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segunda-feira, 18 de setembro de 2017

LIBRA (2)

                                                 
AFRODITE  DE  CNIDOS
Para contrabalançar as forças eróticas presentes no universo, os gregos criaram uma deusa, Afrodite, colocando sob sua tutela o prazer, o amor, a beleza, a sexualidade e a sensualidade das mulheres, levando-as a se envolver com funções criativas e procriativas. No mito, Afrodite nasceu no mar, em meio a espumas (aphros, em grego, espuma). Essa imagem de Afrodite, adulta, nua, lindíssima, nascida das águas, será representada por muitos artistas. A deusa, pelo seu nascimento, define que o princípio da vida afetiva e, consequentemente, da vida amorosa estará para sempre ligado ao elemento líquido. Ou seja, amor é umidade. Os secos, os quentes e os frios têm muita dificuldade com relação à vida afetiva, ao amor, que fala de reciprocidade, de permeações e de fusões. Afrodite passou por Chipre, a ilha do cobre, definindo-se a partir de então como “boa condutora de eletricidade”, isto é, constituindo a polaridade passiva, feminina, por oposição à polaridade masculina, ativa. Ou seja, o princípio da água atenuando o princípio do fogo, Afrodite e Eros. 




Deusa de sedutora beleza (enkrateia, sedução), Afrodite era honrada em inúmeros santuários em todo o mundo mediterrâneo e da Asia Menor. A deusa surge no mundo grego para colocar as relações afetivas numa perspectiva de reciprocidade. Ela passa a simbolizar as forças irrefreáveis da fecundidade, não com relação aos frutos, mas com relação ao desejo apaixonado compartilhado. 

A deusa é tanto o amor sob a forma física como o prazer dos sentidos cabendo-lhe o poder da transformação dos seres que nesses processos se envolvem. É neste sentido uma deusa alquímica, consumando relacionamentos, gerando formas novas de existência. Ela é também o impulso que vai além do sexual, apresentando um ímpeto tanto psicológico como espiritual que nos fala de comunicação e de comunhão. Qualquer pessoa que já tenha se apaixonado por alguém, por um lugar, por uma ideia, por um objeto artístico está lidando com os poderes da deusa. A consciência de Afrodite está presente também em todo trabalho criativo, mesmo aquele feito solitariamente. É a deusa das interações, podendo transformar uma simples conversa numa “obra de arte”. Com a deusa atuando em nós, também podemos nos tornar mais espontâneos, como numa improvisação musical. Onde quer que apareça a consciência de Afrodite, os parceiros irradiam bem-estar, energia intensificada, a conversa fica mais  espirituosa, estimulando-se os pensamentos e sentimentos. 

AFRODITE   CALIPÍGEA
A deusa tem vários nomes, apelidos, Calipígea, Trívia, Urânia, Pandêmia, Citereia, Cípris etc. Toda pessoa que se envolve num processo afetivo, de trocas, a deusa a transforma num ser especial, quase “divino”, como diziam os antigos gregos. Quando Afrodite se apossa da personalidade de uma mulher, ela se abre para o mundo, para os outros, socializando-se também. Ela aumenta o magnetismo pessoal. Quando por razões culturais e religiosas a mulher é rebaixada, satanizada, Afrodite se “ausenta”. O arquétipo pode pôr uma mulher (dependendo do meio) inclusive em divergência com os padrões de moralidade nele vigentes. Por isso, as mulheres “Afrodite” podem ser marginalizadas, consideradas como perigosas, quando não como raptoras do masculino, como acontece com as religiões patriarcais.

Afrodite era muito mal vista em Atenas, a cidade de Palas Athena, deusa virgem, das acrópoles. Nos meios populares da cidade,

Afrodite era muitas vezes chamada de “A Prostituta”. Por causa de sua personalidade, fortemente marcada por traços orientais, sobretudo de Ishtar e de Astarte, aquela mesopotâmica e esta fenícia, Afrodite, para os padrões gregos, era considerada como uma bárbara. Tudo isto transparece, por exemplo, de modo muito claro, na tragédia Medeia, de Eurípedes, nas falas de Jasão, quando ele, num ataque xenófobo, comunicou à princesa da Cólquida que estava se separando dela, uma “bárbara”, para se casar com a filha do rei Creonte.


Quando duas pessoas se apaixonam, a deusa cria um campo de energia fantástico, intensificado. Ambas sentem-se mais bonitas, as impressões sensoriais se ampliam, a música se transforma em
PITAGÓRICOS
linguagem privilegiada, os odores ficam mais penetrantes, o tato passa a ser um dos sentidos mais importantes. Cultivar Afrodite é criar interesses pela arte, pela música, pela poesia, pela dança. É gostar do próprio corpo, cuidar dele, sem exageros, uma decoração corporal contida, harmoniosa. É por essa razão que Afrodite é a deusa da vida cosmética, palavra grega que vem de kosmos, esta significando ordem, o universo como ordem. Os pitagóricos foram os primeiros a usar esta palavra com este sentido porque o universo poderia ser reduzido a proporções matemáticas, devidamente ajustadas. Uma pessoa cosmética seria, pois, aquela que saberia encontrar o seu lugar de forma harmoniosa na ordem cósmica, como os astros souberam fazer. Por extensão, encontrar uma ordem justa na sociedade, sempre um reflexo da ordem cósmica. Para isto, ainda segundo os pitagóricos, deveria ser usada a katharsis, a purificação da alma, palavra que tinha entre eles fortes analogias com a música , a base da virtude maior, a sophrosyne (autodomínio, moderação). 


As mulheres que assumem o arquétipo de que tratamos podem enfrentar muitas dificuldades com outras mulheres, presas a outros
HERA
arquétipos, especialmente as mulheres do tipo Hera. No geral, as mulheres Afrodite têm a capacidade de ver sempre a beleza e de se ligar criativamente a alguma coisa, a alguma atividade, mesmo na velhice. Crescem com grande vitalidade e graça. Na velhice, estão de bem com a vida, são sábias, não vivem se queixando nem são rabugentas. Interessam-se pelos outros, ligam-se ao mundo, interessadas sempre pelo que vem à frente. No geral, a mulher identificada com a deusa é mais extrovertida, sua atenção é sempre sedutora, ainda que muitas vezes possa ser mal interpretada. 



ACROCORINTO

A negação de Afrodite está nos meios repressores que condenam a sexualidade e a sensualidade, que negam o corpo, que criam situações de culpa e de conflito, de ansiedade e depressão, diante do apelo da vida. Por isso, as mulheres Afrodite tendem a viver o presente. A cidade de Afrodite era Corinto, a Opulenta, uma cidade
EPÍSTOLA   AOS   CORÍNTIOS
rica, alegre, de muitas festas. Nas alturas da cidade, na Acrocorinto, a quase oitocentos metros de altura, encontrava-se um famoso templo no qual viviam as hierodulas, as prostitutas sagradas, sacerdotisas da deusa. Foi nessa cidade que o apóstolo Paulo, na era cristã, deu vazão a toda a sua misoginia, escrevendo a Epístola aos Coríntios.


No período clássico da história grega, Corinto era considerada a terceira cidade, depois de Atenas e Esparta. Tinha uma formidável acrópole e uma situação geográfica privilegiada, abrindo-se simultaneamente para a Ásia e para a Europa ocidental, o que parecia justificar seu grande progresso material. Miticamente, histórias nos contam que Corinto foi fundada por Foroneu, filho do deus-rio Ínaco e da ninfa Mélia, e que suas muralhas teriam levantadas por Sísifo, o mais inescrupuloso e inteligente dos mortais. 




Quando abordamos os mitos gregos ou não de modo mais aprofundado,  sabendo ir de modo mais percuciente às suas fontes mais responsáveis e sérias, podemos entender, como tantas vezes já mencionado neste blog, o quanto eles nos permitem entrar no conhecimento do nosso próprio padrão arquetípico. Esse conhecimento nos ajuda a compreender qual é a nossa natureza divina. Quanto às mulheres, imprescindível o conhecimento do culto e dos rituais de Afrodite, o arquétipo que ela representa, que sempre as ajudará, certamente, a “viver” um pouco melhor, a se libertar, principalmente nas sociedades fortemente marcadas por valores patriarcais, da culpa por querem ser o que realmente são e não podem. Isto, no mínimo, as ajudará a se tornarem mais conscientes, fazendo-as cuidar de seus interesses, reconhecidos de modo mais claro os seus limites e os dos outros. 

AFRODITE
Como doadora da graça social, Afrodite se alinha naturalmente com os que lutam a favor da vida, procurando combater não só aqueles que se aniquilam entre si, que promovem guerras estúpidas sob justificativas religiosas (econômicas sempre, no fundo) como os que dizimam os recursos naturais de nossa mãe Terra. Neste sentido, a proposta maior da deusa está certamente no convite que ela nos faz, muitas vezes não muito bem compreendido, no sentido de que saibamos evitar que as tendências destrutivas que estão à solta no mundo acabem, inconscientemente, se voltando contra nós mesmos. Com isto saberemos inclusive evitar as idiotas propostas de políticos, economistas e empresários que, em escala mundial, nos propõem um crescimento contínuo de nossos índices econômicos. 

