sábado, 4 de janeiro de 2020

DOS PECADOS - A PREGUIÇA



A  PREGUIÇA ( HIERONYMUS BOSCH , 1450 - 1516 )

Os dicionários definem a preguiça como aversão ao trabalho, ócio, vadiagem. Os profissionais da saúde muitas vezes a consideram como um estado de prostração e moleza de causa orgânica ou psíquica, uma doença. A Igreja católica a incluiu entre os sete pecados capitais. No geral, é vista  como desleixo, falta de empenho, morosidade, lentidão. 

Se olhamos a preguiça usando a primeira lei da Física formulada por Isaac Newton podemos lançar outras luzes sobre ela, não a considerando tão negativa quanto parece. A citada lei nos diz que mesmo a natureza pode ser preguiçosa e que, por isso, talvez, a possamos considerar de modo mais benévolo, não como um defeito ou um pecado do ser humano.  Eis a lei: todo corpo persiste em estado de repouso ou de movimento retilíneo e uniforme, a menos que seja compelido a modificar esse estado pela ação de forças impressas sobre ele.

A lei a que nos referimos é conhecida também como lei da inércia, entendida esta como a tendência que os corpos apresentam de permanecer em equilíbrio ou em movimento retilíneo como descrito. Dá-se o nome de massa à medida quantitativa da inércia de um determinado corpo. Quanto maior a massa de um corpo, maior a sua inércia. O seja, massa é a oposição que um corpo oferece à mudança do seu estado.  

ISAAC   NEWTON
As leis de Newton foram publicadas por ele, na Inglaterra, em 1687, na sua obra intitulada Princípios matemáticos da filosofia natural, na qual ele lançou os fundamentos da dinâmica, explicando-se a partir dela, por exemplo, o surgimento das marés e as órbitas planetárias. 
                                             
O ser humano, para se manter vivo precisa sair da inércia, agir e obter coisas do mundo à sua volta, alimentos, proteção contra as intempéries, ter algum poder sobre o mundo vegetal e animal, evitar ataques de animais predadores, que, no seu caso, são, em grau superlativo,  outros seres humanos. Toda esta atividade o ser humano traduz psicologicamente pelo que chamamos de desejo, termo empregado na filosofia, na psicanálise e na psicologia para designar, ao mesmo tempo, a sua propensão, o seu anseio, a sua necessidade, a sua cobiça ou o seu apetite. Isto é, qualquer forma de movimento em direção a um objeto cuja atração física, material, sexual ou espiritual seja sentida por ele.       
                                                                                 
Como dá para perceber pelo que está acima, o desejo se distingue da necessidade, esta uma simples incitação fisiológica, a fome por exemplo. O desejo tem relação com algo específico: desejo beber vinho, comprar isto ou aquilo. O desejo supõe sempre uma certa insatisfação, dando à vida afetiva a sua tonalidade; desperta sentimentos e paixões, estando, por isso, na base de toda a atividade humana. Mais ainda: os desejos que o homem pode experimentar são praticamente infinitos em número, decorrendo desse fato que se procurar satisfazê-los indiscriminadamente acabará perdendo a sua liberdade, ficará doente, deprimido, angustiado. O desejo ao qual o homem sabe aplicar noções precisas de cálculo e de reflexão se torna ato de vontade. Não é a pulsão do desejo, mas o ato da vontade que é verdadeiramente a expressão da personalidade humana.                              

A ciência vem tentando provar que a preguiça, quanto aos seres humanos, pode ser transmitida, por gerações. Quanto aos ratos, as eternas cobaias, isso parece já estar comprovado. Para esse fim foram selecionados ratos que se movimentavam muito e outros bem menos, dando-se a ambos os grupos condições de que gerassem filhos. Foram detectados nestes últimos, e não nos filhos dos outros, 36 genes que interferiam diretamente na sua movimentação, tornando-os bem menos ativos.


AI , QUE  PREGUIÇA !
De um modo geral, para a ciência a imobilidade (preguiça) é uma tendência natural do ser humano e serve para ajuda-lo a preservar a sua energia. É por isso, afirmam muitos estudiosos, que quando ele se dispõe a fazer qualquer coisa, a entrar em ação, ele procura sempre a forma mais fácil de fazê-lo, a maneira de dispender o mínimo possível de sua energia. Por outro lado, muitos animais “sabem” que a preguiça faz bem. “Sabem” que ela serve para descontrair os músculos, pois eles tendem a ficar tensos, mesmo quando dormem. 

