quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

MITOLOGIAS DO CÉU - A LUA (3)




Desde tempos históricos muito recuados, encontramos no Egito um grande e variado número de concepções religiosas. Tais concepções só ganharam uma certa ordem com a unificação política do país, a partir do ano 3.000 aC, quando o alto e o baixo Egito se unem e se estabelece Mênfis como capital. Dentre todos os grupos que procuraram estabelecer uma certa sistematização da matéria religiosa, destacamos os teólogos de Heliópolis, centro do culto solar do deus Amon Ra. Foram eles os mais ativos; o sistema que elaboraram vai dominar a vida religiosa do país até os períodos ptolomaico, romano e bizantino, desaparecendo depois totalmente com a invasão muçulmana no ano de 639.

Ao observador superficial poderá parecer que a solarização da religião egípcia deu pouco espaço para os cultos lunares. O que se percebe na realidade é que tais cultos estão presentes, embora não muito bem definidos. O célebre mito do olho de Hórus é, em grande parte, lunar; o calendário egípcio é muito influenciado pela Lua, como o são também certas concepções funerárias. A selenologia egípcia ganhou um significativo realce na terra do Nilo, como se verá.




Para começar, cite-se que o nome da Lua, Ioh, é do gênero masculino. A sua imagem mais frequente é a de um disco repousando na concavidade de um crescente horizontal, a forma como a Lua aparece na latitude do país. Trata-se de uma figuração sintética dos dois principais aspectos do astro. Encontra-se também só o crescente representado, evoluindo no corpo da deusa Nut, o céu. Em outras representações, a Lua aparece navegando num barco, no qual tem lugar também Toth, o deus lunar com a cabeça de ibis, ostentando na cabeça um crescente. As referências à Lua eram variadas, sendo “aquela que refaz a sua forma” a mais comum.

Mitologicamente, o símbolo mais frequente da Lua era o olho do deus Hórus, divindade celeste. Neste caso, porém, a Lua se tornava feminina porque “olho” na língua egípcia é do gênero feminino. O olho direito será do Sol, o esquerdo da Lua. Considerada uma substituta natural do Sol, pois assume o seu lugar à noite, a Lua identificava-se nesta função com a de um vizir (wazir, ajudante, assessor, preposto), que o deus Thot exerce.

Há várias narrativas sobre a origem da Lua. Uma, biológica, a dá como nascida do esperma de Hórus; outra, linguística, aponta uma homofonia, um jogo de palavras (muito comum entre os povos do Mediterrâneo oriental) retirado de um discurso do deus Ra (fig. esq.), através do qual ele associa a claridade e a beleza do astro lunar à ação de Toth (fig.dir.), dando-lhe como vizir o babuíno. Ra proclama então Toth como deus lunar, considerando-o como seu substituto; todos aqueles que quiserem alcançá-lo terão que o fazer por meio de Toth, aquele que abre as portas.



Quanto às fases da Lua, a ascendente é obviamente a mais representada. É de se lembrar que para os egípcios o universo estava sempre sob permanente ameaça de desintegração; só pela ação dos rituais é que tal ameaça seria impedida de se concretizar. Todos os ritos se voltavam por isso praticamente para a passagem da fase crescente à cheia. A fase decrescente era considerada um efeito da precariedade da ordem cósmica, sob pressão de um grande número de forças maléficas. O plenilúnio significava um retorno ao saudável, significando a cura do olho de Hórus que fora ferido. A tradição mítica atribuía a Seth (fig.esq.), monstro da desertificação, os ataques ao filho de Ísis. Há várias histórias sobre os combates entre Hórus e Seth e a cura do olho do primeiro. Toth, como divindade médica, é naturalmente convocado para recompor Hórus, recebendo por isso o título de “médico do olho”.