Não é preciso ser filósofo, psicólogo, médico, advogado ou sacerdote para perceber que o ser humano, ainda que dizendo amar a vida, vem atualmente se matando a si mesmo como nunca aconteceu antes. E o que é pior, pois, como constatamos, a maneira de morrer escolhida pelo próprio ser humano é hoje muito rápida, tão rápida que muitos que já morreram para a vida continuam sobrevivendo por muito, muito tempo, em dolorosos estágios de vida vegetativa, doentes ou não. Vemos isso diariamente diante dos nossos olhos, muitas vezes dentro de nossas casas. Os métodos que as pessoas escolhem para se matar são inúmeros e não devem interessar só a especialistas, já que o ser humano tem que ser considerado como uma totalidade. 


THANATOS   E   EROS  ( 1911 ,  GUSTAV   KLIMT )

Vida é conflito, sabemos, luta. Amor e ódio, produção e consumo, criação e destruição, anabolismo e catabolismo, uma guerra entre tendências opostas que se confunde com a própria dinâmica do universo. As tendências que lutam a favor da vida ou contra a vida não podem ser representadas só por Eros e por Thanatos, como defendeu Freud. É certo que o ser humano carrega dentro de si estas divindades. É certo que Thanatos sempre acabará por se impor, pois somos seres datados. Nossa vida é um hífen entre duas datas. Cabe-nos, na medida do possível, colaborar ao máximo para que as forças eróticas e tanáticas em operação no universo sejam atenuadas pelos valores que Afrodite representa. Isto nos ajudará não só a controlar melhor tanto as forças eróticas como as tanáticas soltas no universo, patrocinadas e incentivadas, como se sabe, pelo grande capital, criador do nefasto sistema de mercado, e pela indústria armamentista nas suas diversas expressões. 

Há, contudo, uma enorme quantidade de seres humanos, nas mais diversas latitudes e longitudes da Terra que desde muito cedo, nas várias camadas sociais, mais altas ou mais baixas, seres inclusive mal entrados na vida, que por razões diversas colaboram com as forças tanáticas. Esse instinto de autodestruição aparece sob diversas formas, muitas toleradas ou mesmo aceitas socialmente. Não falamos aqui do desejo consciente de morrer, mas do desejo inconsciente de morrer. Como formas crônicas inconscientes de autodestruição podemos apontar, por exemplo, muitas inclinações masoquistas de comportamento (submissão à punição) por causa de um sentimento de culpa, criado no mais das vezes desnecessariamente.


CASAMENTO  CAMPONÊS ( PIETER  BRUEGEL, O VELHO, 1525 - 1569 )

Em muitas das chamadas tendências religiosas ou espirituais encontramos também fortes tendências autodestrutivas, tanto no caso de ascetas, de jejuadores (casos de autoflagelação, de martírio etc) como no de pessoas que, temendo a vida, se refugiam em organizações religiosas, seitas etc. Há inclusive, noutras áreas, formas muito disfarçadas de autodestruição. Dentre as muitas, destacamos a curtição gastronômica (a peregrinação pelos restaurantes; o caso de pessoas que se matam pela comida para compensar falta de amor ou de segurança), pelos esportes radicais, pela autoimolação por razões familiares (alguém que abre mão de tudo por problemas de família), pela droga e pelo álcool socialmente consumidos, pela deterioração crescente da qualidade de vida pelo uso inadequado da tecnologia, pela simulação de doenças ou ferimentos etc. 

A automutilação estética é, sem dúvida, uma das formas mais insidiosas de autodestruição inconsciente. Nesta área, podemos exemplificar com as tendências anoréxicas ou com as operações cirúrgicas. Ou seja, embora não nos mutilemos a nós próprios, entregamo-nos a algum cirurgião para que ele o faça (caso de pessoas que não podem passar sem uma ou mais operações plásticas anuais). Ainda nesta área, principalmente no mundo feminino, podemos mencionar o desejo inconsciente que as pessoas têm de se autodestruir quando aderem à moda das roupas, da maquiagem ou da decoração corporal sem perceber o quanto se destroem, ao invés de lutar pela conquista de uma individualidade. No fundo, seguir a moda (puro consumismo) não passa de um desejo de ser como todo mundo, rico ou pobre, isto é, um desejo de não ser nada, ninguém. 

HORÁCIO
Para finalizar, quando pensamos em Afrodite, nada melhor do que lembrar as máximas Carpe Diem, de Horácio (gozemos o momento favorável, aproveitemos com moderação tudo o que se apresente de positivo, mesmo que pouco e transitório) e Utere temporibus (aproveitemos o momento feliz), de Ovídio. Trazendo estas máximas, em nome de Eros
OVÍDIO
e de Afrodite, para o centro de nossas vidas, estaremos, sem dúvida, controlando melhor as forças tanáticas que um dia acabarão por se impor . Viveremos certamente um pouco melhor, pois, afinal, os poetas (os bons, é claro) serão sempre os nossos melhores conselheiros. 





terça-feira, 17 de julho de 2012

AFRODITE - CARMEM


AFRODITE


DALILA E SANSÃO (1609, RUBENS)

A arte, a literatura mais de perto, apresenta inúmeros exemplos da feminilidade perigosa, temível, noturna, como a encontramos em muitas mitologias. A Bíblia, por exemplo, está cheia de mulheres perigosas para os homens, Judith, Esther, Dalila e muitas outras. Se ficarmos na  mitologia greco-romana, de onde extrairemos os melhores exemplos para a cultura ocidental, podemos, por exemplo, falar de Circe e de Calipso, que tantos problemas causaram ao herói Ulisses, como está na Odisseia, e da romana Lara, também chamada Tácita ou Muta, de perigosos encantamentos.



ISHTAR

Dentre as várias deusas gregas que nos fornecem modelos de comportamento (arquétipos) femininos que a mulher pode incorporar, positiva ou negativamente, Afrodite é uma das mais importantes. Deusa de origem oriental, que tem como ancestrais Ishtar (Mesopotâmia), Astarte (Fenícia) e outras, Afrodite incorpora em sua personalidade traços notáveis dessas duas deusas. Ambas se ligavam à vegetação e ao ciclo anual das estações enquanto símbolo da morte e do renascimento. Outro componente da personalidade da Afrodite grega, oriundo de antigas deusas orientais (Grandes-Mães), tem relação com antigos cultos orgiásticos, dos quais fazia parte a chamada prostituição sagrada (Hierodoulia). No mundo grego, Afrodite é incontestavelmente a deusa do amor, da beleza, do prazer, da sensualidade, da atração simpática, da sedução, tendo afinidade com a alegria, a graça, as festas, a convivência harmoniosa e educada, com os risos, as flores e os perfumes.


PALAS ATHENA
O modelo oriental de Afrodite passou certamente por um período de aclimatação no mundo Egeu, em Chipre, onde tinha nome de Aphro-deti, isso bem antes da chegada dos aqueus à futura Grécia continental. Afrodite não encontrou facilmente lugar no panteão grego, entre os doze “grandes”, os olímpicos. A deusa Palas Athena, divindade tutelar de Atenas, votava-lhe, por exemplo, grande antipatia. Afrodite era chamada pelos atenienses de “a oriental” ou “a prostituta”, nenhum culto se realizando na cidade em sua homenagem.

Os gregos distinguiam, dentre os vários comportamentos de Afrodite, dois, em especial. Um deles era o da chamada Afrodite “popular” (Pandemia), que tipificava a mulher comum, a mulher do povo, que assegurava a reprodução e a continuidade da raça, e outro, a “celeste” (Urania), a dos amores elevados, puros, onde expressões físicas não entravam, que procurava fazer com que a alma reatasse seus contactos com o divino.


AFRODITE "ORIENTAL"

Entre estes dois padrões havia muitos outros, caracterizados pelas diversas experiências da vida da mulher nos quais o que de mais importante se notava eram os sentimentos e os contactos humanos sob o ponto de vista amoroso. Lembre-se que Afrodite foi criada para colocar as relações humanas sob a perspectiva da reciprocidade. Embora suave, cheia de ajustes, havia um certo ardor nesta dinâmica, pois para a deusa a vida era a arte dos encontros, o que levava muitos a considerá-la como uma oportunista. As aspirações profissionais que o modelo Palas Athena inspirava eram certamente muito tediosas para a mulher-Afrodite. A deusa também não estava interessada em uniões formais ou na maternidade, como Hera ou Deméter. Poderia, quando muito, ser até uma mãe afetuosa, mas nunca convencional, já que os relacionamentos ocupavam um lugar mais importante em sua vida, sejam eles amorosos, amigáveis, sociais, platônicos, físicos, extraconjugais ou simplesmente de tendência espiritualizante.


ZEUS E HERA
ÁRTEMIS

 Nos tipos superiores, a mulher-Afrodite pode ser tanto sensual como sensível, civilizada, culta, não demonstrando nenhum interesse, por exemplo, em atividades esportivo-sociais, como acampar em montanhas ou participar de pescarias em alto-mar, coisas da mulher Ártemis. A Afrodite de que estamos falando, a do tipo superior, costuma se sentir bem com o seu corpo e a sua sexualidade é no geral descomplicada. Precisa, sim, de uma vida social ativa, onde o amor ou mesmo a sua simulação ocupe um lugar importante.


AFRODITE KALLYPIGIA
Nos tipos inferiores, encontramos, por exemplo, as mulheres-Afrodite que querem ser rainhas de beleza, que podem fazer do seu corpo um meio de acesso a níveis socialmente endinheirados. Um destes modelos é a chamada Afrodite kallipygia (de belas nádegas), que facilmente se transforma em símbolo sexual. A Afrodite Pandemia, a partir do final do séc. XIX, trocou a sua função de reprodutora, de “deusa do lar”, por papéis mais públicos. Com o cinema, a TV, as novelas, os espetáculos musicais e da moda, além de uma intensa exposição da vida íntima das pessoas por psicólogos, religiosos, sexólogos, médicos e repórteres policiais em programas sensacionalistas, Afrodite e suas histórias passaram a fazer parte do nosso cotidiano.