AÇÚCAR
Quando despertamos e nos espreguiçamos estamos nos preparando para entrar em ação, para entrar em movimento. É óbvio que o excesso de preguiça, de imobilidade, de sedentarismo, faz mal, os músculos de nosso corpo se encolhem, se atrofiam, como quando ficamos muito tempo numa posição, vendo TV ou sentados diante de um computador. Um fator já comprovado, que aumenta a tendência do ser humano ao imobilismo, ao sedentarismo, é o alimentar. O açúcar e os alimentos com alto teor de gorduras são particularmente nefastos nesse caso. 

Estudos científicos recentes vêm tentando provar que o uso prologado da maconha pode tornar os seus usuários mais lentos, mais preguiçosos, menos espertos, menos ágeis, física e mentalmente. Isto se deve, ao que parece, diminuir a maconha  a produção de um neurotransmissor, a dopamina, que tem importante papel na motivação e no comportamento orientado para a busca de recompensas. A maconha, nesse sentido, atua na direção contrária das anfetaminas, drogas estimulantes da atividade do sistema nervoso central, que, além de inibir o apetite, aceleram a atividade cerebral, mantendo as pessoas acesas, ligadas, elétricas. As anfetaminas, como se sabe, liberam muita dopamina, estando comprovada a sua relação com quadros psicóticos. As anfetaminas são chamadas pelos caminhoneiros brasileiros pelo nome de rebite, muito usado para mantê-los acordados durante muitas horas, longas jornadas, às vezes um ou mais dias. 


ILUMINURA   MEDIEVAL
Os antigos gregos, como já vimos, davam o nome de daemones a certos espíritos ou divindades que atuavam no mundo natural para prejudicar ou ajudar os humanos A felicidade de um homem estava associada à influência de um eudaemon, um demônio bom, favorável. No caso de que tratamos, a preguiça, temos, ao contrário, os chamados kakodaemones (kako é mau, ruim). Normalmente, a preguiça era representada por tipos como Eucolia (personificação do ócio), Aergia (personificação da negligência), entidades que gostavam de andar na companhia de Penia (personificação da carência), de Lype (personificação da tristeza) ou da Hesichia (personificação da quietude), que vivia no palácio de Hipnos, o deus do sono. 


HYPNOS  E  TANATOS ( J.W. WATERHOUSE , 1849 - 1917 )


SÃO  JERÔNIMO
( F.ZURBARAN, 1598-1664
A palavra preguiça veio para nós através do latim, pigritia, com o sentido de indolência, omissão, descuido, desmazelo. São Jerônimo, que fez a primeira tradução da Bíblia para o latim, a chamada Vulgata, traduziu atsel, do hebraico para o latim, por preguiça, pigredo, atribuindo-lhe também o sentido de lentidão. A tradução de atsel para o grego deu deilia, fraqueza, pusilanimidade, medo. Uma variante dessa palavra grega é okneros, com o sentido de uma pessoa assustada, tímida.

ACÍDIA
Em latim, preguiça era também chamada de acidia, nome preferido pela Igreja católica para caracterizar, quando se pensava na vida religiosa, um estado de cansaço, de desânimo, de indolência, de falta de empenho, de desleixo, de  desatenção. Por volta do séc. IV dC, os anacoretas do deserto conheceram uma forma desse cansaço de viver de modo muito peculiar, dando-se-lhe o nome de acídia ou acedia, caracterizada por um enfraquecimento da vontade, uma espécie de abulia espiritual quanto ao exercício das virtudes, especialmente no que respeita ao culto e à comunicação com Deus. A palavra é grega (akedia), significando ao mesmo tempo negligência, indiferença, mágoa, prostração, desgosto, apatia do coração e da alma. A literatura dos padres do deserto (ver a literatura de Evágrio, o Pôntico, Egito, séc. IV dC) nos dá testemunhos deste estado: O anacoreta se sente tão esgotado como se tivesse percorrido um longo trajeto no deserto ou se submetido a um jejum de muitos dias.


