quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

NIX E SEUS FILHOS



NIX (PEDRO AMÉRICO, 1843 - 1905)

Enquanto Urano fecundava Geia, conforme registra Hesíodo na Teogonia, Érebo e Nix, as trevas inferiores e as trevas superiores, respectivamente, as duas últimas entidades a sair do Caos, unidas, geravam Éter e Hêmera . O primeiro, cujo nome lembra queimar, brilhar (aithein), ocupou logo a camada superior do cosmos, região luminosa de energia puríssima, onde viviam os deuses.

Platão, quando no Crátilo fala dos astros e dos elementos, nos revela que o Éter era uma forma mais pura do Ar (Aer). Dizia mais (Fedon) que a natureza da alma dos seres humanos era semelhante ao ar. A tese era a de que o corpo poderia perecer, mas a alma (psyche) voltaria à parte mais pura do Aer, isto é, ao Éter (Aither).

Estas ideias são encontradas também no pitagorismo: como os corpos celestes (ouranioi) “viviam” no Éter, no mundo supralunar, as almas, depois da morte, seriam absorvidas por esses corpos. Era a religião astral dos pitagóricos. O espaço entre a Lua e a Terra passou assim a ser ocupado por daimones e heróis, intermediários entre os humanos e as divindades.



Aristóteles nos afirmou que o Éter era o quinto elemento (quinta essentia), eternamente em movimento circular, como substância dos céus. Esta afirmação, como a platônica, nos aproxima do conceito de akasha, o quinto elemento da cosmologia do Hinduísmo, ao lado do fogo, da terra, do ar e da água. O akasha é, para os darshanas (escolas filosóficas) hinduístas, a existência onipresente, que tudo impregna. Tudo que toma uma forma provém do akasha, através do prana, força também onipresente, que confecciona o universo. No começo da criação só existe o akasha, ao final da criação tudo volta a ele.


Para os gregos, tanto no mito como na filosofia, o Éter ficava acima do Ar (Aer), separando-os a Lua. Esta separação significava que tudo o que entrasse no plano da matéria (abaixo da Lua) ficava submetido à lei do vir-a-ser, à mudança, à morte. Acima, no Éter, região dos deuses, nada mudava. A Lua, por sua vez, ao simbolizar o tempo que passava, medido por ela, era, desde a pré-história do homem, a governante da lei das variações periódicas.

Hêmera (fig.esq.) é o Dia (feminino em grego); com as suas quatro etapas, nascimento, crescimento, plenitude e declínio (seis, doze, dezoito e vinte e quatro horas), ele sempre representou para os gregos os quatro subciclos da Lua (nova, crescente, cheia e minguante) e do Sol (primavera, verão, outono e inverno), todos ligados, por sua vez, às quatro direções do universo: leste, norte, oeste e sul. Foram estas analogias, dentro de um sistema de equivalências estabelecidas a partir do dia, que permitiram aos astrólogos da antiguidade criar as chamadas direções simbólicas (primárias, secundárias e terciárias).

Para algumas cosmogonias, ao aparecimento do mundo visível, surgido da obscuridade primordial, devidamente organizado através de uma longa evolução, dá-se o nome de kosmos, palavra grega que significa ordem, boa ordem. As entidades primordiais, para essas cosmogonias, eram potências de engendramento que geravam por cissiparidade e/ou por copulação.

Nix, a Noite, entre os antigos gregos, sempre teve controle sobre doenças, sofrimentos, pesadelos, angústias, sonhos, infelicidades, disputas, guerras, assassinatos e morte. Tudo o que era inexplicável e temível para o ser humano vinha dela de algum modo. Na Grécia antiga, as confrarias órficas foram na direção contrária deste entendimento, honrando-a de várias maneiras, santificando-a, porque, para elas, Nix trazia a bênção dos deuses. Símbolo de todas as germinações, de todas as gestações, Nix alimentava os luminares do céu e tudo o que a Terra produzia. O seu simbolismo tem correspondências com a obscuridade, com o negro, com a ignorância, com o inconsciente e, por essa razão, com todas as possibilidades da existência.


Na alquimia, Nix se liga à nigredo, ao negro, promessa de renascimento, como no Egito, por exemplo, onde esta cor era a de Osiris (fig.dir.), deus dos mortos, e de Anubis, deus do embalsamamento e condutor das almas. Ao dar origem ao dia (ao consciente), o negro é símbolo de fertilidade, cor da terra úmida e escura e das nuvens prenhas de chuva. Daí, a segunda fase da alquimia, albedo, palavra que lembra branco, como a primeira luminosidade do céu, que antecede a aurora e o aparecimento do Sol.

Nix, para os gregos, morava num grande palácio com seu filho Hêmera, para os lados do poente. Quando o filho chegava, ao entardecer, ela saía num carro enorme, puxado por quatro cavalos negros, na companhia de muitas estrelas, atravessando os céus. Quando seu filho começava a despertar, ela então retornava ao seu palácio. Era Nix representada por uma bela e grave mulher, sempre usando uma longa túnica, um véu salpicado de estrelas cobrindo-lhe a cabeça. Às vezes, ostentava asas, levando nos braços duas crianças, uma branca, personificando Hipnos, o Sono, e outra negra, personificando Thanatos, a Morte.




Nix tem um duplo aspecto. De um lado, trevas, impossibilidade de ver, insônia, desorientação, descaminhos, perdição; de outro, sono reparador, esperança, mãe do bom conselho (quando então era chamada de Euphrone), expectativa de novos caminhos. De um modo geral, porém, associada à Lua, Nix sempre esteve ligada às aparições noturnas, sobrenaturais, a fantasmas, vampiros, espectros, às almas dos mortos e ao Diabo. Em muitas histórias, Nix aparece como divindade tutelar das feiticeiras e das bruxas e responsável pelo crescimento da ervanaria por elas usada nas suas práticas.


Antigas lendas cristãs medievais nos dizem que houve um tempo em que não havia noite. O Diabo, que se sentia muito incomodado por ter que cometer os seus malefícios à luz do dia, queixou-se a Deus. Desejando Deus experimentar os humanos, atendeu-o, criando a noite. Desde então o Diabo se aproveita das trevas para realizar as suas más ações contra a humanidade.

Para Hesíodo, Nix, depois de ter gerado Éter e Hêmera com seu irmão, Érebo, gerou sozinha, sem o concurso de ninguém, uma importante descendência. De início, os gêmeos Thanatos (fig.esq.) e Hipnos. O primeiro tem seu nome ligado a uma idéia de extinção, de dissipação e, quanto ao ser humano, da transformação da sua alma numa sombra. A palavra toma também o sentido de ocultação, de algo que vai se desvanescendo. Este sentido se devia ao fato de que o morto se tornava um “eidolon”, um corpo insubstancial, evanescente, uma sombra (skia). Fig.dir.: A Morte, O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman.
Insensível, dizia-se que Thanatos (Mors para os latinos) possuía um coração de ferro e entranhas de bronze. Era uma espécie de gênio da morte que estava sempre presente quando Átropos, uma das Moiras, punha fim à vida de alguém, cortando o fio que o mantinha preso à existência. Thanatos era, neste sentido, o aspecto perecível e destruidor da vida. Era a divindade que introduzia o ser humano em mundos desconhecidos, remetendo sua alma (psyche) ao Hades, lembrando-nos desse modo que a morte não era mais que um rito de passagem. Possuía assim Thanatos também o poder de regenerar. Quando, porém, era decretado o fim daquele que orientou a sua vida só no sentido material, sua presença era espanto, terror, olhos esbugalhados, sofrimento. Ele podia ser visto também como aquele que libertava dos sofrimentos e das preocupações, não causando sua ação um fim em si, mas uma indicação de que a vida e a morte eram complementares.


