sábado, 2 de abril de 2011

O ARCANO O OU 22 DO TARÔ


ALGUMAS QUESTÕES SEMÂNTICAS

A Semântica é um ramo da Linguística que se ocupa do significado das palavras. Faz parte da Semântica a Etimologia, que estuda as origens das palavras. Semântica vem do grego, "sema", sinal distintivo, marca. Já Etimologia, do grego também, vem de etymos, verdade, e logos, palavra.

A Etimologia nos revela que as palavras têm uma história. Desde que criadas passam elas de geração em geração, por séculos e séculos, milênios muitas vezes, carregando experiências, sentidos que se perdem, que se alteram. Como nós, as palavras nascem, vivem, envelhecem e morrem...

Tentarei inicialmente fazer algumas breves incursões etimológicas que, acredito, nos ajudarão a alargar um pouco mais o campo semântico de algumas das palavras colocadas em questão pelo nosso título, o arcano (lâmina) 0 ou 22 do Tarô e suas várias designações.

Primeiro, a palavra arcano. Essa palavra é usada normalmente pelos tarólogos com o sentido de mistério, arcanum, em latim. No jargão tarológico, arcano e lâmina costumam aparecer como equivalentes. Lâmina, isto é, carta de baralho, é graficamente uma folha ou chapa na qual se encontram pintados ou gravados um retrato, uma figura, imagens. Em latim, lamina é qualquer folha ou pedaço de metal, ou de outra matéria dura, delgada e chata, destinada a usos diversos. Já baralho será o conjunto de cartas ou lâminas usadas para se jogar.

A palavra arcano só se fixa nas línguas latinas por volta do século XV. Para entender melhor o sentido de uma palavra, a recomendação dos mestres é a de que devemos alcançar sempre as suas raízes mais profundas. No caso, ir ao grego, ou melhor, à filosofia grega. Em grego, arché quer dizer tanto começo, ponto de partida, princípio, como suprema substância subjacente ou princípio supremo indemonstrável.

Um dos grandes temas da filosofia pré-socrática, presente também no Hermetismo e na Alquimia posteriores, é o da busca de uma substância a partir da qual todas as coisas teriam sido feitas. Era dessa substância que tudo decorria. É a partir desta raiz que temos o antepositivo arqu, em português, com o sentido de "aquilo que está na frente, o que está no começo, na origem, ponto de partida de um entroncamento", traduzindo também o referido antepositivo idéias de poder, autoridade, império, superioridade.



Daí, palavras como arcanjo (chefe dos anjos), arquiteto (chefe dos construtores), hierarquia (poder sagrado), anarquia (falta ou ausência de poder), arcaico (obsoleto, primitivo, velho), arquétipo (forjado há muito tempo, padrão, modelo exemplar). Na formação das línguas europeias encontramos a raiz ark, com a indicação de conter, limitar, afastar, exercer, coagir. Exemplos desta raiz estão em muitas palavras do grego, do latim, do francês, do alemão, do castelhano e do português.

Enriqueceremos o sentido da palavra arcano se nos detivermos um pouco no simbolismo da palavra arca, derivada do referido radical. De um modo geral, o simbolismo da arca é o mesmo em todas as culturas e tradições. Os hebreus, por exemplo, tinham a Arca da Aliança e a colocavam sempre no lugar mais recôndito do Tabernáculo (santuário portátil). A Arca continha a essência da tradição judaica, desenvolvida na forma das tábuas da lei.




Arca da Aliança

A Arca da Aliança tinha as mesmas proporções da Arca de Noé, só que em escala reduzida. A Arca é para o patriarca Noé, para a sua família e para muitos animais a embarcação salvadora. É a partir dessa imagem que se elabora a chamada disciplina arcana, um saber secreto escondido nas pranchas de madeira (lâminas) da Arca. A viagem na Arca daria acesso a esse saber, livrando o viajante do dilúvio, isto é, de se afogar no oceano das paixões.


Noutra direção, arca, analogicamente, era um  dos nomes que se davam ao vaso alquímico, princípio maternal, ao qual podemos associar também temas astrológicos (o signo de Virgem) e mitos medievais (o Graal), todos lembrando lugares onde se operam transformações do humano em espiritual, receptáculos onde se encerram possibilidades de renascimento sob uma outra forma mais evoluída.

No latim, arcanus toma inclusive o sentido de "em segredo, em particular", funcionando como advérbio. Já o substantivo "arca" é cofre, armário, prisão, cela, de onde sai o adjetivo arcano (arcanus) com o sentido de discreto, seguro, indubitável, infalível, como na expressão de Ovídio, arcana nox (noite discreta, infalível). Arcano será ainda aquilo que se guarda numa arca, num cofre, por ser misterioso, secreto, valioso.