EVÁGRIO , O  PÔNTICO  ( ILUMINURA  MEDIEVAL )

O a da palavra acídia é privativo, negativo, denotando falta de elã, de interesse, de motivação. A palavra tem relação com o verbo latino cedo, cessi, cessum, cedere, avançar, prosseguir, persistir. A acídia é descrita pelos monges do deserto como um estado no qual o que se faz se revela subitamente como destituído de interesse, sem razão, sem objetivo. A acídia aponta para a inutilidade, a falta de sentido no que se está a fazer. Os anacoretas, como sabemos, viviam como trogloditas, em pequenas celas, em cavernas, na penumbra, nos desertos do Egito, durante anos e anos até a morte. 
ANACORETA
(T. AXENTOWICZ, 1859-1938)
Como anacoretas, deviam manter permanentemente a sua atenção concentrada no que faziam, a leitura, as orações, a busca de água e de alimentos, sempre o mínimo, o estritamente necessário para a sobrevivência. Qualquer descuido com relação a esta concentração significaria uma porta aberta para o demônio. A doutrina dos padres do deserto recomendava que jamais fosse dada alguma oportunidade a que pensamentos ou atos viessem a trazer algum desvio das posturas recomendadas.

HANNIA, DIABO JAPONÊS
A ociosidade era um dos grandes perigos, uma das vias preferidas do demônio para atacar. A ociosidade era provocada geralmente por um questionamento interior sobre a validade ou a utilidade do que se fazia. Como preguiça mental, era uma arma de Satã. Aberta a guarda, o monge podia sair do estado de entusiasmo (Deus em nós) em que se encontrava e se tornar uma presa do vazio. Abria-se uma espécie de fenda, uma ruptura, na tensão que o anacoreta alimentava como meio de se relacionar com Deus. Isto era a acídia. Uma ruptura que podia levar o monge a fugir, a abandonar tudo. Afinal, Alexandria, a cidade mais bela do mundo, cheia de prazeres, estava apenas a um dia de marcha da sua caverna. A acídia era a mais ameaçadora das tentações, maior que as mulheres e que a comida, tentações sempre mais fáceis de combater.

O ócio sempre foi considerado por muitas tradições religiosas como a oficina do Diabo, por desligar a pessoa das suas obrigações. Ócio é tempo livre, folga, repouso, visto negativamente pelas religiões. Desse mesmo entendimento sempre participaram, por exemplo, os primeiros industriais dos tempos modernos. Na era industrial, o ócio era muito mal visto porque permitia que os empregados, nos seus períodos de folga, se pusessem a discutir sobre as suas condições de trabalho, o valor dos seus salários, o que podia levá-los, como realmente aconteceu, a fundar sindicatos, unions, a fazer reivindicações “absurdas”, como a diminuição da sua jornada de trabalho para doze horas por dia ou limitar o trabalho infantil a dez horas diárias, com uma folga por mês. 


UM  DOMINGO  DE  VERÃO  NA  GRANDE  JATTE
( GEORGES  SEURAT , 1859 - 1891 )

No ocidente, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, todos os industriais europeus e norte-americanos sempre procuraram manter os seus empregados trabalhando ou ocupados, nos poucos momentos de folga. Os fins de semana sempre foram considerados como perigosos, daí resultando o grande estímulo desses patrões para que seus operários cumprissem não só as suas obrigações religiosas como frequentassem outras atividades, de mesmo caráter.


JOÃO  DAMASCENO
Alguns doutrinadores da Igreja católica dão o nome de tristeza à acídia, como o fizeram João Damasceno e o papa Gregório. Santo Tomás diz que a acídia é tédio ou tristeza em relação aos bens interiores e aos bens do espírito. Para ele, são filhas da acídia o desespero, a pusilanimidade, o torpor, o rancor, a malícia e a divagação da mente. O desespero é um estado de profundo desânimo de alguém que se sente incapaz de qualquer ação. Etimologicamente, desespero é o afastamento de qualquer esperança. Mais simplesmente é a sensação de frustração ou de desânimo que nos toma quando ao tentar fazer alguma coisa não o conseguimos seja pela dificuldade de sua execução ou pela exigência de perfeccionismo implícita. Pusilanimidade é fraqueza de ânimo, falta de energia, de firmeza, de decisão. Aparece associada à covardia, ao medo.  Torpor é sentimento de mal-estar caracterizado pela diminuição da sensibilidade e do movimento, entorpecimento, insensibilidade. O rancor é sentimento de profunda aversão provocado por experiência vivida; confunde-se com o ressentimento, mágoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal sofrido. A malícia é inclinação para fazer o mal, habilidade para enganar, interpretação maldosa. Mente divagante é a mente sem rumo, dispersa, incapaz, numa discussão, de se fixar no mais importante; é a mente do nefelibata, que foge da realidade, que vive nas nuvens. 