Representado por uma coluna ou por um remo partido, por uma urna, por uma vela arriada, por um esqueleto, por uma serpente, por um animal psicopompo, por um cavaleiro, pelo décimo terceiro arcano do Tarot, por uma dança macabra, por uma foice, Thanatos é sempre o fim de alguma coisa, de um ser humano, de um animal, de uma planta, de uma amizade, de um amor, de uma civilização, de uma divindade, de uma época, de um belo dia... É sempre o aspecto destrutivo e perecível de tudo que tomou forma. Os antigos gregos costumavam também representar Thanatos por uma criança negra, com os pés tortos, acariciada por Nix, sua mãe. Representados às vezes juntos, Thanatos e Nix têm como atributos asas e fachos derrubados. Junto deles uma urna e dela uma borboleta alçando vôo, símbolo de esperança de uma outra vida.
A rigor, Thanatos nunca foi um agente causador da morte. Sua presença sugere sempre uma ideia de cessação, de descontinuidade. Os poetas trataram-no melhor, vendo-o como uma espécie de anjo que se aproximava suavemente do moribundo para ajudá-lo, acariciando-o, fechando-lhe os olhos, distendendo os seus membros. É por esta razão que muitos autores viram Thanatos como uma espécie de anjo da morte benevolente, da morte tranquila, enquanto as Keres, suas irmãs, representariam a morte violenta.

Não posso a esta altura deixar de mencionar como este aspecto amoroso de Thanatos foi captado por Robert Altman no seu último filme, A Última Noite. Neste belíssimo filme, Altman dá o nome de Asphodel (nome de uma flor do inferno) ao anjo da morte (Virgínia Madsen no filme). Nos USA e no Brasil a crítica não alcançou Asphodel, vendo-a apenas como uma “mulher má, perigosa”, não lhe dando a mínima importância. Perdeu-se toda a riqueza do personagem, o amoroso tom tanático que ela deu ao filme, um personagem construído magistralmente, frise-se mais uma vez, por Altman conforme inspiração do mito grego.

O aspecto amoroso de Thanatos foi explorado principalmente pela escultura no período clássico da história grega, com base em propostas de algumas correntes filosóficas (estoicismo), salientando-se como atraente a morte que levasse aos Campos Elíseos, departamento do Hades, para onde iam as almas dos justos, ficando lá a aguardar sem sofrimento algum, num lugar paradisíaco, o seu retorno à existência. Esta visão de Thanatos inspiraria mais tarde a arte mortuária romana, que erotizou a sua imagem, transformando-o num belo efebo, numa espécie Eros alado.



Ao que parece, em tempos muitos remotos, as figuras de Hermes, na sua função de psicopompo, e de Thanatos se confundiam. Psicopompo, literalmente o transportador de almas, era o nome que se dava ao deus Hermes como condutor das almas ao Hades, na forma de “eidola”, seu lugar de permanência provisória ou definitiva, conforme os crimes e pecados cometidos. Aos poucos, depois, os papéis se definiram melhor, assumindo cada um dos deuses uma função específica.

Thanatos vivia no Hades, no mundo subterrâneo, um mundo sempre assustador para o homem comum. Seu nome, por isso, como o de todas as entidades infernais, aliás, era raramente pronunciado. Em antigas esculturas, antropomorfizado, era uma figura que denotava sempre insensibilidade, carregando uma foice nas mãos, para lembrar aos humanos que eles eram ceifados indiferentemente, em multidão, como as ervas dos campos.



As relações entre a mitologia e a psicologia moderna são muitas estreitas como se sabe. O mito de Édipo, personagens míticos como Eros e Thanatos, por exemplo, ocupam lugar importante na psicanálise. Não será preciso muito esforço, por outro lado, para se perceber o quanto a chamada psicologia profunda de Jung tem os seus pés fincados no mundo mítico. É a partir destas constatações que quero destacar como a psicanálise freudiana se aproveitou de Eros e de Thanatos, dando a ambos dimensões e alcance muito importantes, principalmente na nossa chamada civilização ocidental (fins do séc. XVIII em diante). 
Foi com base nesta visão que Thanatos passou a representar as forças da destruição, em variadas formas, presentes em toda dialética: amor-ódio, produção-consumo, criação-destruição, anabolismo-catabolismo, tese-antítese, inspiração-expiração. É Thanatos a solutio na máxima alquímica solve et coagula. A morte está sempre na constante luta entre tendências opostas presentes na dinâmica universal. Thanatos vem como doença, catástrofe natural, acidente, peste, epidemia, corrupção política, violência social, tráfico e consumo de drogas, álcool, degradação ambiental, casos em que seus agentes não são só os vírus, as bactérias, os micróbios, os agentes infecciosos de toda espécie, mas, sobretudo, o ser humano, o grande predador.

Uma das formas mais escandalosas e contundentes pela qual Thanatos se manifesta é a autodestruição, a extraordinária propensão que o ser humano tem de se aliar, no mais das vezes inconscientemente, às forças internas (que estão dentro dele) e as externas (do mundo à sua volta) no ataque à sua existência. Esta propensão é um notável fenômeno biológico e psicológico.

De um modo geral, todo ser humano acredita na sua autopreservação, no desejo natural que julga ter de prolongar a sua vida. O Direito, por exemplo, criou juridicamente o chamado estado de necessidade, que exclui a ideia de crime, uma figura para confirmar essa crença. Todavia, não é isto que acontece quando olhada a questão mais de perto. Descobrimos, espantados, estarrecidos, que muitas pessoas vão ao encontro de Thanatos. Gente que se destrói, que faz de sua vida um inferno, que se mata lenta ou rapidamente, pela comida, pelo álcool, pelo consumismo, pela moda, pela religião, pelos remédios, pelo tipo de relações pessoais que estabelece.



Freud chamou esta tendência de instinto da morte. Este instinto, já diziam os gregos, existe em todo ser humano com o nome de instinto de destruição, a ele se opondo o instinto de conservação. Como tendência à destruição, o suicídio é uma de suas formas extremas. Já houve mesmo quem dissesse que o desejo de viver do ser humano só temporária e precariamente triunfa sobre Thanatos.

Eros, como sabemos, é uma força motriz (dynamis) que une tudo e da qual depende a continuidade do universo. É pulsão fundamental da existência. Confunde-se com o primum mobile aristotélico nas primeiras cosmogonias. Freud colocou sob a sua tutela as tendências de conservação, forças que precisam ser ordenadas segundo o instinto, a razão e o espírito, um servindo ao outro. Para representar esta ordenação, os gregos tinham uma figura mítica importante, o centauro Kiron, mestre de heróis: o instinto a serviço do racional e ambos a serviço do espiritual. Se o homem se fixar só na sua vida instintiva e mental, onde vive a maior parte da humanidade, as forças tanáticas acabarão por prevalecer; só teremos disputas, conflitos, guerras, destruição. Se o homem se concentrar mais na vida espiritual, isto é, se trabalhar mais em função do todo do que procurando egoisticamente só o seu proveito, ele equilibrará melhor em si mesmo Eros e Thanatos.

Em qualquer circunstância, o que não se pode esquecer é que o ser humano, como dizem os filósofos da existência, é um “ser-para-a-morte”. A questão toda será, pois, a de controlar, na medida do possível, o aparecimento das forças tanáticas, as forças que operam destrutivamente 
em nós. Uns matam-se mais rapidamente, alguns mantêm o combate, outros, mais raramente, retardam a chegada de Thanatos até muito bem. O certo é que ele sempre estará nos esperando quando nosso hífen (hyphen, em latim, é a pronúncia de duas palavras em um som único; quer dizer juntamente, um advérbio, portanto) terminar, quando a segunda data, que é sempre dele e de Átropos, for acrescentada à do nosso nascimento.