Outra aproximação que podemos fazer é entre arcano e enigma. Comumente, enigma é algo que por suas qualidades ou particularidades é difícil de entender. Os oráculos na antiguidade, por exemplo, manifestavam-se por enigmas. Ora, o Tarô funciona como um oráculo, palavra que na antiguidade indicava tanto um local, o santuário onde se realiza uma consulta à divindade, como a própria resposta que ela dava enigmaticamente através de um médium, uma pitonisa, uma sibila. No lugar de palavras, temos, no Tarô, então, figuras. Enigma tanto em grego como em latim é algo obscuro, misterioso, que pede a interpretação de um enigmista. Enigmista, no caso, é quem decifra enigmas, função sacerdotal. As atribuições de criar, propor e decifrar enigmas são, como sabemos, do deus Hermes, que tanto fecha como abre o sentido das mensagens, sendo, por isso, ao mesmo tempo, o patrono do Hermetismo e da Hermenêutica. Várias ilações poderiam ser tiradas destas aproximações e relações. Uma delas, muito frutífera quanto às suas possibilidades significativas, seria, por exemplo, a de relacionar o Tarô com o Hermetismo greco-alexandrino e com Hermes Trimegisto.




Édipo e a Esfinge

Dessas sumárias incursões etimológicas, entendo que à palavra arcano poderão ser associadas algumas possibilidades significativas como: 1) o profundamente enigmático, misterioso, secreto; 2) o que é incompreensível, que não pode ser desvendado, a não ser com o auxílio de um hermeneuta, de um enigmista; 3) segredos sobre os mistérios de uma religião, como no Cristianismo primitivo, especialmente quanto à eucaristia (transubstanciação); 4) na Alquimia, um dos grandes segredos da natureza que os adeptos procuravam desvendar através da prática da Grande Obra; 5) remédio maravilhoso, panaceia universal, elixir, que tudo cura, transforma, regenera.


Partindo das possibilidades significativas que acabamos de alinhar, podemos lembrar, por exemplo, que a palavra arcano tanto nos remete a conceitos de enigma como nos aponta para idéias de cura, de remédio, elixir (símbolo de um estado de consciência transformada) ou, de uma panaceia (nome de uma filha do deus Asclépio, nome que significa "a que cura todas as doenças"). Presente em ambas as colocações está subentendida a presença dessa divindade grega, Asclépio, o deus "toupeira", filho de Apolo, grande deus médico da cidade santuário de Epidauro. Seus sacerdotes decifravam enigmas, os sonhos dos que se internavam no santuário em busca da cura. Esta cura era obtida a partir da nooterapia, método terapêutico essencialmente espiritual que levava o doente a uma regeneração física, emocional e psíquica, a uma "metanoia", fazendo com ele acordasse para a sua real identidade.

Mais ainda: podemos ir ao grego e levantar o que na Grécia antiga era entendido por mistério, palavra que aparece muito no Tarô. Mysterion era uma cerimônia religiosa secreta, nome aplicável principalmente aos chamados Mistérios de Elêusis, que falam de experiências de morte simbólica e renascimento. A palavra mystes designava o iniciado nesses mistérios. Por trás dessas palavras estava o verbo grego myo, fechar-se, manter a boca ou os olhos fechados, permanecer silencioso. Lembrar que mychos, do mesmo campo semântico, é a parte mais baixa ou mais profunda de alguma coisa; a parte mais interiorizada de uma casa, de uma gruta, com relação à sua entrada; o interior de uma cidade, de um país; o fundo mar, da terra, de uma montanha; o interior da inteligência, da alma. O caráter esotérico (eso, dentro, o mais íntimo; ensino ministrado a círculos restritos e fechados) estava sempre presente nas chamadas religiões de mistério na antiguidade (cultos de Ísis, Cibele,
 Mitra, Zaratustra, Orfeu, Pitágoras etc.), todos exigindo iniciação, catecumenato (processo de aprendizado pelo qual as instruções são recebidas de viva voz), sob orientação de um mistagogo, de um mestre iniciador, um "professor de mistérios". Evidentemente, se pensarmos em tudo isso não há como não deixar de ver o Tarô como um ensinamento esotérico, com todas as conseqüências que dessa constatação possamos tirar...

Outra questão relacionada com o Tarô, que me parece não suficientemente trabalhada pela maioria dos tarólogos, é a de que ele é um jogo, jogo de cartas que se corporifica num baralho. Esta última palavra tem, ao que parece, origem provençal. A Provença constitui o sul da França. Antiga província, a região, desde o séc.VII AC, era visitada pelos gregos, que a colonizaram, fundando no litoral Massalia, futura Marselha. A língua da região era (é) o provençal, também chamado de occitano.

