A PREGUIÇA ( HIERONYMUS BOSCH , 1450 - 1516 ) |
Os dicionários definem a preguiça como aversão ao trabalho, ócio, vadiagem. Os profissionais da saúde muitas vezes a consideram como um estado de prostração e moleza de causa orgânica ou psíquica, uma doença. A Igreja católica a incluiu entre os sete pecados capitais. No geral, é vista como desleixo, falta de empenho, morosidade, lentidão.
Se olhamos a preguiça usando a primeira lei da Física formulada por Isaac Newton podemos lançar outras luzes sobre ela, não a considerando tão negativa quanto parece. A citada lei nos diz que mesmo a natureza pode ser preguiçosa e que, por isso, talvez, a possamos considerar de modo mais benévolo, não como um defeito ou um pecado do ser humano. Eis a lei: todo corpo persiste em estado de repouso ou de movimento retilíneo e uniforme, a menos que seja compelido a modificar esse estado pela ação de forças impressas sobre ele.
A lei a que nos referimos é conhecida também como lei da inércia, entendida esta como a tendência que os corpos apresentam de permanecer em equilíbrio ou em movimento retilíneo como descrito. Dá-se o nome de massa à medida quantitativa da inércia de um determinado corpo. Quanto maior a massa de um corpo, maior a sua inércia. O seja, massa é a oposição que um corpo oferece à mudança do seu estado.
ISAAC NEWTON |
O ser humano, para se manter vivo precisa sair da inércia, agir e obter coisas do mundo à sua volta, alimentos, proteção contra as intempéries, ter algum poder sobre o mundo vegetal e animal, evitar ataques de animais predadores, que, no seu caso, são, em grau superlativo, outros seres humanos. Toda esta atividade o ser humano traduz psicologicamente pelo que chamamos de desejo, termo empregado na filosofia, na psicanálise e na psicologia para designar, ao mesmo tempo, a sua propensão, o seu anseio, a sua necessidade, a sua cobiça ou o seu apetite. Isto é, qualquer forma de movimento em direção a um objeto cuja atração física, material, sexual ou espiritual seja sentida por ele.
Como dá para perceber pelo que está acima, o desejo se distingue da necessidade, esta uma simples incitação fisiológica, a fome por exemplo. O desejo tem relação com algo específico: desejo beber vinho, comprar isto ou aquilo. O desejo supõe sempre uma certa insatisfação, dando à vida afetiva a sua tonalidade; desperta sentimentos e paixões, estando, por isso, na base de toda a atividade humana. Mais ainda: os desejos que o homem pode experimentar são praticamente infinitos em número, decorrendo desse fato que se procurar satisfazê-los indiscriminadamente acabará perdendo a sua liberdade, ficará doente, deprimido, angustiado. O desejo ao qual o homem sabe aplicar noções precisas de cálculo e de reflexão se torna ato de vontade. Não é a pulsão do desejo, mas o ato da vontade que é verdadeiramente a expressão da personalidade humana.
A ciência vem tentando provar que a preguiça, quanto aos seres humanos, pode ser transmitida, por gerações. Quanto aos ratos, as eternas cobaias, isso parece já estar comprovado. Para esse fim foram selecionados ratos que se movimentavam muito e outros bem menos, dando-se a ambos os grupos condições de que gerassem filhos. Foram detectados nestes últimos, e não nos filhos dos outros, 36 genes que interferiam diretamente na sua movimentação, tornando-os bem menos ativos.
AI , QUE PREGUIÇA ! |
AÇÚCAR |
Estudos científicos recentes vêm tentando provar que o uso prologado da maconha pode tornar os seus usuários mais lentos, mais preguiçosos, menos espertos, menos ágeis, física e mentalmente. Isto se deve, ao que parece, diminuir a maconha a produção de um neurotransmissor, a dopamina, que tem importante papel na motivação e no comportamento orientado para a busca de recompensas. A maconha, nesse sentido, atua na direção contrária das anfetaminas, drogas estimulantes da atividade do sistema nervoso central, que, além de inibir o apetite, aceleram a atividade cerebral, mantendo as pessoas acesas, ligadas, elétricas. As anfetaminas, como se sabe, liberam muita dopamina, estando comprovada a sua relação com quadros psicóticos. As anfetaminas são chamadas pelos caminhoneiros brasileiros pelo nome de rebite, muito usado para mantê-los acordados durante muitas horas, longas jornadas, às vezes um ou mais dias.
