sábado, 23 de novembro de 2019

DOS PECADOS - A SOBERBA

                             
PECADOS , CAPELA  DEGLI  SCROVEGNI , PADOVA
( GIOTTO  DI  BONDONE , 1304 - 1306 )

Orgulho, arrogância, jactância, vaidade, enfatuação, presunção, pretensão de superioridade,  o campo semântico deste substantivo é, realmente, muito vasto. Os antigos gregos usavam, por exemplo, para falar desse sentimento a palavra hyperphania (só encontrada hoje em alguns dicionários teológicos) composta de hyper, acima, elevado, abundante, muito alto ou grande, mais phania, de phaneros, visível, manifesto, público, evidente. Em português, temos ufania, que se aproxima de ufa, que significa em grande quantidade, traduzindo uma ideia de exagero, de excesso, de muito além do normal, palavra encontrada na expressão (locução adverbial) a ufo, provavelmente de origem onomatopaica.(gastou sua herança à ufo). Hyperphania, latinizada, estava na Bíblia, no Novo Testamento, em Marcos (7:22) e Lucas (1:51).

Da mitologia grega provém hybris, que significa desmedida, orgulho, descomedimento. No mito, era um daimon (um demônio, um gênio) que personificava a insolência, a arrogância, a falta de moderação, formando com Koros, o Desdém, e Asebeia, a Impiedade, uma pequena família. Para o homem comum, era um conceito que tinha relação com a falta de medida para mais ou para menos.  Ao atuar, a Hybris provocava uma desproporção, podendo levar ao bom demais como ao mau demais. Ela afastava as pessoas da justa medida, do nada excesso, divisa apolínea que estava inscrita no Oráculo de Delfos. No convívio social, a hybris era sobretudo sentida como a falta de percepção do outro, como uma invasão do seu espaço. No sentido contrário de Hybris atuava a Nemesis, divindade que punia os excessos, que atacava os orgulhosos, como aconteceu com o belíssimo Narciso.


NARCISO
( MICHELANGELO DA CARAVAGGIO , 1571 -1610 )

A soberba, superbia, em latim, é sempre citada em primeiro lugar quando enumeramos os pecados capitais. É conhecida como o pecado do Diabo, ou melhor, do Diabo na sua forma luciferiana. O Diabo é o nome que damos na tradição cristã a uma figura que encarna as forças do mal. Seu nome, etimologicamente, quer dizer aquele que divide, que causa dispersão. É, como tal, símbolo do erro, da mentira, da violência, da dispersão, das forças inconscientes que provocam a desintegração da personalidade do homem, vitimando-o física e moralmente, jogando-o em mil direções. É o inimigo natural de todas as formas de espiritualidade e da elevação psíquica. Na tradição judaico-cristã personifica as paixões e os vícios. A soberba costuma se expressar através de dois modos, individual ou coletivamente São exemplos deste segundo modo o cosmocratismo, o racismo, o corporativismo, o elitismo,  as várias formas de nacionalismo, a xenofobia, sobretudo a religiosa,  o colonialismo e outros mais. Uma forma muito peculiar de soberba, que muito mal fez ao convívio harmonioso entre os povos, foi a de nações que se auto-proclamaram como escolhidas por Deus para desempenha um papel importante de liderança, principalmente com base no monoteísmo, arvorando-se como condutoras do resto da humanidade. 


O  ORGULHO , A  VAIDADE  E  A  IRA.
( PETER  BRUEGEL , C.1525 - 1569 )

Um exemplo do que acima se expôs, nos tempos modernos, comparável com o dos judeus na antiguidade, pode ser encontrado em textos da ciência política, como num de Seymour Martin Lipset, famoso e premiado sociólogo norte-americano de origem russa, aqui resumido: afirma ele que os USA, politicamente, são a mais perfeita representação  do anti-estatismo, sendo, como tal, o apanágio do  individualismo e de sistemas como o da meritocracia e do dinamismo econômico, itens que explicariam a inexistência de
S.M. Lipset,
organizações socialistas no país. É de Lipset a definição dos cinco pilares que definem não só o credo político norte-americano, único dentre todos os demais, segundo ele,  e a sua posição como país líder: liberdade, igualitarismo, individualismo, populismo e
laissez-faire, cinco pilares que apontam para o caráter excepcional da democracia americana. Lipset deu à sua teoria no nome de Excepcionalismo Americano. Esta doutrina, ainda segundo ele, já estaria antecipada numa famosa asserção de Abraham Lincoln: os Estados Unidos são quase uma nação eleita (por Deus).