 Qualquer que seja o ângulo pelo qual a consideremos, Afrodite sempre representou algo de fatal para o patriarcado, para o machismo, vista ora como sedutora perigosa, despudorada, ora como bruxa, feiticeira, ou ainda como destruidora de lares, vampe, mulher que seduz os homens para arruiná-los, depois de tê-los explorado sexual e/ou economicamente em muitos casos.


Para falar da Afrodite Androphona dos gregos, modelo da mulher destruidora de homens, é preciso ir um pouco mais ao fundo do seu arquétipo. De início, saliente-se que a Afrodite grega, embora com traços mais suavizados, conservava muito da personalidade da deusa Ishtar (personificação do planeta Vênus no mundo assiro-babilônico), deusa do amor, mas com um forte temperamento guerreiro também. Deusa da voluptuosidade, mostrava-se Ishtar muitas vezes irascível e violenta quando sua vontade era contrariada. Sua cidade, Erech, era famosa como centro da prostituição sagrada, como Corinto, na Grécia, o era de Afrodite. São conhecidos os inúmeros casos amorosos de Ishtar, sendo o mais famoso aquele que manteve com Tammuz, o deus da vegetação. Este caso amoroso foi transposto para a mitologia grega, sendo seus os seus personagens Afrodite e Adônis.

 
AFRODITE E ADÔNIS

 Nas antigas sociedades patriarcais, a descendência e os bens (propriedades e dinheiro) eram, como ainda hoje o são, transmitidos patrilinearmente. Dessa via dependia também a continuidade religiosa, permitindo esta que os pais se imortalizassem através de seus filhos. Neste sistema, a fidelidade da esposa era muito importante, essencial diga-se, como garantia dessa transmissão, sob todos os seus aspectos.

A liberdade que Afrodite propunha, como arquétipo, sempre foi uma séria ameaça para a estrutura das sociedades patriarcais, nas quais instituições como o concubinato e a prostituição tinham (hipocritamente) um lugar, sendo até muito toleradas e admitidas. Raríssimo, porém, que o filho de um patriarca com uma concubina ou uma prostituta viesse a ter reconhecidos quaisquer direitos diante dos que eram fixados para o de um casamento legal.


Desde que as religiões patriarcais se impuseram, os patriarcas, ainda que alguns se sentindo culpados, pecadores etc., sempre buscaram a mulher-Afrodite fora de suas uniões oficiais. Um efeito colateral dessa atitude é a espantosa ignorância na qual foram (são) mantidas as esposas pelos maridos, a fim de que esse sistema de privilégios seja mantido.                                                       Decorre daí o medo
de que as religiões patriarcais têm da mulher-Afrodite, razão das inúmeras restrições que limitam a liberdade feminina em muitas sociedades, ainda hoje, quer sob o ponto de vista religioso, político ou civil. Entre os semitas, judeus ou islâmicos, a nudez masculina ou feminina é um tabu; nada de corpos expostos, tudo muito diferente daquele saudável amor ao corpo masculino e feminino e à nudez que gregos e romanos sempre demonstraram com a sua maravilhosa arte. O ocidente que se diz cristão caminhou no sentido contrário. Vem expondo mais abertamente os corpos, o da mulher principalmente, erotizando-os, não para promovê-la, mas, sim, para transformá-la em objeto de consumo, um meio, como o anterior, de mantê-la prisioneira do sistema.


    Não há nenhuma referência no cristianismo sobre essa questão, a de Cristo ter se insurgido contra o
SANTO AGOSTINHO
sexo ou ter desprezado o corpo das mulheres. Ao contrário até, pois muitas o seguiam de perto, mencionando-se ainda o fato de, depois de sua ressurreição, ter ele procurado Maria Madalena, de quem era muito próximo. O problema da rejeição da mulher no cristianismo começou com São Paulo, que tinha uma verdadeira obsessão no sentido de impedir o que ele chamava de fornicação (prática sexual, especialmente com prostitutas, ou ato sexual com parceiros diversos; “fornicatio, onis”, ação de abobadar, formar um arco, movimento do corpo fazendo sexo). Para São Paulo, o melhor que o homem tinha a fazer era procurar o celibato. Se a carne se mostrasse fraca, seria preferível, então, o casamento, sempre um mal, mas um mal menor diante da fornicação, pois era melhor, como dizia, “casar-se do que arder”. No cristianismo, foi por causa do discurso de dois inimigos das mulheres, São Paulo e Santo Agostinho, dois misóginos, que mulher, sexo, sujeira, banho e pecado sempre apareceram associados desde então.


Expulsa das religiões patriarcais, Afrodite assumiu um dos seus grandes papéis, o da mulher fatal, destruidora de homens. Sob o ponto de vista filosófico ou psicológico, o esquema é conhecido. Afrodite é o arquétipo (arkhê, original, antigo, + typos, exemplar, modelo) dos padrões femininos por excelência, isto é, modelo ou padrão passível de ser reproduzido em simulacros ou objetos semelhantes; é paradigma, princípio explicativo de todos os demais tipos femininos, que vêm sendo atualizados simbolicamente ao longo da história da humanidade, segundo a cultura e a época em que eles se manifestam ou são criados.


Embora deusa do amor, são notáveis as raivas de Afrodite, as suas vinganças, as maldições que envia, podendo ela fazer do amor uma arma terrível, venenosa, destrutiva, já que o ódio e o amor são as duas faces de uma mesma moeda. Pelo fato da deusa Eos, a Aurora, ter se enamorado de seu antigo amante, Ares, deus da guerra, Afrodite fez com que ela se apaixonasse
FEDRA E HIPÓLITO
pelo gigante Orion, um tipo violento e complicado. Por ter renegado o seu culto e adotado o da virgem Ártemis, deusa lunar, o jovem Hipólito foi punido, tornando-se objeto de uma paixão incontrolável de Fedra, sua madrasta, mulher de Teseu. Este, como se sabe, expulsou o filho do palácio e pediu que seu pai divino, Poseidon, o punisse. Um monstro marinho espantou os cavalos do carro do jovem príncipe, que se despedaçou ao cair sobre os penhascos da estrada Atenas-cabo Sounion, à beira-mar. Por não lhe terem condignamente prestado culto, as mulheres da ilha de Lemnos foram punidas. Fez com que o corpo delas exalasse um odor tão insuportável que todos os homens da ilha as abandonaram. Esta maldição só foi revogada pela deusa a pedido de seu antigo marido, Hefesto, quando os argonautas, em trânsito para a Cólquida, ali aportaram.


HELENA E PÁRIS

São muitas as histórias dos grandes amores, das proteções, dos malefícios e das vinganças de Afrodite. A disputa pelo título de “a mais bela”, quando da festa de casamento de Peleu e de Tétis, dá bem uma ideia do poder da deusa e da catástrofe que ela acabou provocando ao fazer com que a belíssima Helena, rainha de Esparta, mulher do rei Menelau, caísse nos braços de Páris, príncipe troiano.

O papel de mulheres que destroem os humanos e que perturbam a vida dos imortais pode ser vivido por mortais e deusas. Dentre estas últimas destacamos, exemplificando, as já citadas divindades Circe
CALIPSO E ULISSES
e Calipso, a elas juntando Eos, a Aurora, uma consumada raptora de amantes; algumas divindades que vivem no Jardim de Perséfone fazem parte dessa galeria, como a terrível Até, odiosa aos próprios deuses, que tanto perturba o espírito dos homens ao entregá-los à desgraça; outra é Phtonos (olhar com maus olhos), a Inveja que os romanos chamavam de Invidia, um monstro que o mais brilhante mérito não pode sufocar. Quanto às mortais que incorporam o arquétipo da Afrodite Androphona (Andros, homem, e phonos, assassinato), a mitologia grega tem um grande rol dessas figuras, que, como símbolos, atualizam o referido padrão de comportamento. Clitemnestra, as Danaides, Electra, Dejanira, Medeia e Fedra são alguns exemplos.
 
MEDEIA E FILHOS

Artistas, poetas, escritores, músicos, por seu lado, criaram e continuaram criando, ao longo dos séculos, como se disse, personagens que simbolicamente atualizaram o arquétipo, cada cultura fixando os seus modelos. No século XIX, apareceu na literatura uma mulher meio anjo, meio demônio, que, como personagem, é uma das mais bem acabadas atualizações do arquétipo da Afrodite Androphona, que estudamos.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        Prosper Mérimée, 1803-1879, escritor francês, em Paris, educado num meio culto de tradição voltairiana, formou-se em Direito.                                                                                              

Desde cedo, porém, decidiu-se pela literatura, relacionando-se inclusive com Stendhal, um dos maiores nomes das letras francesas de então. Muito ligado a temas espanhóis, Merimée publicou, em 1845, “Carmen”, personagem delineado segundo os atributos da mulher fatal.   Carmen era, como então se dizia, de costumes levianos, levava uma vida boêmia; seduziu e aniquilou um homem honesto, trabalhador e respeitador dos valores tradicionais da sociedade; apaixonando-se por ela, esse homem, Don José, cometeu um crime e destruiu a sua vida. Carmen, por seu lado, acabou tendo que assumir o papel de bode expiatório (outro arquétipo) e pagou com sua vida o que causou com o seu comportamento, sempre perigoso para o mundo masculino. Foi sacrificada em nome da moral, da decência e dos bons costumes. O cenário em que Merimée colocou a sua Carmen “pedia” esse fim.