Hórus (etimologicamente, céu), filho de Osíris e de Ísis, é uma divindade celeste, que os gregos viam como o Apolo egípcio. Hórus também significava falcão; era o deus com cabeça de falcão, ave de olhos poderosíssimos, um representando o Sol e outro a Lua. As lutas entre ele e o monstro Seth ilustravam o permanente conflito entre as forças da luz e as das trevas.

As três fases mais importantes da Lua entre os egípcios eram a crescente, a cheia e a nova, esta o ponto de partida para o ciclo seguinte. A Lua minguante era considerada como um tempo de envelhecimento. Se a fase crescente tinha analogia com a fecundidade máxima e a procriação, a minguante era comparada à castração de um touro, que se tornava então um pobre boi, privado de todo vigor.

Uma peculiaridade interessante com relação à Lua no Egito é que seus traços aparecem em várias divindades. O mais importante deles era sem dúvida Toth, cujas conexões com o astro não numerosas e variadas. De início, é preciso dizer que Toth é às vezes considerado como a própria Lua e noutras como seu protetor.




Nos chamados Textos das Pirâmides, ele é citado em paralelo (como astro) com o Sol e Saturno. Quando os textos falam dele como “touro do céu”, “touro entre as estrelas” é certo que as referências estão sendo feitas a Toth como a Lua (Ioh-Toth). É por esse motivo que ele, na teologia heliopolitana, como se disse, aparece como substituto do Sol, na função de vizir de Ra. Na função de protetor, ele aparece nos mitos que se referem a Hórus. Quando este deus perde o seu olho em razão do ataque de Seth, é Toth, como se disse, quem restaura a sua saúde.



Em outros episódios da mitologia egípcia, Toth aparece como inimigo da Lua. Esta hostilidade deixou traços quando, segundo Plutarco nos conta, o deus jogou damas com o deus do astro lunar e ganhou dele uma fração de cada dia. Esta fração constitui aquilo que os gregos chamaram de dias epagômenos, ou seja, cada um dos cinco dias acrescentados ao ano civil, que compreendia à época doze meses de trinta dias cada um. Foi durante esses cinco dias, como se sabe, que nasceram de Nut, a deusa celeste, os cinco deuses do drama osiriano (Osíris, Haroeris, Seth, Ísis e Nephtys).


NUT E SEUS FILHOS


Thot foi o nome que na época greco-romano se deu ao deus Djehuti (fig.dir.), identificado pelos gregos como Hermes, mensageiro do céu e adorado em todo Egito como um deus lunar, mestre do alfabeto, das ciências, das invenções (inventor dos hieróglifos), da sabedoria, arquivista e embaixador dos deuses. Djehuti quer dizer “o do Baixo-Egito”, cuja capital, Hermópolis parva, berço do culto do deus, antes de ele se estabelecer, com seu grande santuário, em Hermópolis magna.




Muitos epítetos de Toth só podem ser explicados se o considerarmos como um deus lunar. Na função de vizir e como deus das ciências, ele devia, dentre outras tarefas, ficar atento às “partes” do olho de Hórus (fases da Lua) e, consequentemente, medir o tempo com exatidão absoluta. Esta contabilidade implicava o domínio de certas áreas do conhecimento, a aritmética e a invenção da escrita; a contagem dos anos do reinado dos faraós, fundamento da cronologia egípcia, era também atribuída a Toth. Destas ideias de exatidão, de perfeccionismo com que Toth cumpria as suas múltiplas tarefas, passamos à de justiça. Guindado à condição de Mestre da Justiça, era ele quem manejava a adaga lunar que abatia os criminosos. Era também à Lua que Toth devia a sua habilidade mágica, na qual os egípcios incluíam a escrita, o cálculo e a medicina. Estas atribuições do deus ele as dividia com a deusa Seshat, sua esposa, representada sob o aspecto de uma mulher vestida com uma pele de pantera, que tinha nas mãos um estilete e uma haste de papiro. Na cabeça, Seshat ostentava uma estrela de sete pontas, símbolo das sete potências construtivas do mundo material.