Um dos grandes problemas que a humanidade enfrenta é o do retardamento de Thanatos, o Inevitável, como o chamavam os antigos gregos. Muitas são as atitudes: uns, por exemplo, cortam um membro, retiram um órgão, mutilam-se para se salvar (extirpações, a chamada autodestruição preservadora), outros aceitam a sua responsabilidade pela sua autodestruição, vivendo-a como destino, outros ignoram-na, nada fazem para evitá-la e outros, finalmente, colaboram com ela.

Uma das formas mais alarmantes pela qual Thanatos atua é o consumismo, uma verdadeira praga, flagelo, que a maioria confunde com felicidade (quanto mais 
consumimos, mais somos felizes). Esta praga consumista, nas suas formas mais incentivadas e aceitas socialmente, está nos grandes centros de compra (shoppings), nos esportes, na programação do lazer e das férias, nas viagens, nos feriados e fins de semana, nos vários tipos de balada, noturnas ou não. A distância entre a atitude consumista e a destruição dos recursos naturais, do meio ambiente, da poluição, da degradação da natureza, da invasão dos campos e praias, da violência urbana é mínima.

Há muitas pessoas que não aceitam a sua responsabilidade por se deixarem envolver envolver nestes processos tanáticos. Projetam-na sobre outros, inventam desculpas (afinal, dizem, a gente precisa se divertir!). No caso da autodestruição pessoal, a culpa é sempre de um parceiro, de alguém da família, de um filho, de uma mãe ou um pai, de um chefe ou de “relações que não dão certo porque ninguém me entende!” O que se constata, cada vez mais, é que as formas de autodestruição crescem assustadoramente. “Por que não se suicidam logo?”, pode ser a pergunta. Por outro lado, será possível desviar Thanatos, tornar o encontro com ele mais ameno?
As tendências autodestrutivas escondem-se e se manifestam muitas vezes sutilmente; seu quadro é amplo: podem vir em nome da religião, por práticas ascéticas, por martírios psicóticos, por formas de autopunição agressiva, pelas drogas, pelo álcool, por um comportamento anti-social, por automutilações em nome da moda (piercing), por certos “tratamentos de beleza”, pela mania de cirurgias plásticas, pela simulação de doenças (despertar compaixão), por acidentes propositais, por certos “assuntos de conversa” (falar sobre doenças, tratamentos, terapias e operações realizadas etc.).


Uma das principais formas pelas quais as tendências tanáticas se insinuam atualmente é a depressão, nome que se dá a um estado de desencorajamento, de desinteresse, que decorre de alguma perda, de decepções, de fracassos, apoderando-se daquele que a experimenta sempre uma grande solidão e muito sofrimento. Com ela vem também a prostração física e moral, distúrbio fisiológico e/ou psicológico causado por circunstâncias e acontecimentos que são adversos, a que muitos, sem o saber bem, dão o nome de estresse.

A depressão é hoje um mal universal. No seu centro está a valorização narcísica do homem moderno, instigado a ter, a possuir, a ir, excitado ao máximo pelos meios de comunicação, pela publicidade em todos os níveis. Como não lhe é possível obter em grande parte tudo o que lhe foi imposto como desejo ele se deprime. A excitação e a queda são os dois lados da mesma montanha. Hoje, queremos tudo da vida, não suportamos a dor de não ter, de não possuir, de não ir, de não ser “alguém”, pois só é “alguém” quem consome, quem compra, quem vai ou aparece na TV.


O modelo de consumo, hoje globalizado, juntou a frustração e a depressão. Em hipótese alguma, este sistema que modela os nossos desejos permitirá que sejam fechados os três portões do inferno (o desejo, a ansiedade e a cobiça). Enquanto isso, um número cada vez maior de terapeutas chega anualmente em todo o mundo ao mercado da depressão. A indústria farmacêutica, por outro lado, faz a sua parte, pondo ao nosso alcance as maravilhosas pílulas da felicidade.

Thanatos há muito empresta seu nome à medicina, ao estudo científico chamado Tanatologia, sobre a morte, suas causas e fenômenos a ela relacionados. Com o mesmo nome, a psicanálise procura estudar os mecanismos psicológicos que levam à superação dos efeitos da morte. Tendências suicidas ou ao assassínio recebem por isso o nome de tanatomania.

Hipnos (em grego, dormir, aquietar-se, sossegar), deus do Sono (Somnus para os latinos), vive no Hades. Alado como o irmão, percorre rapidamente os espaços, adormecendo todos aqueles em cujas pálpebras toca com o seu tridente. É pai de Morfeu, o Sonho, que, apesar de poder aparecer sob infinitas formas, costuma se apresentar principalmente sob duas delas, Hypar, o sonho profético, e Oniro, o sonho enganador.

Hipnos era o responsável pelo descanso reparador dos humanos. Era representado muitas vezes por um jovem nu, alado, tocando uma flauta com a qual adormecia os homens. Costumava deixar sempre por onde passava um rastro de névoa. Esta, como se sabe, de cor acinzentada, é um símbolo do incerto, formando uma zona que separa o certo do incerto, o real do irreal. Na mitologia escandinavo-germânica, por exemplo, o nevoeiro pairava sobre as zonas frias e obscuras, na região polar chamada Niflheim. Neste mundo, inacessível aos humanos, reinava a deusa do mundo subterrâneo, Hel. Era para lá que iam as almas dos mortos não eleitos pelas valquírias, para serem os companheiros de Odin na batalha final do Ragnarok.

Como recompensa por serviços prestados (ter adormecido Zeus por duas vezes), segundo algumas versões, da deusa Hera, Senhora do Olimpo, Hipnos recebeu como esposa uma de suas damas de companhia. Para outros, Homero, ela era uma das Cárites, chamada por ele de Pasitea. Com a esposa teve como filhos os “oneiroi”, que ficaram com a missão de distribuir os sonhos. A Ícelo couberam os pesadelos; a Morfeu, os sonhos inespecíficos; Phantaso ficou com a incumbência de criar os objetos inanimados que apareciam nos sonhos; e a Phantasia, a única filha, coube a criação dos monstros, das quimeras e dos devaneios que atuam nos sonhos.


Hipnos prestou também um relevante serviço à Selene: ele prostrou em sono profundo, eterno, na encosta de uma montanha, o belíssimo pastor Endimion, que inspirou à deusa violenta paixão. Tudo para que ela pudesse visitá-lo nas noites de luar. Outra versão nos conta, porém, que quem, se apaixonou por Endimion foi Hipnos, que concedeu ao jovem o dom de dormir de olhos abertos para que ele pudesse ver os olhos do amante.



Hipnos, compadecido de Deméter, socorreu-a num momento de grande dificuldade. Criou para ela uma flor, a papoula, para acalmá-la, fazê-la dormir, quando a deusa, desesperada, percorreu a Terra inteira à procura de sua filha Kore. Desde então, esta pequena flor selvagem, de cor vermelha, passou a ser considerada como o emblema do repouso e do esquecimento, além da consolação, pois o sono é reparador do sofrimento.


Hipnos viveu sempre no seu palácio em paz e tranquilidade, cercado por um silêncio absoluto. Seu enorme leito era cercado por cortinas pretas que impediam a entrada de qualquer som. A região onde se situava o palácio de Hipnos confinava com o rio Lethe, o do esquecimento, que ficava no Hades, o mundo infernal.

Hesíodo, na Teogonia, nos diz que Nix gerou não só Oniro como também a “legião dos sonhos”, isto é, os “oneiroi”, afirmação que conflita com as versões que nos dizem que eles, os “oneiroi”, eram filhos de Hipnos. Desde Homero, a matéria onírica é bastante controversa. Na Odisseia (canto XIX), o poeta considerou os sonhos tanto como realidades objetivas, semelhantes às experiências da vigília, como produtos da vida interior. Para ele, havia sonhos que brotavam de um “portão de marfim”, ilusórios e fantasiosos, e outros que brotavam de um “portão de chifres”, que pressagiavam as coisas futuras se corretamente interpretados.