Desnecessário enfatizar o quanto estes modos coletivos de expressão de soberba vêm contribuindo para causar desde, antipatias e conflitos localizados. revoluções e guerras, inclusive mundiais, sempre ligados obviamente a problemas político-
            KU-KLUX-KLAN
econômicos de toda espécie.  Os exemplos abundam: o sistema de castas (varnas) na Índia, o apartheid na África do Sul, a Ku-Klux-Klan dos USA, xiitas x sunitas no mundo islâmico, judeus x muçulmanos, católicos e protestantes em várias partes do mundo, judeus em permanente conflito com os muçulmanos, fundamentalismo radical religioso ou étnico, o separatismo (a parte mais desenvolvida de um país que quer se separar da menos desenvolvida) etc.

Este último “pecado”, o separatismo, cuja prática vem aumentando muito nos tempos modernos, como seu próprio nome indica, tende levar os seus praticantes a se fixar naquilo que é considerado como princípios fundamentais quando da fundação de determinados grupos, os certos, como acreditam. No fundo, toda discussão fundamentalista é também, como se pode ver, uma questão semântica.  O termo fundamentalista refere-se ainda a qualquer grupo dissidente que resista a identificar-se com o grupo maior do qual diverge. A sua divergência se deve quanto à interpretação dos princípios que deram origem à fundação do grupo. Os fundamentalistas imputam ao outro grupo maior o ter-se desviado dos princípios básicos, sempre uma corrupção,pela adoção de princípios alternativos hostis ou contraditórios à identidade original. 

A soberba procura sempre se manifestar de algum modo, exibir-se, seja individualmente ou em grupos, através de coletividades, sendo evidentemente mais perigosa quando sob esta última forma. Individualmente, é comum encontrarmos a soberba de braços dados com a inveja. Se um indivíduo tomado pela soberba se depara com outro, mais poderoso que ele, na sua esfera de atuação, não há como impedir que a inveja passe a roê-lo interiormente, situação sempre vivida muito dolorosamente. Comum o caso em que o invejoso procure fazer mal ao outro e que, não o conseguindo, ele acabe se autodestruindo.   
      
A soberba produz às vezes muita satisfação naquele que a experimenta, sentimento, neste caso, ostentado como dignidade pessoal. Isto é raro, mas acontece. Esta e outras nuances envolvidas nas situações ora descritas podem nos levar a considerar a soberba, o orgulho, de duas maneiras, positivamente como brio, sentimento de honra, de amor-próprio ou, negativamente, o mais comum, como arrogância, altivez. 


ZEUS , MÁRMORE , LOUVRE
Um dos melhores exemplos da soberba nos vem da mitologia grega, do chamado complexo de Zeus. Características de amplitude e de poder absoluto nos são fornecidos por esta divindade quando estudamos as suas variadas formas de expressão através dos papéis que assume no mito como senhor inconteste do Olimpo. O complexo de Zeus, basicamente, pode ser descrito como uma forte inclinação que algumas pessoas demonstram  no sentido de assumir sempre uma posição de autoridade máxima, inibindo, inclusive à força, se necessário, quaisquer tentativas de independência  de pessoas que vivam ou estejam dentro dos seus domínios. Duas frases definem, à perfeição, este complexo como ilustração da soberba: 1) Só há dois pontos de vista: o meu e o errado; 2) fora de mim, não há salvação. 