Dois animais tinham relação com Toth por razões “lunares”. Os egípcios consideravam a hibi, íbis, uma ave lunar por causa da forma de seu bico, que lembrava um crescente. Esta ave, com seu enorme bico, passa o tempo a “investigar” o solo pantanoso nas regiões em que vive, dando a impressão de que está sempre a buscar alguma coisa. As penas da ibis, ave-manifestação terrestre do deus, gozavam popularmente da fama de afastar as serpentes, tendo um valor apotropaico. O bico da ibis simbolizava todas as operações do intelecto prático. Outros, no Egito, associavam o ritmo vital da ave à Lua. Esta mesma característica, aliás, era também notada no macaco (babuíno), que na Lua cheia dormia durante o dia, mantendo-se desperto à noite, para poder melhor honrar o astro do qual se sentia dependente. Toth, sob a forma de um grande macaco branco, aparecia em muitos registros como, na qualidade de patrono dos sábios e dos letrados, o escriba divino, anotando as palavras de Ptah, o deus criador, e o veredicto de Anúbis, o deus chacal, na psicostasia.

Khonsu, cujo nome significa o ”navegador” ou “o que atravessa o céu numa barca”, era também uma importante divindade lunar, sendo muito reverenciado inicialmente na região de Tebas. Os gregos, inexplicavelmente, o identificaram como Hércules. Considerado filho de Amon, era representado sob a forma de uma múmia, o que atestava a sua relação com tempos remotíssimos. Na cabeça, ostentava um crescente lunar.

KHONSU

Nos textos dos sarcófagos, associado a Thot, Khonsu aparecia como uma divindade violenta e justiceira. Na antiga língua egípcia, aplicava-se à Lua o epíteto de violenta (medes), palavra que é homófona de medes, uma adaga que era atributo de Thot, na forma de um crescente lunar. Muitas das funções de Khonsu eram também as de Thot, regulador do tempo, juiz, vizir, mágico, conselheiro e médico.

Outra divindade que apresenta fortes traços lunares é Osíris. Plutarco, o historiador grego, insistiu bastante nos seus escritos sobre a analogia que havia entre o ciclo lunar e a morte, a paixão e o renascimento do grande deus. Muitos textos religiosos, associavam o monstruoso Seth às negativas influências solares, quentes e secas, causadoras da desertificação. Já as influências lunares, fecundantes e úmidas, apareciam nesses textos ligadas a Osíris, influências favoráveis à reprodução dos animais, ao desenvolvimento das plantas e da vida em geral. A este tratamento religioso de Osíris os gregos deram o nome de selenização do deus.

Os egípcios relacionavam a morte de Osíris com a fase minguante da Lua. Notavam que o que deus vivera 28 anos, número do ciclo lunar. Nos ritos que reproduziam o encerramento de seu corpo num arca, o instrumento usado para destroçá-lo tinha a forma de uma foice, a forma que a Lua tomava para desaparecer quando se aproximava do Sol. O despedaçamento do corpo de Osíris em catorze pedaços estaria ligado aos catorze dias que a Lua levava para minguar depois da Lua cheia e aos outros catorze que ela levava para crescer novamente. Há ainda referências, neste particular, aos eclipses da Lua, que só ocorriam quando ela estava cheia, oposição Sol-Lua, mergulhando ela na sombra da Terra como aconteceu com Osíris na arca. Além disso, lembravam os egípcios que a Lua no novilúnio eclipsava parcialmente o Sol, tornando-o invisível sem todavia o aniquilar.

Min ou Minu, que os gregos identificam como o seu Pan, era adorado como um deus da fecundidade, protetor da vegetação e das colheitas, características fortemente lunares. Seu animal sagrado era um touro branco. Um dos emblemas de Min era, ao que parece, um relâmpago. Itifálico, emplumado na cabeça, brandia um chicote. Era adorado também como deus dos caminhos e protetor dos viajantes no deserto.