Já Ambrosius Macrobius Theodosius, gramático latino do séc. V, autor das Saturnalias, consagradas a Virgílio, e de comentários sobre o Somnium Scipionis, de Cícero, dividiu os sonhos proféticos em simbólicos, visionários e oraculares, a eles se acrescentando mais tarde outros, decorrentes de um contacto direto com alguma divindade ou um daimon.

É de se lembrar que os sonhos entraram na filosofia com Heráclito, que os considerava como um aspecto da subjetividade do ser humano. Platão, no Timeu, defende a natureza profética dos sonhos e oferece uma explicação de como eles se manifestam e de sua origem (fígado).

Oniro tinha grande participação nas terapias que se realizavam no santuário do deus-médico Asclépio, em Epidauro. Nas colinas da Argólida, em meio a um bosque de pinheiros e de loureiros, encontramos ainda hoje vestígios desse santuário, onde atuavam sacerdotes-médicos, ao qual acorriam, além de toda a Grécia antiga, muitos visitantes das ilhas do Egeu e da Ásia Menor para buscar a cura de seus males.


No santuário de Asclépio, adotava-se, além de várias práticas terapêuticas, a chamada Oniromancia, a interpretação de sonhos, que os sacerdotes-médicos usavam quando da nooterapia, que tinha a finalidade de curar os transtornos causados por desequilíbrios emocionais, pela mudança de sentimentos (metanoia) Era por este processo terapêutico que o deus Asclépio era chamado de o Deus Toupeira. Este animal, como se sabe, ctônico, tem a capacidade de “ver” no escuro. Assim, como ele pode se movimentar nos labirintos do interior da terra, Asclépio podia se movimentar no interior da mente das pessoas como mestre que as guiava para curá-las de suas paixões. Uma das técnicas, como via privilegiada adotada em Epidauro para investigar a vida subconsciente dos doentes, era exatamente a Oniromancia, a interpretação dos sonhos.

Ao tocar as pálpebras dos seres humanos com o tridente, seu atributo, Hipno os projetava no sono. Invencível dentre os deuses, só encontrava um que lhe fazia frente, Pothos, o deus da Saudade, pois saudosos não conseguimos dormir. Pothos, de potein, desejar algo ausente, provoca lágrimas e soluços, atuando muito na magia, na necromancia (invocação dos mortos) e na poesia lírica. Grande companheiro de Eros, dentre suas grandes vítimas podemos citar Deméter (saudosa de Kore), Aquiles (saudoso de Pátroclo) e Afrodite (saudosa de Adonis).

O tridente é um símbolo da indeterminação, da ausência de limites, e, como tal, aparece na mão de divindades, como Poseidon, que apagam fronteiras, que põem tudo em comum, lembrando a dissolução cósmica. Nas mãos de Hipnos, o tridente embaralha tudo, destrói as aparências, pondo num mesmo nível o passado, o presente e o futuro. Daí o seu nome entre os hindus, trikala, três tempos, usado pelo deus Shiva, a terceira pessoa da trindade hinduísta (aspecto destruidor), antecedido pela segunda (aspecto conservador), Vishnu, e esta pela primeira (aspecto criador), Brahma.

A influência de Hipnos se estendia a imortais e mortais, sendo considerado por estes últimos como um grande benfeitor por lhes dar o merecido descanso e o alívio de suas dores. Hipnos era representado de diversos modos, sendo o mais comum aquele sob a forma de um adolescente que levava nas mãos ou entre os cabelos sementes de papoula. Dentre os deuses era um dos grandes favoritos das Musas pelos sonhos que podia proporcionar.


O fascínio pelos sonhos e a grande necessidade que os homens sempre tiveram de lhes dar um sentido vem de muito longe. Muitos e muitos séculos antes do doutor Freud ter escrito a sua A Interpretação dos Sonhos, os sacerdotes-médicos de Epidauro já trabalhavam com eles. Artemidoro de Dalis, no séc. II dC, fez uma compilação chamada Oneirocritica, reunindo material onírico de vários povos de toda a bacia do Mediterrâneo. Por esse trabalho ficamos sabendo que a interpretação dos sonhos já era uma arte plenamente desenvolvida à época, fazendo parte tanto da adivinhação como da medicina. Aliás, o próprio Freud anotou este fato no seu livro acima mencionado.



Hipnos é responsável por um estado de passividade, chamado hipnose, durante o qual uma pessoa fica entregue ao fascício de alguém ou de alguma coisa. É do deus também, sob o nome de hipnose, o conjunto de técnicas que permite provocar, através de mecanismos de sugestão, o sono artificial ou o estado especial de rigidez muscular.


Geras (A Velhice) é uma filha de Nix que se integrou perfeita
mente ao Hades, passando a viver naquela sua zona preambular a que se deu o nome de Bosque de Perséfone. Representada sob a figura de uma mulher muito velha, coberta com uma única negra, apoiada num bastão, carregando na mão direita a taça do olvido. Ao seu lado, quase esgotada, uma clepsidra.

Geras vive no Bosque de Perséfone em companhia de outras divindades, formas espectrais como Algos (Dor), Phtonos (Inveja), Nosos (Doença), Lyssa (fig.esq.) (Loucura), Ponos (Fadiga), Penia (Carência), Ápate (Fraude), sua irmã, e muitas outras. Esses espectros que lá vivem atacam constantemente o que chamamos de ego, núcleo em torno do qual se agregam todas as experiências vividas pela mente humana, registradas no inconsciente ou mantidas no campo iluminado da consciência.

Todas as divindades que vivem abaixo da superfície da Terra ligam-se obviamente ao não-ser, sendo como tal monstruosas. Na escuridão da imensa região subterrânea da Terra encontra-se o reino de Hades, do qual faz parte o Bosque de Perséfone. Hades, etimologicamente o Invisível, simboliza o nosso inconsciente, lugar de sofrimentos atrozes, mas também de tesouros, de possibilidades de renascimento, de novas propostas de vida que podem ser trazidas à luz (consciente).


PHTONOS

As Hespérides (hespera, tarde) são também, conforme Hesíodo, filhas de Nix, as chamadas ninfas do poente: Egle (Brilhante), Eritia (Vermelha) e Hesperaretusa (Vespertina). Vivem no extremo ocidente, num jardim maravilhoso, onde guardam, com um dragão, Ladon, os pomos de ouro oferecidos por Geia como presente de casamento a Zeus e Hera.

HESPÉRIDES


As Hespérides aparecem no terceiro trabalho de Hércules (a conquista dos referidos pomos), relacionado astrologicamente com o signo de Gêmeos. Ao lado do jardim, o gigante Atlas, titã, filho de Jápeto, sustenta em seus ombros, para todo o sempre, como punição imposta por Zeus, a abóbada celeste.

Como manifestações da Grande-Mãe, arquétipo eterno do psiquismo humano, as Hespérides aparecem sob o signo da triplicidade (multiplicidade), lembrando nascimento, vida e morte, o tempo circular, diferente do tempo masculino, linear, ascensional. Unindo complementos e antagonismos, as deusas tríplices, como se pode perceber, opõem-se ao pensamento patriarcal, abstrato, unidimensional e rígido.

As Hespérides refletem o lado sombrio de Nix, representando elementos do inconsciente humano. Ao nos apontar para o caminho do Sol, nascente, meio-dia e poente, elas nos falam que por trás da mudança e da multiplicidade se esconde a unidade. Ou seja, temos que procurar integrar, que buscar um centro, apesar de perdê-lo constantemente, vivendo mergulhados nos aspectos fenomênicos e periféricos da existência, dos quais não podemos fugir. É por essa razão que a Grande-Mãe e suas expressões sempre foram consideradas como anárquicas, caóticas e perturbadoras pela ordem patriarcal.