QUANDO A ESTRELA DA MANHÃ CANTOU
( WILLIAM  BLAKE , 1757 - 1827 )

Quanto ao viés religioso, a soberba tem em Lúcifer o seu melhor exemplo.  O nome vem do latim, aquele que transporta a luz,  (lux mais ferre). Em hebraico,   seu nome era  heilel ben-shahar, com o sentido de o filho do negrume. O nome, em grego, foi aplicado ao planeta Vênus como a estrela da manhã, a estrela d’alva, Eosphoros. A partir da Idade Média, o nome foi também aplicado a Satã. A partir da expressão astro brilhante, numa tradução (de Antonio Pereira de Figueiredo) da Vulgata, Lúcifer é encontrado em Isaías (14:12), aqui registrado o versículo: Como caíste do céu, ó Lúcifer, tu que ao ponto do dia parecias tão brilhante? Como caíste por terra, tu, que ferias as nações?   


LÚCIFER
(W.BLAKE ,1757 - 1827)
Ao ser exilado, Lúcifer levou consigo uma hoste de anjos, caídos como ele. A revolta de Lúcifer contra Deus começou quando ele se recusou a prestar homenagens a Adão, para ele uma simples criatura feita de pó, enquanto ele, Lúcifer, era feito de luz, da mesma matéria da qual Deus era feito. Consta que Lúcifer também ficou com ciúmes de Adão porque Deus lhe deu uma companheira, que ele cobiçou.

Desde então, foram sendo atribuídos, sobretudo pela tradição judaico-cristã, principalmente pela primeira, aos operadores do Outro Lado, desdobramentos das suas principais figuras, segundo o aspecto que se desejasse representar, nomes como Belial, Belfegor, Belzebu, Asmodeu, Bael, Astarot, Beemot, Furfur, Leviatã, Moloch, Mammon, Baphomet, Beherit, Mefistófeles e outros, todos condôminos, prepostos ou asseclas dos Senhores do reino do Mal.
ASMODEU
Asmodeu, por exemplo, é um príncipe identificado com Samael, que, como serpente, seduziu Eva. Tem três cabeças taurinas, corpo humano, deita fogo pela boca de carneiro. Seus pés são de águia e tem cauda serpente. Cavalga um dragão e comanda setenta e duas legiões infernais. Superintende as casas de jogo, semeando a miséria, o horror e a dissipação. Segundo os judeus, Salomão conseguiu submetê-lo momentaneamente, obrigando-o a ajudá-lo na construção do templo. Leviatã é um monstro que aparece no Livro de Job. A tradição rabínica metamorfoseou-o num demônio andrógino. No Inferno, tem a patente de grande almirante. Segundo a tradição judaico-cristã, a tutela dos sete pecados capitais está assim distribuída, a partir do reino do Mal: Soberba, Lúcifer; Avareza, Mammon; Luxúria, Asmodeu; Inveja, Leviatã; Gula, Belzebu; Ira, Satã; e Preguiça, Belphegor.

LÚCIFER , O ÚLTIMO JULGAMENTO ( GIOTTO )

O pecado do orgulho ficou para sempre ligado à imagem de Lúcifer, belo e sábio, um modelo de perfeição, transformado num ser diabólico, símbolo da arrogância, da jactância e da vaidade intelectual. A arrogância é ato de alguém de atribuir a si direito, poder ou privilégio devida ou indevidamente. É uma qualidade ou caráter de que, por suposta superioridade mental, alguém assume atitude prepotente ou de desprezo com relação aos outros. É por isso que o oposto da soberba é a humildade.


ADÃO E EVA,1530(LUCAS CRANACH)
Santo Tomás de Aquino considerava a soberba um pecado tão grave que, quando o discutiu, isolou-o da série, tratou dele separadamente. Foi o pecado do orgulho que levou Eva a comer do fruto proibido. No Gênesis se diz que quando Eva viu a árvore do paraíso e ouviu o que dela falou a Serpente achou-a tão atraente aos seus olhos e desejável que não resistiu. Igualar-se-iam, ela e Adão, a Deus, ao comer dos seus preciosos frutos. 