Merimée construiu Carmen como mulher fatal usando componentes físicos que podemos chamar de “noturnos”. Por isso, para começar, ela era uma cigana, de lindos cabelos negros (tinham reflexos azuis como as asas de um corvo); seu olhar era forte como o de um lobo, sua pele, acobreada. Os valores de Carmem eram noturnos, totalmente avessos à luz. O negro, como sabemos, é símbolo do caos, do que não é, do erro, da desorientação, do descaminho. À noite corremos o risco de nos perder, pois deixamos de ver, o que sugere perdição, ignorância, inconsciência. Entrar na noite é entrar na indeterminação.   

O lobo, por seu vez,  sugere vida instintiva. É um animal caçador, predador, que gosta de atacar antes que o Sol nasça. Seus hábitos são, sobretudo, noturnos. Tem a fama de devorador, sendo usado para simbolizar, negativamente, as pressões animais que no ser humano se impõem à sua racionalidade. Carmem era, nesse sentido, uma lupina. Na mitologia dos escandinavo-germânicos há um famoso monstro, o lobo gigante Fenris, que na batalha final pela posse do universo (Ragnarok) entre deuses e monstros atacará Odin, devorando-o.

A referência de Merimée ao “olhar de lobo” de Carmem põe em evidência não só a sua ferocidade (o lobo é um animal feroz), a sua força incontrolada, mas também nos fala de tentação, de sedução, de falta de escrúpulos. O lobo sempre foi visto como a imagem de uma libido descontrolada, traduzida por uma grande avidez, de tendências egoístas, antissociais, violentas, virtualmente destrutivas.

Como o urso e a serpente, o lobo simboliza igualmente a sombra, aspecto inconsciente da personalidade humana cuja manifestação pode ser perigosa diante das energias despertadas, fazendo a consciência submergir. Carmem é, nesse sentido, a antítese da luz, atributo divino, coeterna à escuridão e dela saída. Não é Carmem, pois, um ente solar, símbolo do espírito, do conhecimento direto e inspirado, por oposição ao conhecimento lunar, cuja luz é reflexo dos raios do Sol.

Desde o início do texto de Merimée, ficamos sabendo que Carmem vem de um mundo proibido e ao mesmo desejado pelos homens. Sua vida liga-se à água, a um rio, lugar onde as mulheres entregavam-se aos prazeres do banho. A água, como sabemos, é um dos grandes temas da “solutio” alquímica, que, basicamente, transforma o sólido em líquido. O sólido, nas terapias do psiquismo, nos fala dos aspectos fixos e estáticos de uma personalidade que não admite mudanças. Estabelecidos ao longo de muitos anos, esses aspectos se nos apresentam como justos e corretos, mas podem ser destruídos pela operação alquímica a que estamos nos referindo.

A solutio é de Afrodite, deusa que nasceu no elemento líquido. Os poderes dessa operação têm como agentes, no mito, como se sabe, sereias e ninfas aquáticas, que atraem os homens, levando-os à morte por afogamento. O Antigo Testamento nos oferece um exemplo clássico de uma solutio fatal. O rei David era um homem íntegro, culto, sábio. Um dia, sem querer, do alto de uma janela do seu palácio viu uma mulher lindíssima que se banhava. Apaixonou-se por ela. Ela se chamava Betsabá e era casada com Urias, um soldado hitita. David pediu aos seus chefes militares que o enviassem para lutar na linha de frente do exército judaico para que fosse morto em combate. O profeta Natan censurou asperamente o rei David por esse procedimento. David se uniu a Betsabá e com ela teve um filho, que se tornaria mais tarde o famoso rei Salomão.

BETSABÁ  ( REMBRANDT )

 Exemplos como o de David são inúmeros no mito e nas artes, na literatura especialmente. Os aspectos fixos da personalidade de David literalmente liquefizeram-se, foram destruídos. Imagens de afogamento, de descida à profundeza das águas, costumam aparecer quando um acontecimento dessa natureza ocorre na vida de alguém. O banho, a imersão na água, as chuvas que inundam e alagam são imagens da solutio alquímica, que podem também aparecer em sonhos. O batismo, por exemplo, é um ritual que participa do tema da solutio lembrando morte e renascimento. Quando a solutio simplesmente acontece, como a de David, ela pode ser perigosa porque, em muitos casos, é experimentada com grande sofrimento, pois costuma provocar o desmoronamento do ego, que se acreditava inabalável.

A beleza de Carmem fascina e intriga. Ela vive num ambiente noturno, de práticas ilícitas, de contrabando, de roubos. Usa seus encantos para isso, passa por feiticeira, pondo em perigo todos os homens com os quais se relaciona. É Carmem quem vai decidir o destino de D.José. Ela vive agitada, sua vida é escandalosa; ela é instintiva, provocativa, agressiva. Seu lado animal é ofensivo, mas tremendamente sedutor. Suas cores são o vermelho e o negro.

CARMEM

Na extensa galeria das mulheres destruidoras de homens, Carmem é um dos mais bem acabados símbolos da Afrodite Androphona. Ela ocupa, justificadamente, sem dúvida, uma posição de destaque ao lado das maiores vampes de todos os tempos. Como estereótipo da mulher sedutora, perversa e cruel, sádica, a vampe, desde a antiguidade, sempre foi a sombra da mulher virtuosa. A vampe é imoral, sua sexualidade é escura e poderosa. Seu poder provém de sua habilidade de liberar nos homens suas latentes
energias sexuais, contidas por razões religiosas e culturais. Ligava-se a eles e solapava a sua vitalidade. Os modelos modernos são descritos como mulheres de unhas escuras (esmalte cor de sangue), jóias e
THEDA BARA
adereços que lembram animais satanizados (serpentes, escorpiões, aranhas, sapos etc.), agentes das forças malignas; essas mulheres já no séc. XIX fumavam em público (algo impensável à época) com uma indefectível piteira (símbolo fálico); seus modos sugeriam uma origem da Europa central ou do Oriente Próximo. Quem definiu o tipo vampe moderna no início do cinema (anos 1920) foi uma judia de Cincinatti, Theodosia Goodman, que assumiu na tela o nome de Theda Bara, um anagrama de Arab Death.

Mas, voltando à nossa Carmem, o que temos em Merimée é a queda de D.José, trágica, vista como uma espécie de possessão demoníaca. Carmem o faz vivenciar sentimentos como a paixão, o ciúme e o ódio. Vitimado por ela, que encarna o erro e o pecado, D.José se torna violento, cai moralmente, incapaz de refletir, embora tenha ele chegado a acreditar na “conversão” de Carmen, de modo a torná-la uma mulher boa e sensata.

O romance de Merimée fixa D.José como o representante da ordem social vigente, do sistema; é um militar, um “quase” padre, pois chegou a cursar o seminário. Ele faz parte de um mundo que cultua as belas palavras, honra, respeito, hierarquia. No lado oposto, Carmem, que é boêmia, marginal sob o ponto de vista social, transgressora contumaz, não conhece outra lei senão a da sua vontade.

MICAELA
Para Carmem, música e erotismo são a mesma coisa. Seu corpo vibra de sensualidade e ela tem domínio completo sobre ele. Ela sabe, pelo poder da vidência, que a morte a espera, mas isso não a incomoda. Irá até o fim. Carmem é dionisíaca, uma grande mênade, sem dúvida. Na ópera de Bizet, Micaela, como personagem, é a antítese de Carmem. Veste-se de azul, nada tem de excitante. Não tem o riso ofensivo da cigana. D. José louva a pureza e a candura de Micaela, mulher ideal, virgem, madona.

A novela de Merimée apareceu em 1845. É um texto sobre o amor, a violência e a morte. Em Sevilha, encontram-se Carmem e D.José. Vitimado pela paixão que sente por ela, ele, um homem da lei, se torna contrabandista e assassino. No momento em que julga possuir a mulher amada, ela, que não o ama, prefere morrer livre a segui-lo. Ele então, desafiado por ela, a apunhá-la.
                                                     
CARMEM E D. JOSÉ


Carmem inspirou óperas e muitos filmes. George Bizet, em 1875, transformou a história em ópera. Em 1918, no cinema, Charles Chaplin e Ernest Lubitsch nos deram as suas versões sobre a personagem; em 1954, de Otto Preminger, tivemos Carmen Jones; em 1983, A Tragédia de Carmen, no teatro (1981), é de Peter Brook; em 1983, Carlos Saura nos apresentou a sua Carmen; Jean-Luc Godard (1983) e Francesco Rossi (1984) fizeram as suas transposições cinematográficas. Na ópera, de 1977, aparece Carmen, dirigida por Claudio Abbado, com Teresa Berganza e Plácido Domingo.



domingo, 11 de março de 2012

ORFEU OU O FRACASSO DE UM PROFETA


Filho da mais importante das Musas, Calíope (fig.dir.), a de bela voz, e do deus-rio Eagro, Orfeu aparece na mitologia grega ligado ao canto, à música, como a principal figura de uma família mítica de inventores de gêneros musicais e de instrumentistas excepcionais. Pelo lado materno, era neto de Mnemósina (fig.esq.), a deusa da memória, e de Zeus, que com ela teve as nove irmãs, as Musas, nome que significa tanto instruir como fixar. As Musas nasceram para celebrar condignamente a vitória dos olímpicos sobre os titãs. Pelo lado paterno, Orfeu era neto do deus Oceano e de Tétis (fig.dir.), ambos da família dos titãs. O primeiro era o grande rio-serpente que circundava o globo terrestre. A segunda, sua irmã, personificava a fecundidade feminina do mar.

