriarcais.

ACRÓPOLE DE ATENAS

Afrodite era muito mal vista em Atenas, a cidade de Palas Athena, deusa virgem, das acrópoles. Nos meios populares da cidade, Afrodite era muitas vezes chamada de “A Prostituta”. Por causa de sua personalidade, fortemente marcada por traços orientais, sobretudo de Ishtar e de Astarte, aquela mesopotâmica e esta fenícia, Afrodite, para os padrões gregos, era considerada como uma bárbara. Tudo isto transparece, por exemplo, de modo muito claro, na tragédia Medeia, de Eurípedes, nas falas de Jasão, quando ele comunica à princesa da Cólquida que está se separando dela, uma “bárbara”, para se casar com a filha do rei Creonte.

CRATERA - CENA DE MEDEIA, DE EURÍPEDES
Quando duas pessoas se apaixonam, a deusa cria um campo de energia fantástico, intensificado. Ambas sentem-se mais bonitas, as impressões sensoriais se ampliam, a música se transforma em linguagem privilegiada, os odores ficam mais penetrantes, o tato passa a ser um dos sentidos mais importantes. Cultivar Afrodite é criar interesses pela arte, pela música, pela poesia, pela dança. É gostar do próprio corpo, cuidar dele, sem exageros, uma decoração corporal contida, harmoniosa. É por essa razão que Afrodite é a deusa da vida cosmética, palavra grega que vem de kosmos, esta significando ordem, o universo como ordem. Os pitagóricos foram os primeiros a usar esta palavra com este sentido porque o universo poderia ser reduzido a proporções matemáticas, devidamente ajustadas. Uma pessoa cosmética seria, pois, aquela que saberia encontrar o seu lugar de forma harmoniosa na ordem social, sempre uma tradução da ordem cósmica. Para isto, ainda segundo os pitagóricos, deveria ser usada a katharsis, a purificação da alma, palavra que tinha entre eles fortes analogias com a música , a base da virtude maior, a sophrosyne (autodomínio, moderação).
As mulheres que assumem o arquétipo de que tratamos pode enfrentar muitas dificuldades com outras mulheres, presas a outros arquétipos, especialmente as mulheres do tipo Hera. No geral, as mulheres Afrodite têm a capacidade de ver sempre a beleza e de se ligar criativamente a alguma coisa, a alguma atividade, mesmo na velhice. Crescem com grande vitalidade e graça. Na velhice, estão de bem com a vida, são sábias, não vivem se queixando. Interessam-se pelos outros, ligam-se ao mundo, interessadas sempre pelo que vem à frente. No geral, a mulher identificada com a deusa é mais extrovertida, sua atenção é sempre sedutora, ainda que muitas vezes possa ser mal interpretada.

ACROCORINTO

A negação de Afrodite está nos meios repressores que condenam a sexualidade e a sensualidade, que negam o corpo, que criam situações de culpa e de conflito, de ansiedade e depressão, diante do apelo da vida. Por isso, as mulheres Afrodite tendem a viver o presente. A cidade de Afrodite era Corinto, a “Opulenta”, uma cidade rica, alegre, de muitas festas. Nas alturas da cidade, na Acrocorinto, a quase oitocentos metros de altura, encontrava-se um famoso templo no qual viviam as hierodulas, as prostitutas sagradas, sacerdotisas da deusa. Foi nessa cidade que o apóstolo Paulo, na era cristã, deu vazão a toda a sua misoginia, escrevendo a Epístola aos Coríntios.

O conhecimento do próprio padrão arquetípico é sempre valioso para todos os seres humanos. Esse conhecimento nos ajuda a saber qual é a nossa natureza “divina”, Quanto às mulheres, o conhecimento e o culto do arquétipo Afrodite sempre as ajuda a se libertar da culpa por serem quem são. Ao mesmo, tempo as ajuda a se tornarem mais conscientes, fazendo-as cuidar de seus interesses, reconhecidos os seus limites e os dos outros.
Como doadora da graça social, Afrodite se alinha naturalmente com os que lutam a favor da vida, procurando combater não só aqueles que se aniquilam entre si, que promovem guerras estúpidas, como os que dizimam os recursos naturais de nossa mãe Terra. Neste sentido, a proposta maior da deusa está certamente no convite que ela nos faz, muitas vezes não muito bem compreendido, no sentido de que saibamos evitar que as tendências destrutivas que estão à solta no mundo acabem, inconscientemente, se voltando contra nós mesmos.
Não é preciso ser filósofo, psicólogo, médico, advogado ou sacerdote para perceber que o ser humano, ainda que dizendo amar a vida, vem atualmente se matando a si mesmo como nunca aconteceu antes. E o que é pior, pois, como constatamos, a maneira de morrer escolhida pelo próprio ser humano é hoje muito rápida, tão rápida que muitos que já morreram para a vida continuam sobrevivendo por muito, muito tempo, em dolorosos estágios de vida vegetativa, doentes ou não. Vemos isso diariamente diante dos nossos olhos, muitas vezes dentro de nossas casas. Os métodos que as pessoas escolhem para se matar são inúmeros e não devem interessar só a especialistas, já que o ser humano tem que ser considerado como uma totalidade.