Símbolo dos desejos terrestres, o pomo (a maçã) aparece na mitologia grega associado a Afrodite (a Vênus de Milo é representada com uma maçã nas mãos), a deusa que integra, que lembra harmonia nas trocas, falando de afinidades, de estados emocionais que levam à conquista de uma forma. Os deuses masculinos, de inspiração solar, não integram o feminino. Não é por outra razão aliás que o regente “oculto” do signo de Gêmeos é o planeta Vênus.

Segundo o mito, as Hespérides possuíam o dom de controlar a ferocidade dos animais selvagens, sendo consideradas também como as guardiãs naturais das fronteiras do dia e da noite e dos limites entre os três mundos, o céu, a terra e os infernos. Seu jardim era considerado como o mais belo da mitologia, pois nele estavam depositados os pomos de ouro, símbolos da juventude eterna.

No século XVI, o tema do Jardim das Hespérides foi usado literariamente por escritores portugueses. João de Barros e Duarte Pacheco Pereira o situaram entre a península itálica e a ibérica. Já Camões o situou no arquipélago de Cabo Verde.

Como filhas de Nix, as Keres (em grego, devastação, destruição, ruína; em latim, caries, podridão, caruncho) são monstruosos gênios alados, sempre de preto, com unhas em forma de garras, encarregadas de dar fim aos soldados moribundos e aos cadáveres ao final das batalhas, sendo, como tal, agentes do Hades. Estão sempre presentes nos episódios de grande violência, sendo companheiras inseparáveis de Ares, deus da guerra, de cujo séquito fazem parte. Representam o tipo de morte do guerreiro, conforme a vida que tiver levado, isto é, conforme as suas escolhas. Famosa é a passagem do mito em que as Keres perguntaram a Aquiles o tipo de morte que desejaria: uma morte tranquila, anônima, na velhice, ao fim de uma longa vida, ou uma morte heroica, jovem, rápida, que lhe daria um renome imperecível. Literariamente, as Keres foram confundidas com as Moiras, as Erínias e as Harpias.

Divindades das trevas, as Keres aparecem no final das batalhas, acompanhadas sempre de hienas e de aves de rapina. São conhecidas como bebedoras de sangue e devoradoras dos olhos de suas vítimas (Uma obra-prima do cinema japonês, Onibaba, de Kaneto Shindo, oferece uma boa aproximação ao tema das Keres). São muito temidas porque desfiguram os guerreiros, principalmente os que procuram o caminho heróico. Apossar-se do corpo de um inimigo, principalmente se for um guerreiro de renome, é um dos grandes objetivos nas batalhas. A finalidade é não só deixá-lo insepulto como desfigurá-lo, fato que poderá causar muitos males ao seu eidolon, quando chegar ao Hades, por não terem sido cumpridos os ritos adequados (morte ritual), lá correndo ele o risco de não ser recebido.


   AQUILES E PÁTROCLO

O resgate do corpo de Pátroclo pelos gregos, morto por Heitor, herói troiano, é, na Ilíada, um dos exemplos do que aqui se expõe. Ainda como extensão do mesmo exemplo, lembre-se de como Aquiles liquidou Heitor. Agonizante, este suplicou ao grego que não entregasse seu corpo aos cães e às aves de rapina, mas à solicitude dos seus para que tivesse a devida morte ritual. Aquiles, perfurando a garganta de Heitor, disse-lhe que lamentava não ter a ira e a coragem necessárias para picar-lhe as carnes e devorá-las cruas.

Particularmente associadas às hienas, as Keres, como elas, são impuras. As hienas, desde a antiguidade, são consideradas animais bastardos, metade cão, metade lobo. Dotadas de fauces poderosas e de fortes mandíbulas, equipadas com dentes pesados e duríssimos, podem triturar os ossos de qualquer carcaça humana.

Devoradoras de carnes em decomposição, as hienas tinham a fama, entre egípcios e gregos, de saber imitar a voz humana para atrair suas vítimas. O nome do animal, em grego hyaina, vem de hys, porco. É por isso considerado impuro. O cristianismo usou-a para representar uma das cabeças do monstro, a da avareza, que aparece no Apocalipse de SãoJoão como símbolo dos sete pecados capitais.

Eris

Eris (em grego, provocar, disputar, querelar) era a Discórdia, filha de Nix que vivia no Olimpo, mas de lá foi expulsa porque não cessava de criar problemas e inimizades entre os olímpicos. Foi ela quem lançou, no salão onde se realizavam as núpcias de Peleu e de Tétis (pais de Aquiles), o famoso pomo da discórdia, uma belíssima maçã de ouro, com um bilhete onde se lia: “À mais bela”.


Disputado por três deusas, Hera, Palas Athena e Afrodite, sendo vencedora esta última, o pomo foi uma das causas da guerra de Troia. Os poetas descrevem Eris como uma mulher lívida, seca, com uma cabeleira de serpentes eriçada, olhos ferozes, boca espumante, a língua destilando um infecto veneno. Fitas ensanguentadas pendem do seu corpo. Às vezes suas vestes estavam em farrapos; ora empunhava uma tocha, ora um punhal. Muitas vezes, vinha com rolos de papel nas mãos nos quais se lia a sua divisa: Confusão, Disputa, Guerra. Com esse visual é chamada de Chicana (Strophé ou Sophisma), sendo seus templos os Palácios da Justiça do mundo, nos quais, como seus fiéis súditos, pontificam ministros, desembargadores, juízes, procuradores, advogados e tabeliães.

Eris, na Teogonia, é mãe de Ponos (Fadiga), Lethe (Esquecimento), Limos (Fome), Algos (Dor) e Horkos (Juramento), todos “vivendo” no Bosque de Perséfone. Os filhos de Eris eram conhecidos pelo nome de kokaidaimones, como maus espíritos que infernizam a humanidade.

SOFISTAS

Há muito, Eris emprestou seu nome à Filosofia, que a partir dela criou a Erística, arte da disputa argumentativa no debate filosófico, desenvolvida sobretudo pelos sofistas, com base na habilidade verbal e na acuidade do raciocínio. Platão lhe dá o sentido de busca da vitória na argumentação, abandonada qualquer preocupação com a verdade. Ésquilo (Sete Contra Tebas) considera Eris como a divindade mais distante da argumentação. Na vida quotidiana dos gregos, Eris era conhecida como a divindade que causava os conflitos domésticos. Toda vez que os mortais pretendiam orgulhosamente, nas suas relações conjugais, superar a harmonia das uniões divinas (hierogamia), Eris intervinha para criar confusões e gerar conflitos.

Deu-se o nome de megáricos a um grupo de filósofos que se concentrou na cidade de Megara, na Grécia antiga, numa escola fundada entre os sécs. V e IV aC por Euclides, chamado “O Socrático”. Os representantes desta escola, principalmente Diodoro Cronos e Philon, eram muito conhecidos pelo nome de erísticos ou “controversistas”. Eris, Discórdia para os latinos, era às vezes confundida com Ênio, deusa da guerra, das carnificinas mais exatamente, que faz parte do séquito de Ares. Em Roma, Ênio toma o nome de Belona.


PELEU E TÉTIS

O problema que Eris causou quando do casamento de Peleu e Tétis, repetiu-se recentemente (2003), quando da descoberta de um astro (planetoide), a que provisoriamente deram o nome da filha de Nix. Logo, uma grande confusão se estabeleceu entre os astrônomos. Uns querendo que o astro descoberto ganhasse o status de planeta e que, por causa disso, Plutão, aparentemente menor, fosse “rebaixado”, passando a ser classificado como “planeta anão”. Outros sugeriram que fosse dado ao astro o nome de Xena, fruto de uma espúria relação entre astronomia, mitologia e mass communication (nome de uma série de TV). Outra sugestão: dar-lhe o nome de Perséfone, esposa de Plutão, rainha do Hades.