A ilustração do pecado da soberba com a pretensão como a que Eva demonstrou, a de igualar-se aos deuses no campo do conhecimento, não era nova. Esta pretensão, por exemplo, como nos revela a mitologia grega estendia-se a outras manifestações que não só a intelectual. Na mitologia grega, podemos encontrar vários exemplos de heróis ou não que procuraram se igualar aos deuses ou mesmo superá-los, no plano da beleza física, da perícia na confecção de trabalhos, da esperteza, de alcançar alturas ainda mais elevadas que o Olimpo, de se oporem ou se negarem a aderir a cultos patrocinados pelos deuses etc. A esta pretensão, como já se disse, os gregos davam o nome de hybris, incorrendo neste “pecado” personagens como Sísifo, Cassiopeia, Aracne, as Piérides, Tântalo, Minos, Pasífae, Belerofonte, Ixion, Orfeu, Sísifo, Lábdaco, Narciso e muitos outros. 



Para discutir a soberba, Santo Tomás (De Magistro) toma os conceitos de desejo, de glória e de excelência. Com base em Santo Agostinho, ele nos diz que se o desejo se volta para qualquer bem naturalmente desejado de acordo com a regra da razão, esse desejo será reto e virtuoso. Ao contrário, o desejo será pecaminoso se ultrapassa essa regra ou se não chega a alcançá-la. São Tomé nos dá um exemplo: o desejo que o homem tem de conhecer as coisas sob a orientação da reta razão é
SÃO PAULO
( EL GRECCO , 1541 - 1614 )
louvável, mas querer mais é ir na direção da
curiositas, sempre um pecado mortal. Do mesmo modo, ficar aquém do que é possível conhecer retamente é cometer o pecado da negligentia. Todo homem, continua Santo Tomás, divinamente informado, tende a buscar a excelência no que faz. Ele cita, para isso, São Paulo (Coríntios): Quanto a nós, não nos gloriemos sem medida, mas segundo a regra que Deus nos deu como medida. O pecado em relação a essa regra é o distorcido desejo de grandeza, como diz Santo Agostinho (A Cidade de Deus). 

O pecado da soberba, da vaidade ou do orgulho leva o que o comete a buscar uma evidência, um esplendor alimentado pelo desejo de notoriedade, sendo sempre ignominioso por isso. Santo Tomás nos fala que a glória pode ser vista sob três aspectos. No seu nível máximo, ela é clara notoriedade visível por todos, pelas multidões. Num segundo nível, temos o bem de um que se manifesta a poucos ou a um só. Num terceiro nível, quando a própria pessoa, a sua maneira de viver, é fonte da sua própria notoriedade.

Qualquer que seja o enfoque, segundo Santo Tomás, a finalidade da vaidade é a manifestação da própria excelência, um comportamento que gera frutos. A vaidade chama-se jactância quando ela se manifesta por palavras. Quando temos a manifestação de fatos verdadeiros que despertam uma certa admiração estamos diante da presunção da novidade (o novo sempre chama mais a atenção). Se a manifestação se dá por fatos fingidos, temos a hipocrisia, característica do que é falso, dissimulado. O hipócrita carece de sinceridade, é fingido. Em grego, hypocrites, etimologicamente,  é aquele que  dá uma breve resposta; aplicava-se a palavra, de modo especial, ao ator de teatro, aquele que dava respostas ao coro. Depois, hypocrites passou a ser usada para designar aquele que não exprimia os seus verdadeiros sentimentos. 


O   ECLESIÁSTICO
Um dos textos religiosos mais importantes sobre a vaidade é O Eclesiastes, que faz parte do Antigo Testamento. Kohelet é o seu nome em hebraico, uma coleção de provérbios e máximas que constituem um capítulo importante da chamada literatura sapiencial. O texto ensina a moderação, fala das virtudes da vida familiar e do temor de Deus. Já o texto Eclesiástico (Ben Sira) discorre sobre a necessidade que o homem goze os prazeres do mundo com moderação. O primeiro livro acima citado ten a su autoria atribuída tradicionalmente ao rei Salomão, filho de David e de Betsabá, famoso por sua sabedoria, terceiro rei de Israel. Segundo a tradição, Salomão escreveu O Cânticos dos Cânticos na juventude, Os Provérbios na maturidade e O Eclesiastes (ecclesia, em latim, quer dizer assembleia, reunião  e depois comunidade cristã. igreja) na velhice. 