MUSAS

Servidoras dos artistas, participando às vezes do séquito de Apolo, vivendo no monte Helicon, junto da fonte Hipocrene, cujas águas favoreciam a inspiração poética, as Musas eram nove: Calíope presidia a Poesia Épica, Clio a História, Érato a Lírica Coral, Euterpe a Música, Melpômene a Tragédia, Polímnia a Retórica, Talia a Comédia, Terpsícore a Dança e Urânia a Astronomia.

Pela importância que os gregos davam à poesia épica, Calíope era considerada como a mais importante das Musas. Segundo o maior número de versões, Calíope era mãe de Orfeu, de Iálemo, de Himeneu e de Lino, os três últimos nascidos de sua união com Apolo. Algumas variantes a consideram também como a mãe das Sereias, as cruéis cantoras. Da sua biografia consta também que arbitrou, juntamente com Zeus, a disputa que Perséfone e Afrodite travaram pela posse belíssimo Adonis (fig.esq.), deus da vegetação.

Pelo lado paterno, Orfeu era, como está acima, filho de um deus-rio. Os rios, na Grécia antiga e em muitas outras tradições, lembremos, pela sua correnteza são uma imagem do fluir universal e, como tal, da impermanência de todas as coisas, da sua incessante mudança. Num sentido positivo, os rios simbolizam a fertilidade (a irrigação das terras) e a renovação (o fluir das águas). Negativamente, porém, podem representar a morte (inundação, afogamento, absorção).


Os gregos veneravam os rios como filhos do deus Oceano e pais das ninfas potâmidas. Em tempos muitos remotos eram oferecidos a eles sacrifícios de animais (touros e cavalos, sobretudo). Venerados, respeitados e temidos, os rios só podiam ser atravessados por aqueles que previamente se tivessem purificado. Hesíodo dizia que quem atravessasse um rio sem esse cuidado atrairia sobre si a cólera divina. Etimologicamente, o nome Eagro é uma combinação de duas palavras: ovelha (ois) e perseguir (agreuein), ou seja, o que oferece perigo às ovelhas, o que ameaça o rebanho.

Iálemo (fig.dir.), etimologicamente lamento fúnebre, era irmão de Orfeu por parte de mãe apenas, sendo o pai, como se disse, o deus Apolo, na condição de deus da harmonia. O canto fúnebre, chamado threno pelos gregos, entoado sobretudo nas exéquias daqueles que morriam jovens era uma criação de Iálemo. Sua finalidade era a de orientar a alma (psikhe) na sua catábase para o Hades. Era uma melopeia acompanhada das lágrimas dos que o contavam, tendo um tríplice objetivo: consolar os vivos, celebrar as virtudes do morto e garantir que ele seria eternamente lembrado enquanto um parente próximo seu existisse. Iálemo foi o inventor desse gênero poético e a primeira peça que compôs foi dedicada a Lino, seu desditoso irmão.

Lino é nome que lembra etimologicamente canção triste e melancólica, interjeição dolorosa pela morte de alguém. Nos mitos beócios (interior da Grécia, região de camponeses), Lino passa por ter sido o inventor do ritmo e da melodia, além de ter fixado o alfabeto fenício e de ter dado a cada letra o seu nome. No período clássico, foram atribuídos a ele tratados filosóficos, ocultistas e místicos. A versão mais aceita sobre a sua morte é a de que Hércules, num assomo de raiva, quando por ele advertido numa aula de música, o teria assassinado.

HIMENEU

Quanto a Himeneu, seu nome parece provir de uma aglutinação de palavras gregas que significam película, membrana, união, laço e grito. Ou seja, o rompimento de uma membrana no dia do casamento e os gritos para a invocação do deus. Neste sentido é a divindade do cortejo nupcial e, como tal, a personificação da canção entoada nessa cerimônia.

Numa outra versão, a história de Himeneu é fruto de um processo de evemerização (fato histórico que se transforma em mito), como a seguir se conta. De feições muito delicadas, Himeneu às vezes tomado por uma bela jovem, muito feminino, teria sido um pobre adolescente que se apaixonou por uma jovem eupátrida. Não conseguindo torná-la sua esposa, seguia-a para onde quer que ela fosse, como sua sombra. Para ficar perto dela, certa vez, adotou um disfarce feminino, juntando-se a um grupo de nobres donzelas que saíram de Atenas em direção de Eleusis para participar dos Mistérios que lá se realizavam. Atacados por um bando de malfeitores, foram todos raptados, inclusive Himeneu. A finalidade do rapto era a de vender as jovens como escravas. No meio do caminho, porém, numa praia, todos cansados, raptores e raptadas dormiram. Com muita coragem, então, Himeneu disso se aproveitou para matar todos os bandidos. Ao voltar para Atenas com as jovens, conseguiu se unir àquela que amava.

AFRODITE


Por causa deste feito, que exigiu uma longa travessia de barco para o devido retorno a Atenas, Himeneu passou depois a ser conhecido também pelo nome de Thalassios, sendo aos poucos divinizado como o protetor dos direitos do casamento. Nesta condição, foi levado a se tornar companheiro de Eros e de Afrodite, passando a ser honrado especialmente no monte Helikon, onde viviam as Musas, na Beócia. Há uma versão do mito que nos conta que ele perdeu a sua voz e mesmo a sua vida quando participou do casamento de Dioniso com Ariadne.

Orfeu, nome que lembra privação, falta, carência, orfandade, conforme seu mito nos conta, teria nascido na Trácia. Além de poeta, músico e cantor, era considerado como o inventor da cítara e da lira, instrumentos que têm relação com a harmonia cósmica através dos números sete, número da ordem e da organização do espaço, e do número nove, que, no Orfismo, define os aspectos simbólicos do universo, divididos em três tríades: 1) A Noite, o Céu e o Tempo; 2) O Éter, a Luz e os Astros; 3) O Sol, a Lua e a Natureza.

De voz excepcional, Orfeu a todos e a tudo encantava, os humanos, os seres do mundo vegetal e animal, as rochas, inclusive os deuses. As árvores se inclinavam para ouvi-lo, as bestas selvagens se acalmavam, os humanos se enterneciam, os deuses o admiravam, mesmo as rochas eram sensíveis ao seu canto.

CIBELE

Educador dos belicosos trácios, percorreu todo o mundo antigo, iniciando-se nos mistérios das mais antigas tradições, de Ísis (fig.dir.), de Cibele, dos Cabiros, da Samotrácia e de Eleusis. Da sua história, consta que participou da expedição dos argonautas com o objetivo de ajudar os heróis que nela se engajaram, dando-lhes não só o ritmo dos remos como encobrindo com a sua maravilhosa música o canto das suas sedutoras primas (filhas de Melpômene), as Sereias, que levavam quem as ouvisse à perdição.


Ao voltar da expedição dos argonautas, Orfeu divulgou na Grécia a ideia de que os crimes e as faltas que os homens cometessem poderiam ser expiados. Para isso, os humanos deveriam participar dos mistérios por ele criados, sob o nome de Orfismo, sendo prometida inclusive a imortalidade a quem nele se iniciasse. Foi nessa oportunidade que se uniu à dríada Eurídice (a de grande justiça), a quem considerava como a sua alma.

Himeneu foi convocado para abençoar com a sua presença a união de Orfeu com Eurídice. Não levou contudo bons augúrios, pois a tocha que usava para consagrar as uniões que presidia fumegou, fazendo com que todos os presentes à cerimônia lacrimejassem.

EURÍDICE ATACADA POR ARISTEU

Quem nos conta esta história é Virgílio, poeta latino do séc. I aC, em As Geórgicas. Ao tentar escapar da perseguição do deus apicultor Aristeu, que a queria violentar, Eurídice foi picada por uma serpente e morreu. Sua alma desceu então ao Hades, “cobrindo-se de trevas”. Inconformado com a sua perda, Orfeu se dispôs a trazê-la de volta. Conseguindo penetrar no reino infernal através de uma gruta situada ao lado do cabo Tenaro, ele se apresentou a Plutão e a Perséfone, encantando-os com a sua música.


Assim cantou Orfeu, segundo o poeta: “Ó divindades do mundo inferior, para o qual todos nós que vivemos teremos que vir, ouvi minhas palavras, que são verdadeiras. Não venho aqui para espionar os segredos do Tártaro, nem para tentar experimentar a minha força contra Cérbero, o cão tricéfalo que guarda a entrada. Venho à procura de minha esposa, a cuja mocidade o dente de uma venenosa víbora pôs fim prematuro. O Amor (Eros) aqui me trouxe, Eros um deus todo-poderoso entre nós, que mora na Terra e, se as velhas tradições dizem a verdade, também mora aqui. Imploro-vos: uni de novo os fios da vida de Eurídice. Nós todos somos destinados a vós, por essas abóbadas cheias de terror, por estes reinos de silêncio, e, mais cedo ou mais tarde, passaremos ao vosso domínio. Também ela, quando tiver cumprido o termo de sua vida, será devidamente vossa. Até então, porém, deixai-a comigo, eu vos imploro. Se recusardes, não poderei voltar sozinho; triunfareis com a morte de nós dois.”