Porque tinha o seu diâmetro aparentemente maior que o de Plutão, o novo astro foi informalmente chamado de “décimo planeta”. Hoje, com cálculos mais precisos, tal afirmação caiu por terra. Situado nos confins do sistema solar, Eris aprontou uma confusão tamanha só comparável ao ridículo dos astrônomos...

Entre os gregos, a personificação do engano, do erro e da fraude era atribuída a uma filha de Nix chamada Ápate, que faz ponto no Jardim de Perséfone. Na Terra, gostava de frequentar a ilha de Creta e, bem mais, as costas fenícias, cujos habitantes, famosos comerciantes e navegadores, muito se valiam dos seus serviços.

PANDORA

Consta que os deuses enviaram na jarra ou caixa de Pandora, para que se unisse a Ápate, o que de fato aconteceu, uma entidade chamada Dolos, que personifica o comportamento ardiloso, dono das manobras ou artifícios que, inspirados na má-fé, levam alguém a praticar um ato que lhe seja nocivo.

Para se opor a Ápate, os gregos criaram na filosofia uma ficção chamada Aletheia (literalmente o que não pode ser esquecido, ou seja, a verdade). Aletheia aparece na filosofia grega para se unir a conceitos como os de aisthesis (sensação), doxa (opinião, juízo), episteme (conhecimento verdadeiro ou científico) ou noesis (pensamento, raciocínio). Mais perto de nós, o filósofo alemão Martin Heidegger, em seu livro Ser e Tempo (1930), recorreu a eles para considerar Aletheia como desvelamento.


A TERNURA

Fílotes é uma filha de Nix que personifica a Ternura. Sempre junto da mãe, no seu aspecto de geradora do dia de onde sairá a luz da vida, Fílotes acolhe todos aqueles que se sentem perdidos quando, terminado o dia, não conseguem manter mais as suas fantasias sob controle. Fílotes aparece assim quando o mundo exterior se esconde, quando o bom senso não tem mais as suas certezas ou não sabe onde se apegar. É nesse momento, entre o pôr-do-Sol e o canto do galo (as chamadas horas abertas), quando “o que vem com a noite”, liberado pelo inconsciente, traz idéias negras, pesadelos, monstros e maus espíritos, momento em que as forças ocultas entram em atividade, que Fílotes ajuda os homens a vencer os seus terrores.

Como aconteceu com Eris, Fílotes, desde cedo foi parar na Filosofia. Quem recorreu à filha de Nix foi um filósofo pré-socrático, Empédocles (482-424 aC), notável e singular figura, também poeta. Com uma coroa de flores na cabeça e com uma túnica resplandecente, passeava majestosamente entre a multidão que o procurava ansiosa para ouvir de seus lábios as palavras da salvação.

Para Empédocles, as origens de todas as coisas estavam nos quatro elementos (fogo, terra, ar e água).



À mistura desses elementos ele dava o nome de nascimento, à sua separação, morte. Duas atividades, Fílotes e Neikos, causavam respectivamente este nascimento e esta morte. À primeira, Empédocles dava o nome de Amor e à segunda de Ódio. A primeira atividade unia os elementos a segunda os separava.

A multiplicidade da vida cósmica, para o filósofo-poeta, se compunha na Esfera Divina, na qual os elementos estavam ligados por Fílotes, enquanto Neikos permanecia fora dela, circundando-a. Se Neikos conseguisse predominar, rompia-se a unidade e os elementos se separavam. Fílotes, por seu lado, tendia sempre a conciliar novamente os elementos, formando-se assim os seres e coisas, nos quais se encontravam interpenetradas as duas grandes forças cósmicas. Fílotes era também chamado de Amor, como o princípio de toda a união e de toda a síntese enquanto Neikos era o Ódio, princípio de toda divisão e separação. Muitos consideram Empédocles um distante precursor das teorias evolucionista e mutacionista, esta última caracterizada por mutações abruptas nas especiações. A teoria dos quatro elementos proposta por Empédocles foi adotada até o aparecimento da moderna Química.

Excêntrico e orgulhoso, a tradição narra que Empédocles suicidou-se apoteoticamente, acompanhado de grande multidão, atirando-se nas lavas incandescentes do Etna, para, segundo suas palavras, melhor conhecer os segredos dos quatro elementos.

Um dos menos conhecidos filhos de Nix é, sem dúvida, Momo (o Sarcasmo). Sua crônica não é muito volumosa, mas ele está muito presente na arte e no cotidiano dos mortais. Momo, em grego, tem relação com o verbo mokasthai, zombar, escarnecer, ridicularizar. A raiz que está por traz desse verbo é mou, que exprime uma ideia de desdém, de menoscabo, um trejeito feito com os lábios que lembra deboche, pouco caso; o objetivo é o de desqualificar o que é apresentado ou dito. Lato sensu, Momo acabou por personificar o sarcasmo.

Lembre-se que os gregos têm a palavra sarkasmós, riso amargo, do verbo sarkádzo, que tem o sentido de abrir a boca para mostrar os dentes. O verbo também significa mostrar os dentes como um cão. Depois, mostrar os dentes com um riso amargo e crispado. Já Sarkidzo é arrancar a carne, a pele. Daí, sarcófago (sarkophagos), devorador da carne. Muito extenso, como se pode ver, o universo semântico da palavra grega sarx, sarkos, carne, de onde tudo sai...

A participação mais destacada de Momo no mito se dá quando Zeus faz eclodir a guerra de Troia como um meio para diminuir o número de habitantes da Terra. Conta o mito que Geia, a Mãe-Terra, não suportava mais o excessivo peso da população, que se multiplicava rapidamente. Zeus, como sabemos, sempre demonstrara grande antipatia pelos mortais, seres oriundos da segunda dinastia, a de seu pai Cronos. Para Zeus, os mortais eram seres pouco confiáveis, rastejantes, que se alimentavam de coisas putrescíveis e que viviam sob o império de Eros; presos ao cuidado e à preocupação, sua vida cotidiana era (é) tensão perpétua. Zeus esperava uma oportunidade para destruí-los pelo dilúvio.

O pedido de Geia era um ótimo pretexto para eliminá-los, deixada de lado, pelo menos momentaneamente, a ideia do dilúvio. Como atender Geia? É nesse momento que Momo se apresenta ao Senhor do Olimpo e lhe propõe um plano infalível, mais prático, mais perfeito, logo aceito. Dar a nereida Tétis em casamento ao mortal Peleu para que dessa união nascesse Aquiles, o mais patético dos heróis gregos, que se tornaria uma verdadeira máquina de matar. Ao mesmo tempo, o próprio Zeus engendraria uma filha, Helena, em torno da qual se armaria uma discórdia entre a Ásia (Troia) e a Europa (Grécia). Esta discórdia geraria uma guerra, a de Troia, na qual morreriam tantos mortais quantos fossem necessários para se restabelecer o equilíbrio demográfico. Este recurso, lembre-se, passou a ser muito usado, desde então, com a mesma finalidade, variando apenas o “motivo”, conforme as circunstâncias.

Afora esta participação de Momo, há indícios (Luciano de Samosata) de que Momo teria verberado Hefesto por ter fabricado para os humanos uma mulher (Pandora) sem nela ter aberto um orifício para que se pudesse ler os seus pensamentos. Há também registros (Filóstrato, o “Abatido pelo Amor”, fig.esq.) de que Momo se indispôs com Afrodite, repreendendo-a por sua maneira rebolada de andar e por sua tagarelice. Tal comportamento, segundo consta, teria causado a sua expulsão do Olimpo, apesar dos bons serviços prestados a Zeus.