Os temas principais de O Eclesiastes são a vaidade das coisas humanas, o desapego dos bens terrestres, a negação da felicidade dos ricos e a tese de que os bem-aventurados serão os pobres. As ideias do livro tiveram muita difusão por volta do séc. III aC, quando a Palestina era então uma colônia macedônica, obrigada a pagar pesados tributos. O autor procura provar que a vida e a felicidade não estão na posse dos bens terrenos, no poder, nos prazeres, na ciência ou no status social. O texto procura sobretudo provar que a vida é um dom gratuito de Deus e que deve ser partilhada por todos com justiça e fraternidade.

Uma visita ao mundo grego nos ajudará, sem dúvida, a entender um pouco melhor o pecado da vaidade, embora vivamos tão longe da antiga Grécia. Aparentemente diferentes daqueles dos gregos, nossos valores, ideias, princípios e, sobretudo, nosso universo linguístico, quando hoje falamos da soberba, se assemelham bastante, sendo muito útil aproximá-los para o fim aqui colimado.

Segundo a mitologia grega, a Fama (Pheme  ou Phama , em grego) é uma filha de Geia, a Grande-Mãe, que a gerou sozinha, depois do nascimento dos gigantes. Outros a consideravam como filha de Elpis, a Esperança, sendo muito solicitados os seus serviços pelos orgulhosos de toda a espécie. Um bom exemplo do que aqui apontamos pode ser encontrado na poesia épica da literatura de muitos países na qual a Hybris e a Fama tiveram que se defrontar.

Hoje, com sabemos, há agências de publicidade especializadas na promoção do sucesso de pessoas. Elas têm por objetivo a colocação em evidência da pessoa a que prestam serviços, da melhor maneira possível, interagindo com o público. Nessa área, atua também o chamado personal coach  que treina o seu cliente para que ele “possa ir além na vida”.Ele tira a pessoa do estado (insatisfatório) em que ela se encontra (pessoal, profissional, social etc.) e faz com ela alcance o estado desejado. 

OVÍDIO
Na antiguidade, a Fama, com múltiplos olhos e ouvidos, vivia num palácio de bronze com milhares de orifícios, através dos quais captava qualquer som que fosse produzido no universo, o mais imperceptível, e, a seu critério, o amplificava, divulgando-o pelos quatro cantos do mundo. Era dotada de asas que lhe permitiam se deslocar com extrema rapidez
VIRGÍLIO
para conferir a verdade de tudo o que lhe chegava. Era obrigada a tanto, pois cercavam o seu palácio entidades perigosas, a Credulidade, o Erro, a Falsa Alegria, o Terror, a Sedição e os Falsos Boatos. Entre os latinos, Ovídio e Virgílio falaram dela. Este último a descreveu como uma deusa temível de quem nada escapava. 

Nada mais natural que Fama, na literatura grega, personificasse aquilo que os gregos chamavam de reputação, renome (kléos, em grego) e passasse a desempenhar um importante papel no mundo heroico. Para entender como isto se deu é preciso entender que o herói, no mundo homérico, era aquele homem que ultrapassava as suas limitações históricas e geográficas em direção de uma dimensão universal. Esta dimensão, embora considerada por muitos um desejo de transcendência, provocado por um impulso interior, tinha também um forte componente, o desejo de glórias mundanas.

A hipótese acima parece se confirmar como regra quando examinamos mais de perto a vida de muitos heróis gregos. Tome-se, por exemplo, o mito dos argonautas, o da conquista do velocino de ouro e a história de Ulisses como a encontramos na Odisseia. Ao falar de Ulisses, muitos mitógrafos, filósofos, poetas, artistas, escritores, professores de literatura e outros mais sempre procuraram fazer de Ulisses um símbolo do ser humano inquieto, um ideal de transcendência, ávido de conhecimentos novos, um eterno viajante. Ora, não será preciso muito, desde os primeiros cantos do poema, para que uma leitura mais atenta e menos fantasiosa da Odisseia prove o quão inconsistentes são grande parte dos textos produzidos sobre o rei de Ítaca. Como está claro na Odisseia, Ulisses rejeitou a imortalidade que lhe foi oferecida por Calipso, preferindo voltar a Ítaca para retomar o seu lugar entre os homens, o que lhe garantiria uma consideração sem igual.