À medida que o canto de Orfeu fluía, as almas que viviam no reino do Hades, fantasmagóricas e sofridas, soluçavam e choravam. Tântalo, por um momento, abandonou a sua torturante e eterna busca de água e alimento; a roda de Ixion imobilizou-se; as filhas de Danao deixaram de tentar encher com água os tonéis sem fundo; Sísifo sentou-se ao lado de sua enorme pedra, não mais a empurrando montanha acima, como o fazia diariamente; o monstruoso Abutre, filho de Tifon, não foi destruir o fígado de Prometeu nesse dia. Os olhos das Erínias, pela primeira e única vez, em toda a história do Hades, ficaram úmidos. Perséfone não pode resistir e intercedeu junto de seu amado esposo no sentido da libertação do casal, obtendo dele o devido assentimento.

Recebida por Orfeu a permissão para reconduzir Eurídice ao mundo dos vivos, uma condição foi imposta: ele iria à frente e ela atrás, não podendo ele, em hipótese alguma, voltar-se para vê-la. Só poderiam se ver quando tivessem ambos ultrapassado os limites do reino infernal.


Quando já estava muito próximo da superfície da terra, Orfeu, tomado por invencível pothos, provocada por terrível dúvida, voltou-se para ver a sua amada. Rompido o acordo, perdeu-a. Ao longe, uma sombra que lembrava vagamente a sua amada, deslizava na direção do Hades. Tentou alcançá-la, mas foi em vão.


Desesperado, perdida Eurídice para sempre, Orfeu, desde a sua saída do Hades se desinteressou pelas mulheres. Repelia-as, nenhuma lhe interessava, preferindo as companhias masculinas. As donzelas trácias fizeram de tudo para seduzi-lo e ele absolutamente insensível. Entregou-se Orfeu inteiramente aos mistérios que criara, proibindo que dele participassem as mulheres. Fixou-se assim só no polo masculino, elegendo-o como única via para chegar ao mundo espiritual. Ao assim agir, transgredia um dos preceitos fundamentais da existência, o do gênero. Negava assim Orfeu o dualismo, que comanda toda a dialética universal, todo o movimento do devenir.


Tal procedimento, como se sabe, ao negar a alternância, atraiu a ação de Dioniso, a grande divindade que destrói as formas que se coagulam; como força irresistível ele provoca o rompimento de todos os limites que se queiram impor à energia universal.


Orfeu foi atacado pelas sacerdotisas do deus, as mênades, sendo seu corpo despedaçado (sparagmos), lançados os seus pedaços ao rio Hebro.


A história de Orfeu terminaria aqui. Contudo, segundo uma inspiração apolínea, de tendência espiritualizante, aristocrática, obviamente masculina, o crime cometido deveria ser punido. Uma peste assolou o país. Para apaziguar os deuses, conforme sentença oracular (Delfos), era preciso recuperar a cabeça de Orfeu (fig.dir., tela de G.Moreau) para que lhe fossem prestadas as honras fúnebres. Assim foi feito e tudo se resolveu. A cabeça do poeta transformou-se num oráculo, sua lira foi para Lesbos, centro da poesia lírica grega, e depois para os céus, sendo transformada numa constelação. Conduzido à Ilha dos Bem-Aventurados, lá, Orfeu, metido numa túnica imaculadamente branca, solitário e dolente, passa seu tempo tangendo a sua lira, com os olhos postos na eternidade.

A lira de Orfeu foi fabricada pelo deus Hermes com o casco de uma tartaruga e as cordas feitas com as tripas de animais por ele sacrificados. Cedida a Apolo, o instrumento acabou nas mãos de Orfeu. Nada há que se estranhar quanto a isto: como patrono de uma poderosa seita religiosa, não ficaria bem que Orfeu tivesse como pai um simples deus-rio. Uma versão tardia “melhorou” a sua paternidade, assumindo-a o Senhor de Delfos. 




Colocada nos céus como constelação boreal (10º a 29º de Capricórnio), a lira (Lyra) tem como a sua mais brilhante estrela Wega, alfa, de 1ª magnitude, hoje a 14º37´de Capricórnio. Esta estrela, mais ou menos entre 12.000 e 10.000 aC, era a estrela polar da Terra, sendo chamada pelos egípcios de Maat, nome de sua deusa da justiça, que participava da psicostasia.

Entre os árabes, o nome desta estrela era Al Waki, a Cadente; na Idade Média, foi conhecida pelo nome de Vultur Cadens. Ptolomeu atribuía a ela influências semelhantes às de Vênus e Mercúrio. Sempre associada pelos gregos à constelação da Lyra e ao mito de Orfeu, Wega é uma das estrelas mais brilhantes do céu, sempre considerada por todos os povos da antiguidade como a estrela da música.

Orfeu apareceu como um guia e educador da humanidade para a sociedade grega entre os sécs. VI-V aC., uma sociedade que se sentia ameaçada pela crescente influência dos cultos dionisíacos. A teologia órfica opunha-se frontalmente aos cultos de Dioniso.

DIONISO (CARAVAGGIO)

Uma das teses do orfismo era, por exemplo, a de que a prática vegetariana aproximava o homem do divino. O orfismo também se opunha ao coletivismo extasiado ou sensorialmente alterado dos ritos do deus do vinho, enfatizando a ida em direção do divino através de um princípio individual e consciente, sempre inalterado.


Dá-se o nome de Orfismo a uma corrente religiosa que desde o período arcaico da história grega, anterior ao aparecimento de Homero, estava instalada no país. Sabe-se que já no séc.VI aC os cultos órficos estavam espalhados por toda a Hélade, com um grande número de adeptos. O Orfismo compreendia uma cosmogonia e uma teogonia que apresentavam uma certa semelhança com aquilo que Hesíodo fixará.

ESQUARTEJAMENTO DE ZAGREUS

O tema central do Orfismo nos fala do esquartejamento de Zagreus, filho de Zeus e de Perséfone, por parte dos Titãs, que não o aceitavam como divindade tutelar do universo por desígnio do pai. Revoltados, os Titãs atacaram o menino-deus que, para fugir dos seus perseguidores, tomou a forma de um bode (fig.abaixo). Assassinado e devorado pelos Titãs, sobrou apenas do seu corpo o coração, recolhido por Palas Atena.



Zeus usará esse coração para dar nascimento a um novo Zagreus, que tomará o nome de Dioniso, o que nasceu duas vezes. Os Titãs serão fulminados pelo Senhor do Olimpo e de suas cinzas nascerão os humanos, formados por dois elementos, um terrestre (as cinzas titânicas) e o outro divino e eterno (o corpo de Zagreus devorado como bode, que estava no corpo dos Titãs). É desse núcleo que sairá, como se sabe, a tragédia (canto do bode) como gênero teatral: representações que reproduziam a vida, a paixão e a morte do menino-deus, encenadas pelas populações camponesas do interior da Grécia.


Quanto à cosmogonia órfica, fala-se de um ovo cósmico, nascido do Caos. Da divisão desse ovo teriam nascido a Terra e o Céu e mais todos os seres. Quanto à escatologia (tratado das coisas finais) órfica, estabelece-se no Orfismo que o homem tinha uma alma imortal. Esta alma, em virtude de um pecado original, entrava no plano da matéria, decaía. Sucessivas reencarnações e processos de iniciação órfica poderiam purificá-la para que voltasse ao Bem, para junto de Zeus Todo-Poderoso. É neste sentido que o Orfismo se tornou uma religião da salvação, soteriológica, principalmente das elites gregas. Abandonando o cárcere do corpo, a alma voltava à luz, desde que observados todos os ritos que a doutrina órfica estabelecia.


Quando morriam, os adeptos ou iniciados baixavam às sepulturas levando consigo umas pequenas lâminas (lamelas) nas quais se liam pequenas frases rituais, palavras de esperança, declarando-se nelas que aquele corpo que a carregava era de alguém que pertencia à raça dos mortais, sendo sua alma filha do céu estrelado. Na prática, o Orfismo foi pregado por um colégio sacerdotal; exigia-se castidade dos adeptos, jejuns, mortificações, regimes alimentares (proibição de carne animal, abstenção de ovos etc.), práticas ascéticas, vestes brancas, o que muito o aproximava das seitas pitagóricas, ambas, Orfismo e Pitagorsimo, muito influenciadas sem dúvida por doutrinas orientais (Índia). O Cristianismo, por sua vez, como fica fácil constatar, incorporará à sua teologia e à sua prática muitos itens das duas importantes seitas gregas.

O Orfismo se espalhou por todo o mundo grego. Textos órficos, muitos atribuídos a Orfeu, eram na realidade de autoria de Onomácrito, um adivinho da corte de Pisístrato (fig.esq.), de Atenas, a ele se devendo também uma coletânea de sentenças oraculares de Museu, poeta místico, trácio como Orfeu. Museu, amigo inseparável de Orfeu, era, como ele, grande músico, sendo capaz de curar enfermos com a sua arte. A ele de credita a criação do verso hexâmetro datílico e consta ter sido também discípulo de Lino.


Onomácrito (530-480) é uma figura importante do Orfismo. Foi um conhecido cresmólogo, compilador e falsificador de oráculos, que viveu na corte do tirano Pisístrato, em Atenas. Heródoto conta que o tirano requisitou os seus serviços para dar nova forma aos oráculos de Museu, poeta mítico trácio, uma espécie de porta-voz de Orfeu. Pausânias (fig.esq.), grande viajante e geógrafo, observador atento da sociedade do mundo greco-romano, atribui a Onomácrito muitos poemas falsificados sob o nome de Museu.
      