Ao lado destas expressões divinas, a presença lunar pode ser notada entre os egípcios na sua liturgia, como no caso de muitas festas religiosas. A coroação real, por exemplo, era sempre realizada numa Lua cheia. As datas que marcavam o início de muitas peregrinações também dependiam da posição e da fase lunar, principalmente a visita a alguns centros religiosos aonde os crentes recém-casados iam em busca de bênçãos para uma prole sadia e numerosa. As consultas oraculares também dependiam da Lua.




O calendário das festas dos mortos igualmente dependia da Lua. No Egito, um dos destinos dos mortos era o astral, transformados então em estrelas, para acompanhar Sol. Uma ilustração desta crença está na conhecida história de Antínoo (período romano da história egípcia, séc.II), o favorito do imperador Adriano, jovem de extraordinária beleza, que morreu afogado no rio Nilo. Foi transformado numa espécie de divindade ou de herói semidivino, sendo sua morte, na versão imperial, considerada uma reprodução da de Osíris. Adriano, um dos mais cultos imperadores da Roma antiga, fez o seu jovem protegido depois de morto passar por um processo de “osirificação” para que pudesse ter um destino lunar. Um templo foi levantado em sua memória. Encontra-se atualmente nos museus do Vaticano uma das mais belas estátuas do jovem protegido de Adriano, o “Antínoo de Belvedere”.


SIN

A principal divindade sideral da Mesopotâmia (Suméria) era o deus lunar Sin (etimologicamente, saber, ciência), que, com seus dois filhos, Shamash, o Sol, e Ishtar, o planeta Vênus, constituíam a grande trindade astral do país. Antropomorfizado, Sin, também chamado de Nannar, era venerado como um velho de longas barbas cor de lápis-lazúli, com um turbante na cabeça. Sua esposa era Ningal, a “grande dama”. Seu principal centro religioso ficava na cidade de Ur, na região do golfo pérsico.

A mais antiga tradição mesopotâmica registrava que o Deus-Lua nascera da união mística do deus Enlil (fig. dir.) com a deusa Ninlil. Na reorganização dos mitos ocorrida mais tarde, com o Poema da Criação, uma outra versão será apresentada. Esta nova versão correspondeu ao surgimento de novas dinastias divinas. Uma outra perspectiva, de natureza astrológica, se imporá então para fazer o Deus-Lua e seus poderes uma criação da trindade Anu (Senhor dos espaços celestes), Enlil (Senhor do Ar) e Ea (Senhor das Águas que envolviam a terra).

A cada noite, Sin tomava a sua barca, que aparecia aos mortais na forma de um brilhante crescente lunar e, como navegador noturno, percorria a vastidão do céu. Noutras interpretações, o único aspecto visível do deus, o crescente lunar, não seria uma barca, mas a sua grande arma, uma adaga. Quando o crescente se transformava num disco, no plenilúnio, o que se via então nos céus era a sua coroa, sendo o deus chamado então de “O Senhor do Diadema”. Estas transformações sucessivas e regulares tornavam Sin uma divindade misteriosa, dele se dizendo que “nenhum deus penetrava no profundo de seu coração.”

Ao projetar sua claridade, Sin opunha-se aos maus, que gostavam de praticar as suas ações criminosas acobertados pelas trevas noturnas. Era, por isso, um inimigo natural dos espíritos maus, sempre em luta contra eles. Estes espíritos maus recebiam às vezes a colaboração dos seus dois filhos, Shamash e Ishtar, além do apoio de Adad (fig.dir), o deus do raio.

Dentre as atribuições de Sin, destaque para a que o encarregava de dividir o tempo, conforme determinação de Marduk (fig.esq), a maior das divindades, que havia assumido o controle do universo ao vencer Tiamat, o caos primordial. Pleno de sabedoria, ao final de cada mês os deuses iam fazer reverências a Sin e consultá-lo.