CALIPSO  E  ULISSES , C.1616 ( JAN BRUGEL O VELHO )  

Outro aspecto da personalidade do herói grego, acima mencionado, era o de que ele se considerava como detentor natural de um kléos, ou seja, de uma glória e de um renome amparados por sua posição social (era sempre um membro da elite dirigente), pela sua habilidade pessoal (areté) e pela sua honorabilidade, honra pública (timé), que deveriam ser cantadas. Poetas e aedos existiam para isso. Este foi o dilema que se apresentou a Ulisses na ilha de Calipso, quando a ninfa quis transformá-lo num imortal, desde que ele se dispusesse a ficar com ela em Ogígia. A opção então se apresentou ao nosso herói: a imortalidade anônima ou uma existência mortal, com todos os riscos que esta última pudesse oferecer, mas, no caso, um herói entre os homens. No primeiro caso, manter-se-ia vivo para sempre, honrado pelos seus pares, mas sentindo-se como Aquiles quando o encontrou (o seu eidolon) no Hades. O maior guerreiro dos aqueus transformara-se num “sem-nome”, uma sombra (skia), como eram chamados todos os que se encontravam no reino infernal, porque haviam perdido o seu corpo físico, que lhes dava uma identidade. 

Como se sabe, em todas as culturas, a história dos heróis, do nascimento à morte, é revestida de muitos traços fantásticos, extraordinários, que vão sempre além da esfera do humano. Os gregos sempre procuraram transmitir para as gerações futuras uma visão sublime desses personagens, muito ampliada e mesmo deturpada pelos que os estudaram ou usaram como temas de suas obras. 

AQUILES  E HEITOR ( PALÁCIO
NACIONAL DA AJUDA, LISBOA)
Na realidade, porém, os heróis gregos nunca foram tão "heroicos" como muitos dos que nos são apresentados como tal, principalmente nos nossos tempos pela comunicação de massas (publicidade, revistas, histórias em quadrinhos, TV, cinema, Internet etc.). Se formos conferir, notamos que no geral os heróis gregos são marcados por uma forte dualidade, por inúmeras contradições. Eram apresentados como invulneráveis, mas podiam ser abatidos (Aquiles, Heitor). Tinham graça e beleza, mas eram monstruosos: o gigantismo de Hércules, de Ajax Telamônio). Eram, na realidade, teriomorfos, andróginos, mudavam de sexo, adotavam o travestismo; tinham anomalias físicas (a tripla dentição de Hércules), deformações (Édipo). Com muita facilidade eram tomados por demônios ou espectros como Lyssa (Loucura), Ate (Erro), Eris (Discórdia), no que acompanhavam as próprias divindades. A maior parte dos heróis gregos tem um comportamento sexual extravagante, são estupradores, chegados à homossexualidade, atacam os próprios deuses, tentam violentar as deusas, têm acessos de cólera sem nenhum motivo, desrespeitam as normas de convivência e as regras da hospitalidade. 

Os heróis gregos, entretanto, são exemplares para nós enquanto simbolizam propostas de impulsos evolutivos e revelam também a situação de conflito do psiquismo humano pelos combates que nele se travam entre as forças da luz (atributos solares) e as forças das trevas, lunares (monstros, gigantes, dragões, imaginação descontrolada), que lembram as tendências regressivas, incansáveis, sempre a persegui-los. Faz parte da vida do herói, obrigatoriamente, a agonística, ou seja, a vida como luta, tanto interna como exteriormente. Sempre presente a ideia da criação de novas formas de relacionamento com o mundo a partir dos conflitos internos, as suas conquistas sempre ameaçadas de dissolução. Um processo de interiorização e de exteriorização ininterrupto. Pressões internas, reais ou imaginárias, temores, fobias, tentações, dúvidas, idiossincrasias. De outro lado, o mundo com os seus monstros, dragões, seres ameaçadores, sedutores, malfeitores. Sempre presentes também as ameças, conscientes ou não, como a vaidade, o orgulho, a fama, o renome, a consideração pública.