Momo passou desde então a significar também açoite, ironia cáustica, ato de abrir a boca para dilacerar, espancamento, maledicência e crítica injusta, estas duas últimas, dentre as suas formas, como as mais suaves. Na Terra, foi Momo imediatamente acolhido por escritores e poetas. De modo especial, a elite intelectual da antiguidade lhe abriu, com muita deferência, amplo espaço para lhe dar lugar, como tropo de pensamento, na Retórica, sob o nome de Ironia, figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender.

Como alguns de seu irmãos, Momo também foi parar na Filosofia. O seu mais dileto cultor foi, sem dúvida, Sócrates, com a sua famosa “ironia socrática”, disposição fingida de aprender com outrem, a quem se interroga habilmente, fazendo-o entrar em contradição e evidenciando o caráter errôneo de suas concepções.

Expulso do Olimpo, porque irreverente e profanador, Momo integrou-se logo ao séquito de Dioniso, o mais anti-olímpico dos deuses gregos. O deus do teatro “entrega” a Momo a tutela do chamado drama satírico. Este gênero teatral, como se sabe, fazia parte das chamadas Dionísias Urbanas, onde eram apresentadas pequenas peças teatrais de humor ferino, fortemente localizado, expondo governantes, instituições, grupos ou indivíduos com base em suas imperfeições, apontando-se nelas situações públicas embaraçosas, expondo-se escândalos.

O termo satírico, nesse gênero teatral, faz referência à figura dos sátiros, companheiros de Dioniso, seres entre o humano e o animal (bode), primitivamente um semideus rústico, dotado de grandes e pontiagudas orelhas, nariz achatado, chifres pequenos na testa, com rabo e muitos pelos pelo corpo. Sempre ruidosos, escandalosos, eram sexualmente insaciáveis. Aos poucos, a palavra sátiro passou a designar homem devasso, luxurioso.

O drama satírico, passou da Grécia para Roma, onde adquiriu um sentido bem definido como meditação poética jocosa e indignada sobre os abusos da sociedade. Na Grécia, a maior figura do gênero foi Aristófanes, talvez a maior vocação teatral de todos os tempos, ao lado, é claro, de Molière. As peças de Aristófanes costumam ser classificadas também como comédias. Qualquer que seja a classificação, porém, o que importa é que ele é o mestre da polêmica violenta e da desmoralização pelo riso. Horácio e Juvenal foram os representantes do gênero em Roma, de onde passou à Idade Média e desta para os tempos modernos.


A partir do séc. XVI, a palavra momo começou a ser usada para designar a farsa satírica, cheia de sarcasmo, no teatro espanhol. Encenação com máscaras e um escasso texto. Vêm daí nomes como momice, bufoneria (italiano) e outros. É desse contexto que sai a figura do rei Momo, rei da folia carnavalesca, onde campeiam (campeavam, melhor dizendo) a sátira e o sarcasmo. Aos poucos, momo tomou o sentido de zombaria, mofa, ridículo.

O deus Momo sobrevive hoje numa das mais deprimentes manifestações populares, que muitos consideram como brincadeira, divertimento, até mesmo uma forma de convivência mas que, no fundo, tipifica um agressivo modelo de (des)socialização. A expressão “tirar o sarro” descreve essa prática, institucionalizada, através da qual ridicularizam-se principalmente pessoas. A pretexto de se explorar, até com uma certa inteligência, um aspecto negativo da personalidade de alguém, um defeito físico, a sua origem, uma deficiência qualquer, humilha-se essa pessoa, tornando-a objeto do riso e da chacota dos outros.

No início do século XXI, as brincadeiras estúpidas de Momo, revestidas de muita violência, ganharam destaque nos meios de comunicação, com a designação de Bullying, palavra que vem de bully, valentão, em inglês. Essa palavra passou a ser usada usada para descrever atos de violência física ou psicológica cometidos, de modo insolente, com a finalidade de causar sofrimento a alguém com o objetivo de colocá-lo numa situação de inferioridade da qual não deverá sair. Modelo comportamental exportado pela mídia norte-americana, o bullying, como se sabe, pode ser constatado em escolas, em relações de trabalho, em política internacional etc.

Nêmesis (em grego, nemein, delimitar, distribuir, fixar limites; fig. esq.) é a filha de Nix que constrange e pune todos aqueles que teimam em sair dos seus limites, do seu metron. Sua principal função é a de restabelecer o equilíbrio, quando a justiça deixa de ser praticada. Sua ação pode demorar, mas é sempre providencial, pois todo descomedimento põe em risco a ordem cósmica e social.

Nêmesis curva os orgulhosos, como Narciso, por exemplo; pune os presunçosos, os arrogantes, todos aqueles, enfim, que de modo insolente se entregam à sua hybris. Sua ação também tem a ver com reversões da fortuna, atuando no sentido contrário de Tyke, a deusa do acaso. Os gregos, aliás, usavam a expressão “encontrar a sua nêmesis” para se referir a alguém que perdia, às vezes com degradação pública, bens e poder conquistados imerecidamente.

Nêmesis representa, sobretudo, conceitos de retidão e de justiça. Era de Nêmesis a dikaiosyne, a virtude de distribuir o que é devido a cada um. Na esfera da ação de Nêmesis, o homem pode incorrer na punição divina de dois modos: por um lado, agindo contra a lei moral e, por outro, pelo excesso de felicidade ou de riqueza, casos em que sempre provocava o ciúme divino. Em todas as situações, sempre imprudente, o homem chamava automaticamente a ação de Nêmesis, o que lembra muito o conceito de karma dos hindus.

Nêmesis era chamada também de Adrasteia (a de que não se pode fugir, a inevitável) ou de Rhamnusia, de Rhamnus, cidade da Ática, onde a deusa pontificava. Em todos os tribunais, por trás dos juízes, devidamente entronizada, havia uma imagem de Nêmesis, sempre representada de uma forma majestosa, sóbria, alada, com um diadema ou uma coroa na cabeça.

Nêmesis se fazia acompanhar sempre de Aidós, o Pudor. Era esta última deusa que, atuando antes de Nêmesis, impedia a ofensa, inibia, a partir do interior do ser humano, a prática de determinados atos, posturas, maneiras de se apresentar, a hybris, enfim, em nome da decência e da modéstia. Nêmesis assinalava a infalível consequência da ofensa. Foi Aidós, por exemplo, quem sugeriu às deusas do Olimpo que, por recato, não deveriam se abalar, como os deuses estavam fazendo, para ir ao local onde Afrodite e Ares, em pleno conluio amoroso, estavam ridiculamente aprisionados pela indestrutível rede lançada por Hefesto.
Conta o mito que a belíssima Nêmesis foi notada por Zeus, que passou a persegui-la de várias maneiras. Desesperada, numa última tentativa de escapar, a deusa se transformou numa fêmea de ganso. Para se unir a ela, o Senhor do Olimpo, como costumava fazer, adotou uma forma animal, a de um maravilhoso cisne, no caso, forma através da qual conseguiu finalmente seu intento, dando vazão assim ao seu inesgotável furor erótico. As uniões de Zeus, como sabemos, têm uma finalidade: é delas que vão nascendo os luminosos fragmentos da verdade, da qual a humanidade tanto necessita.

Segundo Eratóstenes, o encontro de Zeus com Nêmesis se deu na cidade de Rahmnus. Foi ali que a deusa deu substância a um conceito filosófico-religioso até então não muito bem definido na espiritualidade grega, o de Anankê, a Necessidade, para assumir a função de a maior inimiga da hybris, do excesso, da desmedida. Consta que o modelo de Nêmesis viera da Ásia Menor, onde era reverenciada com o nome de Adrasteia, em Smirna, principalmente. Na Grécia, Nêmesis assumiu o papel de guardiã da ordem cósmica e da ordem social, tornando-as indissociáveis.