Por volta de 2.000 aC, há registros de que Sin passou a ser chamado de “Deus-30” (os dias do mês), designação que se juntou àquela pela qual o povo o reverenciava, A Barca, palavra formada por três ideogramas, “único”, “correr” e “branco”, ou seja, o “solitário viajante branco”. Já Nannar (fig.dir.), o outro nome de Sin, poderia ser traduzido como “brilhante pedra do céu”. Quanto à barca, cuja forma sugere a de um crescente lunar, lembro que ela sempre foi usada para representar o meio de transporte dos astros celestes (Sol e Lua) e também o dos mortos para o Outro Lado.

O templo do deus Sin em Ur era um retângulo em forma de casamata, de 79 por 100 metros, voltado para o sudoeste, aberto exclusivamente aos sacerdotes e aos reis. Uma torre central, de 50 metros de altura, chamada de “embarcadouro sagrado”, dominava toda a construção e as áreas vizinhas do templo, sendo vista a quilômetros de distância. Os grandes templos da Mesopotâmia tinham normalmente essa torre (zigurate, cume, montanha) formada por sete andares, de cores diversas, simbolizando as regiões hierarquizadas que uniam a terra ao céu.

TEMPLO DE UR

Toda a literatura sagrada referente a Sin tinha três grandes temas, a Lua, a barca e o touro, saindo de cada um deles temas secundários como fertilidade, chifre, abundância, sopro vital, leite, fecundidade, riqueza etc., todos notáveis na arte mesopotâmica como a arqueologia revelou. Alguns pesquisadores defendem a ideia de que as primeiras imagens da cornucópia grega teriam vindo desse mundo.

Como deus da abundância, Sin era o multiplicador por excelência. Seu templo, ou parte dele, era visto como uma espécie de “fazenda modelo”. Nele se encontravam vacas, cabras, estábulos, uma leiteria, uma fábrica de creme, uma pequena granja.


CIDADE DE UR

A cidade de Ur, na era astrológica de Touro, foi, como se sabe, um grande centro de criadores de gado leiteiro e de produtores de derivados do leite. Estas imagens terrestres foram naturalmente transferidas para o céu, para os campos noturnos e para os rebanhos celestes, os astros, conduzidos pelo deus Sin.

RAQUEL E LIA

Com a queda e a decadência da cidade de Ur por volta de 1950 aC, mais ou menos ao tempo que Abraão deixou a cidade para se instalar em Canaã, o deus emigrou, indo em direção do noroeste, levando animais e pastores. Esta história foi parar no Antigo Testamento (Gênesis, XXIX) onde se narra que um grupo, chamado de “O Rebanho”, do qual faziam parte Laban (O Branco) e suas duas filhas Raquel (A Ovelha, a mansa) e Leah ou Lia (A Vaca Selvagem), emigraram, chegando à região de Haran, onde se instalaram. Depois disso, o culto do Deus-Lua emigrou para a Síria do norte, onde se eclipsou. Leah, lembro, era um dos epítetos de uma deusa lunar cananeia. Raquel, “A Ovelha” era entre os cananeus a mãe de um deus-carneiro, glorificada por todos os povos pastores da Ásia Menor e do Mediterrâneo.

Na Babilônia, o Deus-Lua era representado por um ideograma que significava mês. Assim, enquanto a Lua era o mês, o Sol se ligava ao dia. A renovação mensal lunar era representada pelo novilúnio, por um verbo que queria dizer “renovação”. A virtude fundamental do mês lunar entre os babilônios era seu ritmo, sua periodicidade. A Lua e o Sol eram os reguladores do tempo divino e humano, definindo por períodos, ciclicamente.