Aos poucos, no correr dos tempos, o sentido da palavra herói foi se ampliando, admitindo-se o seu uso para designar pessoas que têm um destino incomum. Do séc. XVIII em diante, com o Romantismo, em especial, uma nova dimensão foi incorporada à palavra. Determinados personagens das artes que problematizavam a sua relação com a sociedade começaram a ser chamados de heróis, nada tendo de exemplares na maioria dos casos. 

A sociedade moderna, principalmente a partir do séc. XX, saturada de profundo irracionalismo, vem há muito  tornando heróis, celebrities de todo gênero, muitas pessoas que orgulhosamente se destacam do coletivo, que “brilham” por um brutal egoísmo, por excessos individualistas, pela violência. Ladrões que vivem nas altas esferas econômicas, donos de redes de comunicação, banqueiros, demagogos, estelionatários, políticos enganadores, corruptos eméritos, falsificadores de todas as espécies, ricaços, conhecidos sonegadores, esportistas dopados, artistas de TV, do cinema, do show business, fabricantes de quinquilharias eletrônicas, uma extensa galeria enfim, promovida em escala mundial pelos meios de comunicação, pela mídia eletrônica atingiu hoje o status heroico para a grande massa globalizada, idiotizada como sempre. São os soberbos.

Antes de prosseguirmos, é preciso, porém destacar que no geral as visões “celeste” e “terrestre” do herói na mitologia grega são muitas vezes antagônicas. Isto porque se ele representa num primeiro momento um ideal de força combativa, está presente sempre nele, como já vimos, concomitantemente, a tendência ao excesso, à desmedida, que o leva a querer competir, igualar-se ou mesmo superar os deuses. 


HÉRCULES
( MUSEI  CAPITOLINI )
O herói, nos combates, vive num estado de cólera guerreira, expressão mágica para caracterizar a sua hybris, a sua orgulhosa desmedida heroica; como tal, ele pode ter direito, segundo os humanos, às suas tendências passionais. A figura heroica que melhor tipifica esta oscilação entre o anthropos e o aner, entre o homem ou sub-homem e o herói, o super-homem, sem jamais conhecer o seu metron é, sem dúvida, Hércules. Se para os humanos o culto heroico pode admitir este tipo de hybris, de orgulho, sob o ponto de vista olímpico tal não acontece. Em que pese o fato de Hércules ter sido arrebatado por seu pai, Zeus, quando de seu suicídio apoteótico, para ir viver entre os deuses, do ponto de vista do Olimpo ou do Hades, as suas façanhas sempre foram tidas como gestas ignominiosas e seu destino miserável. 

Esta também seria indiscutivelmente a visão que teríamos das façanhas de Hércules e de outros heróis se as considerássemos sob o ponto de vista da doutrina dos pecados que os santos padres da Igreja estabeleceram. Ainda que condenáveis sob muitos aspectos, tais façanhas, contudo, sempre ajudaram aqueles que delas se aproximaram a se conhecer um pouco melhor, tanto a si mesmos como aos outros, além, é claro, de constituírem, na mão de artistas maravilhosos, como Homero, Hesíodo, Ovídio, Rembrandt, Mahler, Visconti, Michelangelo, James Joyce, Leonardo da Vinci e inúmeros outros um grande e exemplar patrimônio cultural. O que diríamos então se aplicássemos os mesmos pontos de vista da mesma doutrina dos pecados para falar daquilo que muitos indivíduos procuram hoje viver quando buscam, desesperadamente, através da tecnologia, o seu momento de glória instantânea, ao produzir selfies, fotografias ou o seu perfil numa linha do tempo, com as irrelevantes, nada exemplares e descartáveis histórias do seu cotidiano ilustradas com as suas lamentáveis e desinteressantes fotos?





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