        O Orfismo permeou toda a filosofia, a arte e a literatura gregas. Píndaro, o poeta, acolheu o dogma reencarnacionista da seita. No teatro, os trágicos Ésquilo (fig.esq.) e Sófocles foram muito tocados pelas suas teses. A maior influência, contudo, está em Platão, sendo nele dominante mesmo, como se pode notar em importantes temas do platonismo, o do corpo como prisão da alma (Soma Sema, lema órfico) e o de sua queda e imortalidade.



Se o Orfismo no período clássico da história grega era ainda considerado com alguma seriedade, já no período helenístico a sua doutrina estava desacreditada. Inúmeros charlatães, em nome do Orfismo, percorriam a Grécia vendendo a salvação e lâminas que assegurassem uma boa viagem depois da morte. Diziam eles que, como conhecedores da magia órfica, poderiam limpar todas as impurezas das almas. Platão, aliás, em sua A República, já fustigara os charlatães que em nome do Orfismo vendiam a salvação. As lâminas órficas, lembremos, serviram, mais tarde, como fonte de inspiração para, no cristianismo, se estabelecer o sistema das indulgências.




A história trágica de Orfeu e de Eurídice, depois de Virgílio (As Geórgicas) e de Ovídio (Metamorfoses), deu origem a uma grande tradição literária, artística e musical. Muitos dos escritores e artistas que usaram o tema o deturparam ou o trataram ingenuamente, apesar do sucesso de crítica e de público. Esvaziaram-no sobretudo no que ele tinha de mais importante, o seu caráter político-social, como uma força apolínea de combate ao dionisíaco. Dentre as obras mais conhecidas podemos citar as óperas de Monteverdi, Gluck, Haydn, Offenbach, dramas coreográficos e balés diversos, como o de Angelo Policiano, de Lope de Vega etc. Nas artes plásticas: Bruegel, Tintoreto, Poussin, Delacroix etc. Filmes: de Jean Cocteau e de Marcel Camus.



O que se pode ressaltar de mais evidente na personalidade de Orfeu é que ele é, acima de tudo, um sedutor, um charmeur, como dizem os franceses. Orfeu é aquele que vence as resistências, dissipa-as. Seduzir é convencer com arte e astúcia, sob promessa de vantagens (vida eterna, no caso); exercer influência irresistível, fascinar; desencaminhar, atrair, encantar. Etimologicamente, seducere é chamar à parte, separar, desviar. Orfeu: um sedutor que apenas adormece o mal, mas que não o vence. A palavra seduzir comporta tanto uma ideia de encantamento, êxtase, como de descaminho. O sedutor, nesse sentido, está muito próximo do feiticeiro, do mágico, das Sereias.

ARGONAUTAS

Orfeu, na viagem dos argonautas, com a sua lira e canto, não só dava cadência musical às remadas e impedia que o canto das Sereias seduzisse os comandados de Jasão, como criava um ambiente de simpatia, afastando todas as possibilidades de desentendimento entre os participantes da expedição. Na Cólquida, adormeceu o dragão que guardava o Velocino de Ouro. Na sua descida ao Hades, encantou por completo o mundo subterrâneo. Foi transportado por Caronte, o barqueiro, que nada exigiu dele, quando da travessia dos rios infernais. Adormeceu Cérbero, que guardava os portões do Tártaro, tendo acesso assim ao palácio de Hades e de Perséfone, também seduzidos por sua arte. No pouco tempo que permaneceu no mundo ctônico, acalmou os monstros que lá viviam e aliviou o tormento dos condenados.

Orfeu foi aquele que perdeu Eurídice, a sua alma, a sua metade (o seu lado feminino), como ele mesmo proclamava. Teve a oportunidade de resgatá-la, de integrá-la à sua vida de uma outra maneira, mas falhou porque olhou para trás, transgredindo assim a lei das direções, negando o devenir, não sabendo tornar-se o que não era antes.

A alma, psikhe para os gregos, anima para os latinos, sempre foi considerada como um princípio vital, no qual se reúne o conjunto das atividades imanentes à vida (pensamento, afetividade, sensibilidade etc.) entendidas como manifestações de uma substância autônoma ou parcialmente autônoma em relação à materialidade do corpo. Daí animar, dar vida, imprimir movimento, impulsionar.

A alma é princípio de inspiração moral, como encontramos a palavra nas expressões “ter alma”, “não ter alma”, “criar alma nova”, “sua alma, sua palma”, “vender a alma ao diabo” etc. Princípio de vida, sede de pensamentos e de sentimentos, estes dois conceitos se distinguem desde a antiguidade hebraica (alma orgânica e alma pensante) e romana (animus e anima). A redução do segundo sentido ao primeiro constitui o vitalismo; a redução do primeiro ao segundo, o espiritualismo (Platão, Leibnitz, Hegel).

O problema da união da alma ao corpo foi tratado por Descartes, lembremos. Antes, porém, Platão já o havia abordado de modo excepcional no seu diálogo Phedon. A psykhe, entre os antigos gregos, de um modo geral, estava ligada à ideia de movimento, pois pela sua simples partida o corpo era transformado em algo (soma) sem movimento, um agregado de órgãos e membros inerte, que logo se desfazia.

Quando Orfeu se referiu à perda de sua alma (morte de Eurídice) o que temos é uma alusão clara ao lado feminino da sua personalidade. Tentou resgatá-lo, mas não conseguiu. A esse lado feminino os antigos romanos, como vimos, davam o nome de anima, conceito depois desenvolvido pela psicologia, por Jung principalmente, como índice feminino do inconsciente masculino.



O conceito de anima tem que ser entendido obviamente a partir da complementaridade entre consciente e inconsciente. Nessa perspectiva, resumidamente, e embora na realidade tudo não seja tão simples como aqui se coloca, pode-se dizer que o homem terá uma alma feminina. O que caracteriza a feminilidade da anima é o sentimento, alquimicamente, como se sabe, ligado ao elemento água. Já o animus estará ligado ao pensamento racional, essencialmente masculino, ligado aos elementos ar e fogo. Sentir e pensar, pois. No seu processo de individuação, os homens terão assim que integrar nele a sua anima, as mulheres o seu animus. A compreensão e a integração dessas imagens é bastante complexa e exige um entendimento com o sexo oposto. O cenário em que se dá esse diálogo é a vida de cada um de nós.

Orfeu tentou fazer a reintegração de Eurídice no novo ser em que deveria se tornar, mas não o conseguiu. É de se lembrar aqui, aliás, que os heróis gregos sempre tiveram grande dificuldade de ajustar o masculino e o feminino na sua personalidade. Heróis como Hércules e Aquiles, por exemplo, saturados de energia masculina (o elemento fogo, no caso), conhecidos como grandes guerreiros, foram muito atacados pelo lado feminino de sua personalidade.

Tétis, a mãe de Aquiles (de akhos, dor, aflição), o maior guerreiro da mitologia grega, sabia, por uma profecia, que Tróia só poderia ser vencida se Aquiles participasse da guerra, mas que o fim de Ilion (Troia) coincidiria com a morte de seu filho. Nosso herói aceitou com muita disposição e até entusiasmo, segundo alguns comentaristas, a iniciativa de Tétis de vesti-lo com hábitos femininos (uma espécie de odalisca oriental, mulher do harém de um sultão), levando-o para a corte do rei Licomedes (fig.esq.), na ilha de Ciros, onde passou a viver disfarçado, muito feliz, entre as filhas do soberano, com o nome de Pirra, a Ruiva, por causa de seus cabelos acobreados. Aquiles, nesse esconderijo, levava uma vida dupla, chegando a unir-se com uma princesa da corte, tornando-a mãe de um filho seu, ao qual será dado o nome de Pirro, mais tarde chamado de Neoptólemo.

Aquiles, como se sabe, teve como o maior amor de sua curta vida o herói Pátroclo (fig.dir.), morto pelo troiano Heitor. Tomado por imensa fúria, Aquiles, apesar da sua imensa dor e lágrimas, atacará furiosamente os troianos, decidindo a guerra favoravelmente aos gregos, e trucidará o corpo de Heitor, príncipe troiano, desfigurando o seu cadáver. Depois, então, mandará erguer a pira funerária de Pátroclo, a cuja memória sacrificou onze jovens troianos para a macabra cerimônia. Organizou então jogos fúnebres em honra do amigo e amante, do qual participaram todos os heróis gregos. Ao final, mandou que no local se erigisse um suntuoso túmulo para receber os restos de Pátroclo. Quando Aquiles morreu, as suas cinzas foram juntadas às de Pátroclo. Prossegue o mito nos informando que, restaurados no esplendor de seus corpos físicos, Aquiles, Pátroclo e outros heróis da guerra de Tróia foram transferidos para a Ilha dos Bem-Aventurados e que lá foram viver eternamente, divertindo-se com as suas armas, participando de “agones”, felizes, entre banquetes e festas.

Hércules, como se sabe também, tinha uma paixão enrustida pelo travestismo feminino, sendo muito conhecido um episódio em que nosso herói, exilado na corte de Ônfale (fig.esq.), rainha da Lídia, numa doce escravatura, viveu no ócio, nos banquetes e na luxúria. Apaixonada por ele, mas ao que parece homossexual, a rainha se divertia com a sua famosa túnica feita com a pele do Leão de Nemeia, brincava com as suas armas, especialmente a sua clava, enquanto ele, usando os longos e luxuosos vestidos orientais dela, maquiado, praticando a dança do ventre, passava grande parte de seu tempo fiando linho aos seus pés, soltando o seu lado feminino sem constrangimento algum.