Depois de ter atingido seu ponto culminante (quinze dias), a Lua entrava no período descendente, que terminava com o seu desaparecimento temporário. Os últimos dias que precediam o seu desaparecimento era consagrado às divindades do mundo infernal. Desde o vigésimo sexto dia era proibido entoar hinos e fazer preces à Lua. O vigésimo sétimo dia era do deus infernal Nergal e do deus Engur. O vigésimo oitavo dia era totalmente nefasto, perigoso, ficando proibida a prática divinatória e nesse dia nenhum médico deveria “encostar a mão em doentes”. O vigésimo nono dia, também nefasto, trazia o desaparecimento lunar.

A Lua nova a cada mês representava a morte do astro, uma descida aos infernos. O novilúnio era período de oferendas funerárias, de luto e de tristeza. Ritos de purificação marcavam o desaparecimento da Lua e o começo do mês. Entre as datas críticas, o desaparecimento da Lua e início do crescente era proibido iniciar qualquer atividade importante, inclusive guerras. Segundo uma tradição babilônica, a criação do ser humano teria ocorrido numa Lua nova.

Luz noturna, como o Sol é a luz diurna, a Lua é namaru, ser luminoso, luz dos deuses. Há um ritual mesopotâmico (assírio) que estabelece uma relação entre o Deus-Lua e a “Grande-Vaca”, sua noiva, sua serva. Neste ritual, o Deus-Lua, na forma de um Touro, deflora a “Vaca Lunar”. Para confortá-la e para aliviar as suas dores, ele envia do céu dois anjos que irão aspergir sobre o seu corpo as águas da libertação. Da mesma maneira, o Deus-Lua era a grande divindade que, devidamente invocada, auxiliava todas as mulheres que entravam em trabalho de parto.

Outra função do Deus-Lua era a de dar a conhecer os sinais como divindade dos presságios. Durante os eclipses lunares, o deus emudecia, não enviando nenhum sinal. Os reis babilônicos deixaram vários depoimentos sobre esta atividade lunar. O sinal enviado pelo deus chamava-se omen, um presságio, que o astrólogo recolhia para estabelecer um inventário e levantar um catálogo dos acontecimentos celestes. O sinal era também uma expressão da vontade divina e, por isso, anunciava também uma decisão. Assim, o Deus-Lua era o “Senhor da Decisão” (Astrologia Horária). Por essas informações, pode-se perceber a importância que os sacerdotes-astrólogos tinham na antiga Mesopotâmia.

O Deus-Lua determinava também o que era “real”, dele dependendo a coroa dos reis e seu cetro. Ele definia o próprio modelo da realeza. É por essa razão que os reis mesopotâmicos acrescentavam a palavra Sin ao seu nome, Gimil-Sin, Bur-Sin etc. Sin era aquele que revestia os reis de realeza, que lhes dava as insígnias reais. Por aí se depreende porque o Deus-Lua sempre ocupou uma posição superior à do Sol no panteão mesopotâmico.


Os eclipses lunares eram para os babilônicos acontecimentos muito desagradáveis. A invisibilidade do astro criava sempre uma situação de perigo para a humanidade. Os registros nos falam dos “demônios maléficos”, aéreos, que atacavam a Lua nessas ocasiões, os ventos maus, as tempestades, que perturbavam a ordem cósmica, transportando as trevas, provocando inundações. Um bestiário mítico estabelecia um sistema de correspondências. A cada vento correspondia uma forma animal, dragão, leopardo, serpente etc. Estes demônios ganhavam muitas vezes a cumplicidade do deus solar e do do deus das tempestades. Os deuses Enlil, pai do Deus-Lua, e Ea, nestas ocasiões, intervinham, contudo, para afastar o perigo.