Anankê é nome que lembra coação, violência e ao mesmo tempo relação de parentesco, isto é, de causa e efeito. Em torno desse conceito reúnem-se várias divindades femininas que, de modo providencial, têm por finalidade a reposição de limites por parte daquele que se excede. Nêmesis, as Moiras, as Erínias, Dike, as Keres, Ate, são divindades desse mundo. Há sempre algo de mecânico na ação dessas deusas, de inexorável. É o próprio agir do ser humano que determina qual delas virá para constrangê-lo, para obrigá-lo a voltar de onde não deveria ter saído, com sofrimento, maior ou menor, de algum modo.


São chamadas também tais deusas de agentes da Necessidade, entendida esta palavra como um constrangimento exercido sobre os desejos e as ações do homem pelo encadeamento inevitável dos princípios e das consequências, dos efeitos e das causas. A Necessidade é muita vezes confundida com a Fatalidade.

Dentre os vários atributos de Nêmesis encontramos o círculo (para indicar a velocidade das suas punições), o freio, o leme, o chicote, o cabresto, a espada, a balança, o esquadro, o fio de prumo e o compasso. Como se vê, tudo o que serve para limitar, orientar, dar o rumo certo, conter e punir é de Nêmesis. Lembre-se que o esquadro, por sua relação com o quadrado, tem relação com a Terra enquanto o compasso, que serve para traçar círculos, se liga ao Céu. Ambos formam uma conjunção de opostos que representava para o grego antigo uma hierogamia dos princípios masculino e feminino, ou seja, do Sol e da Lua.

Como aconteceu com outros filhos de Nix, o conceito de Anankê passou a ser usado na filosofia, desde os pré-socráticos. Anankê era o necessário, aquilo que governa tudo de modo providencial, aquilo que não poderia deixar de existir. Neste sentido, ela se opõe não só ao problemático como ao que existe pura e simplesmente. Uma lei necessária não afirma o que é, mas o que deve ser. Na vida social, Anankê é uma necessidade moral, um dever, que se propõe a nossa liberdade, embora não a constrangendo ou a ela se impondo de modo absoluto. Empedócles usou o conceito certamente. O mesmo fizeram os atomistas, considerando-o sob um ponto de vista puramente mecânico. Platão, ao que parece, usou também o conceito ao expor o seu Mito de Er (República).



Dentre os mais temíveis filhos de Nix alinham-se as Moiras (em grego, lote, pedaço, quinhão, parte), chamadas também de Aisas, Parcas entre os latinos, e popularmente de Fiandeiras. Personificam o destino individual de cada ser humano. O que decidem, nem os deuses podem contrariar. Por isso, quando da vitória de Zeus e da consequente imposição da ordem olímpica em todo o universo buscou-se um acordo: o que Zeus queria, as Moiras queriam. Muito prestigiadas, têm lugar de honra nas reuniões olímpicas.

São três: Cloto (fiar), presente no momento da concepção, a que segura o fuso e puxa o fio da vida; Láquesis (sortear), a que indica quando o fio da vida deve parar de ser esticado, decretando a morte; e Átropos (inflexível), a que corta o fio da vida, momento em que Thanatos está sempre presente.

As Moiras vivem no Hades. No seu palácio, os destinos humanos estão gravados em ferro e bronze, de modo que nada possa apagá-los. Imutáveis nos seus desígnios, são donas do misterioso fio da vida e possuem o dom da profecia. O fuso, pequeno instrumento de madeira, arredondado, grosso no centro e pontiagudo nas extremidades, usado para fiar, torcer e enrolar o fio de trabalhos feito na roca, é delas.

Entre os latinos, as Parcas (do verbo parere, dar à luz, parir; fig.dir.) assumiram aos poucos os atributos das Moiras gregas. Eram três: Nona, Décima e Morta. As duas primeiras tinham a ver com o nascimento. Normalmente, a criança em Roma, por causa do calendário adotado, o lunar, vinha normalmente à luz no décimo mês. Para o caso de nascimentos prematuros, havia a Nona. Aos poucos, porém, essa ideia, por inspiração grega, foi abandonada. Nona passou a cuidar exclusivamente dos nascimentos; Décima (Decuma) ficou com a tutela dos casamentos e Morta continuou a se responsabilizar pelos assuntos ligados à morte. Comumente, eram representadas por três imagens (estátuas), num só bloco, sendo chamadas então de Tria Fata (Três Destinos).

Raramente mencionado nos mitos, Moro, como filho de Nix, é a personificação do Destino. É um poder que define a sucessão dos fatos, fixando-a de antemão. Aconteça o que acontecer, os seres humanos, dotados de inteligência e de vontade, por mais que o façam, são impotentes para evitá-la. Moro, como a grande divindade do Destino, representa o conjunto da vida de um ser, na medida em que os acontecimentos que o compõem, contingentes ou não, são considerados como resultantes de forças exteriores e distintas de sua vontade. É o que não pode deixar de acontecer, apesar de todo desejo e esforço contrários.

Moro é uma entidade cega, inexorável, que passa por filho de Nix, mas que alguns julgam uma emanação do Caos. Insondável o mistério de sua origem. O que se sabe de certo é que Moro atua diretamente através de suas irmãs, as Moiras. Como tal, confunde-se com o Fatum dos latinos, nome que quer dizer “palavra dita”. Fatum é o que acontece em virtude de uma necessidade cega, pela qual os acontecimentos (todos ou alguns?) estariam fixados independentemente das causas que os produzem.

Todas as demais divindades estão submetidas ao seu poder. Os céus, a terra, o mar e os infernos submetiam-se ao seu império. O que Moro resolve é irrevogável. Mesmo Zeus não pode aplacá-lo, nem a favor dos deuses nem a favor dos humanos. As leis de Moro estão escritas desde o princípio da criação em um lugar onde os deuses podem consultá-las, mas não alterá-las ou revogá-las.

Moro é representado tendo sob seus pés o globo terrestre, levando numa das mãos uma urna onde está encerrada a sorte dos mortais (chamam-no de a Sorte, por isso). A urna de Moro representa a unidade da diversidade através do fluir perpétuo e sucessivo da vida e da morte. Às vezes, ele vem com uma coroa recamada de estrelas e um cetro, símbolo do seu poder universal. Para demonstrar a sua inflexibilidade, os antigos o representavam por uma grande roda presa a correntes. No alto da roda, uma grande pedra; em baixo, duas cornucópias com pontas aceradas como flechas.

São as leis do Moro que tornam culpados tantos mortais, apesar do desejo que demonstram de permanecer virtuosos. Como exemplos, colhidos em Ésquilo, podemos citar Agamemnon, Clitemnestra, Jocasta, Édipo (fig.esq), Etéocles, Polinice e outros. Só os oráculos podem entrever e revelar o que está escrito no livro de Moro.


                                                 HÉCATE E OIZUS (W. BLAKE)


Finalmente, temos Oizus, Miséria, em grego, filho de Nix que aparece como um daimon andrógino para personificar a tristeza, o desalento, a desventura, causador daquele estado de ignorância, iniquidade e abjeção em que a maior parte da humanidade vive mergulhada, a inspirar compaixão e piedade. A jarra na qual Pandora trouxe os males que passaram a infelicitar a humanidade, como punição pelo crime cometido por Prometeu, costuma aparecer, em algumas tradições, associada a Oizus. Nas palavras de Zeus (Ilíada), ninguém mais miserável do que o ser humano, dentre todos os seres que respiram e andam sobre a Terra, todos sujeitos à idade, às dores e à morte.

Oizus também pode ser aproximado de Penia, a personificação da pobreza, da carência, como Platão a apresentou no Banquete, quando nos falou, através do diálogo Diotima - Sócrates, da gênese de Eros. Carente, sempre desejoso, vivendo na falta, pelo lado materno, Eros herdou, entretanto do pai, Poros, o Artifício ou o Expediente, coragem, ímpeto, audácia e astúcia para sair da dolorosa situação de penúria em que constantemente se encontra. Na imagem à direita, Penia, Poros e Eros.