ILUMINURA MEDIEVAL |
HYPNOS E TANATOS ( J.W. WATERHOUSE , 1849 - 1917 ) |
SÃO JERÔNIMO ( F.ZURBARAN, 1598-1664 |
ACÍDIA |
EVÁGRIO , O PÔNTICO ( ILUMINURA MEDIEVAL ) |
O a da palavra acídia é privativo, negativo, denotando falta de elã, de interesse, de motivação. A palavra tem relação com o verbo latino cedo, cessi, cessum, cedere, avançar, prosseguir, persistir. A acídia é descrita pelos monges do deserto como um estado no qual o que se faz se revela subitamente como destituído de interesse, sem razão, sem objetivo. A acídia aponta para a inutilidade, a falta de sentido no que se está a fazer. Os anacoretas, como sabemos, viviam como trogloditas, em pequenas celas, em cavernas, na penumbra, nos desertos do Egito, durante anos e anos até a morte.
ANACORETA (T. AXENTOWICZ, 1859-1938) |
Como anacoretas, deviam manter permanentemente a sua atenção concentrada no que faziam, a leitura, as orações, a busca de água e de alimentos, sempre o mínimo, o estritamente necessário para a sobrevivência. Qualquer descuido com relação a esta concentração significaria uma porta aberta para o demônio. A doutrina dos padres do deserto recomendava que jamais fosse dada alguma oportunidade a que pensamentos ou atos viessem a trazer algum desvio das posturas recomendadas.
HANNIA, DIABO JAPONÊS |
O ócio sempre foi considerado por muitas tradições religiosas como a oficina do Diabo, por desligar a pessoa das suas obrigações. Ócio é tempo livre, folga, repouso, visto negativamente pelas religiões. Desse mesmo entendimento sempre participaram, por exemplo, os primeiros industriais dos tempos modernos. Na era industrial, o ócio era muito mal visto porque permitia que os empregados, nos seus períodos de folga, se pusessem a discutir sobre as suas condições de trabalho, o valor dos seus salários, o que podia levá-los, como realmente aconteceu, a fundar sindicatos, unions, a fazer reivindicações “absurdas”, como a diminuição da sua jornada de trabalho para doze horas por dia ou limitar o trabalho infantil a dez horas diárias, com uma folga por mês.
UM DOMINGO DE VERÃO NA GRANDE JATTE ( GEORGES SEURAT , 1859 - 1891 ) |
No ocidente, no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, todos os industriais europeus e norte-americanos sempre procuraram manter os seus empregados trabalhando ou ocupados, nos poucos momentos de folga. Os fins de semana sempre foram considerados como perigosos, daí resultando o grande estímulo desses patrões para que seus operários cumprissem não só as suas obrigações religiosas como frequentassem outras atividades, de mesmo caráter.
JOÃO DAMASCENO |
ORDEM DOS CARTUXOS |
ACÍDIA |
Valor também seria o caráter de alguma coisa, seu sinal distintivo, caráter que consiste em merecer este algo maior ou menor estima. As coisas diferem não apenas em quantidade mas, sobretudo, em qualidade. Num mundo digitalizado como o nosso, hoje, não trabalhamos mais com qualidades, mas com valores exclusivamente binários. Não conseguimos ver mais as diferenças, que estão na base dos valores, nem vemos analogias, isto é, como no universo tudo se corresponde, nem percebemos relações, matizes, nuances entre as coisas e seres do mundo. Não temos mais metáforas. Assim agindo, transformamos tudo em clichês, estereótipos que se sucedem, consumidos, usados e descartados continuamente. Começamos a fazer isto com objetos, utensílios, roupas e já há muito que o fazemos com pessoas.