THANATOS
Vida é conflito, sabemos, luta. Amor e ódio, produção e consumo, criação e destruição, anabolismo e catabolismo, uma guerra entre tendências opostas que se confunde com a própria dinâmica do universo. As tendências que lutam a favor da vida são representadas por Eros-Afrodite, as que se opõem à vida o são pelo deus da morte, Thanatos. O ser humano carrega dentro de si estas divindades. É certo que Thanatos sempre acabará por se impor, pois somos seres datados. Nossa vida é um hífen entre duas datas. Cabe-nos, na medida do possível, colaborar ao máximo com Eros-Afrodite, retardando da melhor maneira a ação de Thanatos.
Há, contudo, uma enorme quantidade de seres humanos, nas mais diversas latitudes e longitudes da Terra que desde muito cedo, nas várias camadas sociais, mais altas ou mais baixas, seres inclusive mal entrados na vida, por razões diversas, colaboram com as forças tanáticas. Esse instinto de autodestruição aparece sob diversas formas, muitas toleradas ou mesmo aceitas socialmente. Não falamos aqui do desejo consciente de morrer, mas do desejo inconsciente de morrer. Como formas crônicas inconscientes de autodestruição podemos apontar, por exemplo, muitas inclinações masoquistas de comportamento (submissão à punição) por causa de um sentimento de culpa, criado no mais das vezes desnecessariamente. Em muitas tendências religiosas ou espirituais encontramos também fortes tendências autodestrutivas, tanto no caso de ascetas, de jejuadores (casos de autoflagelação, de martírio etc) como no de pessoas que, temendo a vida, se refugiam em organizações religiosas, seitas etc. Há inclusive, noutras áreas, formas muito disfarçadas de autodestruição. Dentre as muitas, destacamos a curtição gastronômica (o périplo dos restaurantes; o caso de pessoas que se matam pela comida para compensar falta de amor ou de segurança), pelos esportes radicais, pela autoimolação por razões familiares (alguém que abre mão de tudo por problemas de família), pela droga e o álcool sociais, pela deterioração crescente da qualidade de vida pelo uso inadequado da tecnologia, pela simulação de doenças ou ferimentos etc. A automutilação estética é, sem dúvida, uma das formas mais insidiosas de autodestruição inconsciente. Nesta área, podemos exemplificar com as tendências anoréxicas ou com as operações cirúrgicas. Ou seja, embora não nos mutilemos a nós próprios, entregamo-nos a algum cirurgião para que ele o faça (caso de pessoas que não podem passar sem uma ou mais operações plásticas anuais). Ainda nesta área, principalmente no mundo feminino, podemos mencionar o desejo inconsciente que as pessoas têm se autodestruir quando aderem à moda das roupas, da maquiagem ou da decoração corporal sem perceber o quanto se destroem, ao invés de lutar pela conquista de uma individualidade. No fundo, seguir a moda (puro consumismo) não passa de um desejo de ser como todo mundo, rico ou pobre, isto é, não ser nada, ninguém.
Para finalizar, quando pensamos em Afrodite, nada melhor do que lembrar as máximas Carpe Diem, de Horácio (gozemos o momento favorável, aproveitemos com moderação tudo o que se apresente de positivo, mesmo que pouco e transitório) e Utere temporibus (aproveitemos o momento feliz), de Ovídio. Trazendo-as, em nome de Eros e de Afrodite, para o centro de nossas vidas, estaremos, sem dúvida, controlando melhor as forças tanáticas que um dia acabarão por se impor e vivendo melhor, pois, afinal, os poetas são sempre os nossos melhores conselheiros...