ORDEM  DOS  CARTUXOS
A acídia, ao longo dos séculos, foi descrita por vários escritores católicos e eruditos que se aproximaram do tema. No séc. XII, o superior da Ordem dos Cartuxos, Guigues II, assim escreveu sobre a acídia: quando estás sozinho em tua cela, és muitas vezes tomado por uma espécie de inércia, de frouxidão espiritual, de fastio do coração, e então sentes em ti um desgosto pesado; suportas a carga de ti mesmo; aquelas graças interiores das quais gozavas prazeirosamente deixam de ter para ti qualquer suavidade; a doçura que ontem experimentavas e que anteontem sentias em ti, se transformou numa grande amargura.


A acídia, hoje, no mundo moderno, globalizado, se revela sobretudo como desdém, palavra montada a partir do verbo dignar mais o prefixo des, que, dentre outros significados, indica separação, afastamento, isto é, afastamento do que é digno, do que tem valor e que, como tal, deve ser considerado. Os antigos davam ao verbo considerar o significado de olhar o céu, observar os astros, com respeito religioso porque no movimento deles havia uma ordem, uma regularidade ajustada ao todo, um comportamento perfeito, de grande, de distante dignidade e beleza e que, por isso, deveria ser reproduzido na Terra.


ACÍDIA
A acídia seria, então, nesse sentido, a incapacidade de atribuir valores transcendentes que devem estar na base de nossa conduta. Sendo incapazes de estabelecer esses valores, não vemos diferenças. Não vendo diferenças, tudo se equivale. Subjetivamente, valor é o caráter que uma coisa tem, seja um objeto, uma ação, na medida em que este objeto ou esta ação podem ser mais ou menos estimados ou desejados por alguém, por um grupo de pessoas, tendo em vista um determinado fim, mais elevado, que melhore a vida da sociedade como um todo.

Valor também seria o caráter de alguma coisa, seu sinal distintivo, caráter que consiste em merecer este algo maior ou menor estima. As coisas diferem não apenas em quantidade mas, sobretudo, em qualidade. Num mundo digitalizado como o nosso, hoje, não trabalhamos mais com qualidades, mas com valores exclusivamente binários. Não conseguimos ver mais as diferenças, que estão na base dos valores, nem vemos analogias, isto é, como no universo tudo se corresponde, nem percebemos relações, matizes, nuances entre as coisas e seres do mundo.  Não temos mais metáforas. Assim agindo, transformamos tudo em clichês, estereótipos que se sucedem, consumidos, usados e descartados continuamente. Começamos a fazer isto com objetos, utensílios, roupas e já há muito que o fazemos com pessoas.

A acídia se aproxima bastante da indiferença, estado mental que não indica nem prazer nem dor, nem uma mistura de ambos. Aproxima-se também bastante da insensibilidade, da apatia, estados nos quais a vontade não consegue se exercer, pois não há discernimento. As diferenças, em consequência, não se estabelecem. A indiferença leva à indeterminação, como o desdém. Se não temos valores, se não atinamos com o que deve ser preservado ou o que deve vir antes, o que deve ser preterido, afastado, ou ficar para depois, instalam-se a acídia, o desdém e, consequentemente, a desordem. A vida se transforma numa coisa ilógica, fragmentada, cínica; somos tomados por estados de alma não suscetíveis de qualquer comoção ou interesse. Qualquer coisa serve, não distinguimos diferenças. É o tanto faz. Tudo se torna contingente, fortuito, aleatório. Nossa capacidade crítica fica embotada. Não somos capazes de fazer exames dos fatos, dos acontecimentos, a fim de chegarmos a julgamentos que nos levem a valores, a estabelecer graus do que é desejável ou não tendo em vista um fim determinado. Uma consequência de tudo isso é a perda de um ideal de transcendência e a consequente desmoralização de conceitos como verdade, beleza, moral, honestidade, utilidade etc. Assim desvalorizada a nossa vida pessoal, a nossa vida social também se degrada, se corrompe e, com ela, o conjunto das instituições que devem controlar e administrar a nação, a isto que chamamos Estado.