A acídia se aproxima bastante da indiferença, estado mental que não indica nem prazer nem dor, nem uma mistura de ambos. Aproxima-se também bastante da insensibilidade, da apatia, estados nos quais a vontade não consegue se exercer, pois não há discernimento. As diferenças, em consequência, não se estabelecem. A indiferença leva à indeterminação, como o desdém. Se não temos valores, se não atinamos com o que deve ser preservado ou o que deve vir antes, o que deve ser preterido, afastado, ou ficar para depois, instalam-se a acídia, o desdém e, consequentemente, a desordem. A vida se transforma numa coisa ilógica, fragmentada, cínica; somos tomados por estados de alma não suscetíveis de qualquer comoção ou interesse. Qualquer coisa serve, não distinguimos diferenças. É o tanto faz. Tudo se torna contingente, fortuito, aleatório. Nossa capacidade crítica fica embotada. Não somos capazes de fazer exames dos fatos, dos acontecimentos, a fim de chegarmos a julgamentos que nos levem a valores, a estabelecer graus do que é desejável ou não tendo em vista um fim determinado. Uma consequência de tudo isso é a perda de um ideal de transcendência e a consequente desmoralização de conceitos como verdade, beleza, moral, honestidade, utilidade etc. Assim desvalorizada a nossa vida pessoal, a nossa vida social também se degrada, se corrompe e, com ela, o conjunto das instituições que devem controlar e administrar a nação, a isto que chamamos Estado.
VÔMITO ( MEDIEVAL ) |
A técnica, nas suas expressões mais avançadas hoje, vem trazendo concretamente uma grande liberação de tempo, acenando com inúmeras possibilidades de lazer, de felicidade. Um hedonismo ainda não estudado totalmente, cujos principais modelos são exportados pelos detentores das mais modernas tecnologias de produção, penetra toda a sociedade humana, alcançando países de tradições e estruturas muito diversas. A busca da felicidade e do prazer iniciada no século XX pelas multidões, num nível de massa, é um dos maiores acontecimentos modernos da história da humanidade.
LOS BORRACHOS ( D. VELÁZQUEZ, 1599-1660 |
Como regra geral, e consideradas as exceções de sempre, o homem moderno, o common man, sofre de uma preguiça mental exasperante. A conclusão é a de que vimos tendendo a promover a nossa aceitação social à custa de uma personalidade projetada, pois achamos que é mais fácil parecer do que ser. Montamos, assim, uma personalidade para ser consumida pelo meio em que vivemos, na família, no trabalho, no clube, na igreja, no bairro, no prédio em que residamos etc. A personalidade projetada deixa então de corresponder à personalidade real. E esta, se é que chegamos a ter consciência dela, também sabemos, com o tempo se esvai, se evapora, diante de tantos papéis que temos de representar. Mesmo que a muitos de nós seja possível passar uma imagem que esteja muito além ou acima daquilo que somos, a médio ou longo prazo, não poderemos escapar dos nossos atos. A pergunta, então, se coloca: qual a medida da nossa autenticidade? Por quanto tempo será possível suportar essa troca de papéis?
Uma das respostas a esta questão, a que mais se constata, é que grande parte das pessoas que buscam numa carreira o sucesso profissional acaba por fazê-lo através de uma personalidade artificial. Ora, a projeção de nossa personalidade não se faz apenas pelo que falamos ou escrevemos mas pela projeção total dela, e acima de tudo pelos nossos atos. Este conflito entre o que somos e parecemos pede muito de nós, sem dúvida...
Se tudo isso que estamos colocando fica muito mais fácil de perceber com relação às pessoas que buscam sucesso no mundo material, o mesmo acontece também com relação àqueles que procuram a realização no caminho intelectual ou espiritualista. Quantos, nestas áreas, não estão muito mais fixados nas suas palavras e escritos que nos seus próprios atos? Uma das mais trágicas consequências que tivemos nestas áreas foi aquilo que podemos chamar de perda da ideia de transcendência da qual vimos falando, a perda da ideia de que poderíamos ir além da situação em que nos encontrávamos intelectualmente ou espiritualmente. A maioria, anestesiada como sempre, vê e quer o futuro apenas como o presente, só que com muito mais tecnologia, isto é, cheio de maravilhosos efeitos especiais, como no cinema. Ao lado de tudo isso, vai se instalando também não só uma sensação de derrota, mas de desânimo e de dissimulação intelectual e espiritual, a velha acídia latina, que nos leva a fingir que todo esse retrocesso pode ser uma caminhada para o futuro.