Lembro que o cinema italiano, em 1959, com o brutamontes Steeve Reeves, antigo Mr. Universo, no papel de Hércules, criou um gênero cinematográfico (filme histórico de aventuras) ao qual se deu o nome de Peplum (túnica das mulheres gregas), sobre o episódio que relatamos. Titulo do filme: Ercole e la regina di Lidia.



Voltando ao nosso tema, Orfeu, como se disse, não soube ajustar o lado masculino ao lado feminino de sua personalidade. Perdido o seu lado feminino (Eurídice), fixou-se apenas no masculino, rejeitou companhias femininas, passou a andar vestido com longas túnicas brancas imaculadas, tangendo a sua lira e cantando, sempre acompanhado de rapazes.

A partir do séc. VI aC, como se disse, o orfismo passou a impregnar o pensamento de todas as gerações posteriores, inclusive o cristianismo. Píndaro retomou o tema da reencarnação em sua obra. Os trágicos gregos também foram muito influenciados por ele e as ideias que dominam todo o platonismo têm muito a ver com o orfismo.

Os orpheotelestes, apóstolos que vieram da Trácia para divulgar na Grécia o orfismo como “Boa Nova”, que seduziu muita gente da sociedade grega, já no período helenístico eram vistos como charlatães e mercadores. O próprio Platão, um pouco desiludido talvez, chegou a censurá-los veementemente por causa das promessas que faziam: a completa purificação dos pecados e a garantia de uma vida eterna paradisíaca. Como os metragyrthes (sacerdotes da Grande-Mãe frígia Cibele), eles iam de cidade em cidade mendigando, vendendo as suas purificações e os seus passaportes para a eternidade.

O mito de Orfeu ilustra também, sob um outro ângulo, a situação de alguém que, ao perseguir um ideal, ao adotar uma crença, não se “sacrifica” o bastante, mas que o faz apenas através de belos discursos, de aspectos exteriores. Ou seja, grandes aspirações e nenhum comportamento que as justifique. Orfeu é um personagem que se encaixa perfeitamente nas conclusões que podemos tirar do nono trabalho de Hércules (a morte das aves metálicas do lago Estinfalo) como lição de vida. Este trabalho, como se sabe, tem a ver com o nono signo astrológico de Sagitário, signo dos profetas.

As aves metálicas a que esse trabalho se refere, aves que ele precisava exterminar para que a luz do Sol voltasse a brilhar sobre o lago, representam o palavrório religioso que frequentemente usamos para falar de nossas crenças, da nossa espiritualidade, do nosso desejo de um mundo melhor. O grande problema, porém, é que são as nossas emoções que estão nessas palavras, mas não as nossas a ações. Ficamos muito ocupados com o nosso discurso, com conceitos, ritos, com o visual das cerimônias, usamos roupas vistosas, frequentamos templos, lugares sagrados, igrejas, sinagogas, terreiros, mesquitas, centros esotéricos etc., mas acabamos esquecendo de viver o que falamos. Uma lição do signo de Sagitário aplicável ao tema aqui discutido: devemos deixar de pensar e de falar tanto no “distante”, no “lá”, no “além”, para aprendermos a ser simplesmente no lugar em que nos encontramos, isto é, na terra, no nosso espaço, no nosso momento histórico.

Foi oferecida a Orfeu, quando da sua descida ao Hades, a possibilidade de ser restaurada a sua “unidade”. Por ter “olhado para trás” e não ter entendido que “a mulher é o futuro do homem”, Orfeu abriu mão de sua transcendência terrestre, afinal a única possível ao ser humano. Ou seja, rejeitou o “feminino” em nome do céu, o que aliás todas religiões patriarcais fazem.

O Hades, como sabemos, associa-se à obscuridade, às origens, sendo um símbolo da noite e dos terrores que inspiravam ao homem, desde a pré-história, o frio, a sombra, a solidão. A descida ao inferno da qual nos falam os mitos corresponde, acima, na superfície terrestre, no ciclo das estações, aos primeiros dias de decréscimo da luz, prelúdio do inverno, por oposição à ascensão, entre o primeiro dia da fase crescente seguinte, o equinócio da primavera e o dia 24 de junho.


No nível de vários esoterismos, essa descida representa uma morte alegórica, o abandono pelo iniciado de sua natureza profana nas obscuras câmaras de reflexão, a passagem do negro ao branco dos alquimistas. É o Hades nestes termos o mar noturno do inconsciente ao qual é preciso descer e atravessar, a partir de uma situação de vida consciente, para voltar de novo à luz, chegar a uma outra margem. Em muitas tradições, essa descida, como é aqui o caso, é tida por um processo de individuação que começa por uma descida que alguém faz ao seu mundo interior, uma regressão, uma volta sobre si mesmo, que Orfeu não soube fazer.

Orfeu faz parte da extensa galeria de profetas fundadores de religiões, de instauradores dos vários cultos religiosos que conhecemos. No geral, em todos, a transcendência nunca é terrestre; o que se oferece como salvação é uma vida eterna na bem-aventurança ao lado de um Deus, num paraíso. Os discursos desses profetas, como a história das religiões no-lo prova, são um fracasso quanto ao feminino.

Numa outra leitura, podemos considerar que Eurídice era o duplo de Orfeu, esse duplo que se torna o objetivo da eterna busca do ser humano, pois é ele e só ele que pode garantir a fecundidade do ser. Em todos os mitos, a alma é concebida como um duplo do ser vivo, que pode se separar do seu corpo na ocorrência da morte, pelo sonho ou por alguma operação mágica.


RENÉ MAGRITTE

Platão, em O Banquete, fala do andrógino como o alter ego da personalidade humana, seu complemento indispensável, ao qual todo homem ou toda mulher deverão voltar a se unir para ser recuperada a unidade original perdida. A partir do século XIX, o Romantismo alemão pôs em circulação a ideia do duplo sob uma outra forma, sob a inspiração do triunfo da subjetividade (tendência a encarar e a avaliar as coisas de um ponto de vista meramente pessoal). Os duplos (doppelgänger) que o Romantismo alemão nos revelou, são inquietantes, têm um caráter de fatalidade. Como exemplos desta tendência, podemos citar obras como A Mulher Sem Sombra (Hugo von Hofmannsthal), O Retrato de Dorian Grey (Oscar Wilde), Le Horla (Guy de Maupassant), A Sombra (Hans C.Andersen) etc.

Eurídice, como complemento indispensável, alter ego da personalidade humana, é a reconstituição da unidade original, sempre perdida e sempre reconquistada. Os mecanismos que nos desapossam de nós mesmos, conduzindo-nos a um desdobramento (fenomenologia do duplo, da sombra, da psicologia moderna), encontram, sem dúvida, no mito de Orfeu uma de suas melhores expressões.

Grande parte dos que se fixaram em Orfeu, mitólogos, estudiosos, exegetas, psicólogos, escritores, religiosos etc., optaram por considerá-lo sobretudo pelo seu gênero de vida segundo a seita que se formou a partir de seu mito. Na Grécia, os adeptos do orfismo eram chamados também de renunciantes e tinham como único objetivo a salvação. Exercitavam-se para a santidade, cultivavam técnicas de purificação a fim de se separar dos outros. Os órficos, em nome da humanidade, queriam ser absolvidos do sangue derramado nos altares por aqueles que haviam vivido a religião como sacrifício sangrento. Recusavam por isso o alimento vermelho, as “apetitosas emanações”, em nome da comensalidade vegetariana. Em momento algum de sua história, o orfismo tentou atuar politicamente ou imaginar a polis de outra maneira. O que pretenderam foi reescrever a gênese do mundo (cosmogonia) e a história dos deuses (teogonia).

O orfismo procurou dar uma outra forma à religião olímpica. Vindas de séculos anteriores, as comunidades órficastinham a sua existência perfeitamente atestada no séc. VI aC. Através de uma ascese, de mortificações e purificações que os levasse a uma rigorosa catarse, os iniciados defendiam a metempsicose, entrando muitas vezes em choque com a religião oficial da polis.

O ser humano era produto de um dualismo original, o titânico e o divino. A morte não punha fim à vida, pois, segundo a doutrina da transmigração das almas, o elemento divino teria que se reunir novamente com o seu antagônico titânico para recomeçar uma nova vida, sob uma outra forma. Assim, a alma é julgada e, conforme os seus méritos e as suas faltas, depois de uma permanência no além, retorna ao cárcere de um novo corpo humano, podendo inclusive descer ao nível animal e vegetal.

Os sepultamentos, para órficos, eram uma cerimônia simples e alegre, já que “as lágrimas se guardavam para os nascimentos”. Os criminosos e os sacrílegos estavam condenados a passar por penosas metempsicoses. A alma que não havia quitado as suas culpas devia, pois, retornar.

O orfismo procurou modificar arraigados e imemoriais princípios que estavam presentes na religião oficial da polis grega. Esta, como se sabe, falava de seculares maldições familiares segundo as quais cada membro do “genos” era corresponsável e herdeiro das violências (hamartiai) praticadas por qualquer um de seus membros. Para os órficos a culpa era sempre da alçada individual e por ela o criminoso pagaria no além e em outras reencarnações, até a sua catarse final. O orfismo, ao contrário da religião oficial da polis, que propunha o bem viver segundo os modelos apolíneos, era uma doutrina que falava do “bem morrer”. Nestas condições, “sorrisos para os que morrem, lágrimas para os que nascem.”