VÔMITO  ( MEDIEVAL )
Os antigos gregos davam o nome de Koros ao estado acima descrito, personificando-o. Koros traduz uma ideia de saciedade, uma espécie de fartão, ideia aliás muito adequada aos tempos em que vivemos hoje. Seria como o regurgitamento de comidas e bebidas, um estado próximo do transbordamento por excesso, repleção. Satisfação, enfaramento. Neste estado, o ser humano vive num estado gaseificado com relação às opiniões que deve emitir sobre o mundo, nenhuma solidez, tudo se tornando flutuante, nada de firmeza, nenhuma sustentação, nenhum critério para estabelecê-las. Aceitam-se quaisquer coisas, engole-se tudo, aceita-se tudo e imediatamente se passa adiante, sem discriminação alguma. 

A técnica, nas suas expressões mais avançadas hoje, vem trazendo concretamente uma grande liberação de tempo, acenando com inúmeras possibilidades de lazer, de felicidade. Um hedonismo ainda não estudado totalmente, cujos principais modelos são exportados pelos detentores das mais modernas tecnologias de produção, penetra toda a sociedade humana, alcançando países de tradições e estruturas muito diversas. A busca da felicidade e do prazer iniciada no século XX pelas multidões, num nível de massa, é um dos maiores acontecimentos modernos da história da humanidade. 


LOS  BORRACHOS ( D. VELÁZQUEZ, 1599-1660
Uma verdadeira e alucinada corrida se estabelece então, todos querendo aproveitar, gozar. Os meios, acreditamos todos, já existem, estão aí, só que essa felicidade não chega, corrompendo-se via de regra em escapismo e evasão através da droga, do álcool e, sobretudo, do consumismo. O ser humano do final do século XX e do início deste não vem conseguindo transformar seu tempo livre em lazer autêntico. O cidadão médio, o common man das nossas sociedades modernas, ainda que assistido por um arsenal tecnológico imenso, no seu trabalho e fora dele, atropelado pela ação anárquica dos meios de comunicação, jornais, TV, rádio, que o disputam como uma presa, que não param de lhe trazer novidades e ofertas, não vê como transformar seu tempo livre em lazer e muito menos como uma ideia de transcendência. Um ideal que o tornaria melhor porque o meio em que vive se tornaria melhor com a sua ação.

Como regra geral, e consideradas as exceções de sempre, o homem moderno, o common man, sofre de uma preguiça mental exasperante. A conclusão é a de que vimos tendendo a promover a nossa aceitação social à custa de uma personalidade projetada, pois achamos que é mais fácil parecer do que ser. Montamos, assim, uma personalidade para ser consumida pelo meio em que vivemos, na família, no trabalho, no clube, na igreja, no bairro, no prédio em que residamos etc. A personalidade projetada deixa então de corresponder à personalidade real. E esta, se é que chegamos a ter consciência dela, também sabemos, com o tempo se esvai, se evapora, diante de tantos papéis que temos de representar. Mesmo que a muitos de nós seja possível passar uma imagem que esteja muito além ou acima daquilo que somos, a médio ou longo prazo, não poderemos escapar dos nossos atos. A pergunta, então, se coloca: qual a medida da nossa autenticidade? Por quanto tempo será possível suportar essa troca de papéis?

Uma das respostas a esta questão, a que mais se constata, é que grande parte das pessoas que buscam numa carreira o sucesso profissional acaba por fazê-lo através de uma personalidade artificial. Ora, a projeção de nossa personalidade não se faz apenas pelo que falamos ou escrevemos mas pela projeção total dela, e acima de tudo pelos nossos atos. Este conflito entre o que somos e parecemos pede muito de nós, sem dúvida...

Se tudo isso que estamos colocando fica muito mais fácil de perceber com relação às pessoas que buscam sucesso no mundo material, o mesmo acontece também com relação àqueles que procuram a realização no caminho intelectual ou espiritualista. Quantos, nestas áreas, não estão muito mais fixados nas suas palavras e escritos que nos seus próprios atos? Uma das mais trágicas consequências que tivemos nestas áreas foi aquilo que podemos chamar de perda da ideia de transcendência da qual vimos falando, a perda da ideia de que poderíamos ir além da situação em que nos encontrávamos intelectualmente ou espiritualmente. A maioria, anestesiada como sempre, vê e quer o futuro apenas como o presente, só que com muito mais tecnologia, isto é, cheio de maravilhosos efeitos especiais, como no cinema. Ao lado de tudo isso, vai se instalando também não só uma sensação de derrota, mas de desânimo e de dissimulação intelectual e espiritual, a velha acídia latina, que nos leva a fingir que todo esse retrocesso pode ser uma caminhada para o futuro.