O desaparecimento do astro ao fim de cada período (novilúnio, chamado de Lua negra) e os eclipses sempre eram considerados como uma morte. O astro deixava de enviar sinais, tornava-se mudo. Realizavam-se então vários rituais, bastante complexos, para exaltar o acontecimento, oferendas funerárias, lamentações, fechamento de portas, lacerações das roupas, rituais em tudo semelhantes aos que acompanhavam o enterro de seres humanos. Tais rituais, de caráter coletivo, realizavam-se em praça pública, nas encruzilhadas e nas portas dos templos. Durante todo o eclipse eram ouvidos gritos e lamentos nesses lugares. Esses rituais tinham também um componente “mágico”. Fazia-se a leitura, em voz alta, de textos que expulsavam os “demônios maléficos” que haviam se apoderado do crescente lunar.

O fim do eclipse lunar era marcado pela realização de outros ritos, destinados a purificar o templo do Deus-Lua. Os sacerdotes, antes do nascer do Sol, abriam as portas do templo, lançando num rio próximo as cinzas de um braseiro que ficara ardendo durante todo o eclipse. Estas cerimônias eram conduzidas por dois tipos de sacerdotes, os lamentadores (ritual funerário) e os conjuradores (exorcistas).

Dois recursos eram os mais usados para livrar a Lua, o fogo e o barulho. O primeiro, um elemento semítico comum, era usado sob a forma de tochas, agitadas durante todo o ritual. Um braseiro, mantido ativo, tinha a finalidade (magia simpática) de promover a substituição das trevas pela luz. Quanto ao barulho para se promover a libertação da Lua (do Sol também), a prática é, como sabemos, universal.

As algazarras nos eclipses da Lua tinham obviamente o objetivo de afastar os monstros que ameaçavam o astro. O que estava por trás desta ideia era justamente a de que, desde a aurora dos tempos, o homem sempre vira no cosmos uma regularidade que, num eclipse, ficava ameaçada. Uma desordem que punha em risco a relação céu-terra.


PISSER SUR LA LUNE - BRUEGHEL

Essa prática pré-histórica de se afastar os monstros “cosmológicos” que perturbavam a ordem celeste, gerou, ao que parece, pelo princípio da analogia, prática semelhante em muitas sociedades. Refiro-me ao costume de se fazer alarido semelhante, charivari como dizem os franceses, em festas de casamento, para afastar monstros “sociológicos” que possam atuar nesses acontecimentos sociais. Lévi-Strauss (Mythologiques e Le Cru et le Cuit) desenvolve uma análise sobre esse costume social e o seu significado.



É interessante relatar que no Brasil colonial, conforme nos contam alguns estudiosos (Câmara Cascudo), os eclipses têm um caráter de calamidade. Num eclipse lunar, os agricultores sertanejos (nordeste), para que os algodoais não morram, eles vão “acordá-los” aos gritos, com tiros de espingarda, com barulho de latas, cornetas. A chamada Lua cris só será funesta se surpreender os algodoais “adormecidos”.

Acrescento a estes comentários ainda que no séc. XVI um astrônomo francês, J.P. de Mesmes, rejeitou o termo eclipse, aplicado indistintamente ao desaparecimento do Sol e da Lua, achando-o por demais erudito. Isto porque, dizia ele, um eclipse da Lua era sempre absoluto; quando a Lua estava na sombra, estava para todos. Já o eclipse do Sol era relativo, a Lua o esconde só para alguns. Mesmes sugeriu então que se abandonasse o termo eclipse, falando-se em “impedimentos do Sol” e “desfalecimentos da Lua”.

Voltando à Mesopotâmia, lembro que era da tradição religiosa associar-se um eclipse a um ataque à pessoa real, ocasião muito propícia para que os reis se desfizessem de seus inimigos. Rituais especiais eram então realizados, dependendo do mês do eclipse. Um destes rituais, por exemplo, consistia em o rei ter o seu corpo lavado com terebentina de pinheiro (solvente) e depois massageado com óleo de mirra (perfume). Os eclipses lunares tinham também relação direta com a sexualidade. Nos rituais a eles referentes participava obrigatoriamente a deusa Ishtar, em casos como mudança de sexo, de impotência, de frigidez feminina etc.