Quanto a jogo, a palavra é colocada normalmente dentro de um campo semântico muito restrito, sendo vista como designativa de uma atividade sem finalidade útil, ou quando muito, por psicólogos ou pedagogos, como uma possibilidade de análise superficial do caráter do que a ele se entrega. No mais, o jogo é via de regra considerado como uma atividade gratuita, não de todo inútil, que pode funcionar como relaxante, redutor de tensões etc. Ora, a palavra jogo aparece aqui como um sema que se abre para propostas que vão muito além de tudo isto. Perdem-se, se ficamos presos à visão restritiva da palavra, aberturas muito ricas que ela poderá nos dar. O jogo, quando o consideramos por esta perspectiva mais ampla, em que a colocavam os povos da antiguidade, é atividade fundamentalmente agônica (agon, luta) trazendo imagens de luta, combate, acaso, simulacro, determinismo, covardia, heroísmo... Como para o herói grego, sempre uma personalidade agônica, angustiada, a luta aparece aqui como meio de captação de poderes, para que, empenhado no combate, vitorioso, seja a ele possível tanto o aumento da sua capacidade vital como redimensionada a sua personalidade. O jogo vai além de uma atividade específica ao pôr em ação uma totalidade de figuras, de símbolos, implicando, ao mesmo, noções de totalidade, de regras e de liberdade.

O Tarô faz parte, dentro das doutrinas esotéricas, do mundo dos jogos sagrados (o aprendizado do herói na Grécia mítica era feito através dos jogos), que pode abrir aos que a eles se entregam várias possibilidades de transcendência. Todavia, qualquer que seja a avaliação que possamos fazer do Tarô como sagrado, para mim parece claro é que ele escapa a qualquer tentativa de sistematização, pois parece haver nele, sempre, algo impossível de se alcançar. No mais, e acima de tudo, é preciso lembrar sempre também que temos de entrar nele, diante de seu aspecto divinatório, com uma proposta de imaginação educada e com uma grande cautela de julgamento, qualidades que só podem ser obtidas através de uma longa prática (o Tempo, queiramos ou não, nas doutrinas esotéricas, é o Grande Mestre) e com o imprescindível concurso da mente usada diacrônica e sincronicamente, como na Mitologia.


Baralho, baralha em provençal, é o nome dado a um conjunto de cartas de jogar, de número variável, conforme o jogo. A palavra teria vindo de varalia, esta por sua vez oriunda de vara, isto é, de uma braçada de varas ou de vimes, a indicar entrelaçamento, urdidura. No castelhano, baralho pode ser baraja. A palavra, desde que fixada no provençal, toma o sentido de confusão, conflito, disputa, de algo sem organização, desarrumado. Os baralhos, como se sabe, têm origem oriental, derivando todos diretamente das lâminas de cartomancia já conhecidas dos antigos egípcios, chineses, indianos e árabes.

O Tarô, num certo sentido, faz parte também daquilo que os antigos gregos chamavam de mancia (manteia, em grego), adivinhação por meio de algo designado pela palavra que a precede. Cartomancia será, pois, a adivinhação pelas cartas. Uma arte divinatória. Adivinhar é descobrir o que está oculto, seja por meios sobrenaturais, supranormais ou por engenhosos artifícios, algo que geralmente não se pode conhecer ou que não é naturalmente cognoscível. Lembremos que adivinhar vem do verbo latino divinare, predizer o futuro, pressagiar. A palavra divinus em latim quer dizer "dos deuses", adivinho seria aquele a quem os deuses deram o dom de adivinhar. É aquele, no caso do Tarô, que dá um sentido ao jogo, à confusão, às cartas lançadas, por delegação divina, "adivinhando" (função oracular). Esta mesma noção, lembremos, aparece no Hermetismo, na Cabala, na Alquimia, ou seja, a de se passar da indeterminação, da confusão (a alma submetida às paixões) à determinação. Ou, alquimicamente, ir do inferior ao superior, do chumbo ao ouro.

O Tarô, nessa perspectiva, é um jogo e todo jogo é basicamente um símbolo de luta (agon), como dissemos, seja contra o mundo, contra as forças elementares, hostis, contra a própria pessoa que o joga, contra as suas próprias tendências regressivas. Jogando-o, procura-se encontrar através dele um lugar no mundo. O jogo constitui por si mesmo um complexo de relações, de dados e de possibilidades combinatórias através das quais se aprendem tanto noções de totalidade como de regras e de liberdade. Dar-se a um jogo, ao Tarô, no caso, significa, em última instância, investir nele a própria força vital para que seja encontrada a sua melhor adaptação ao mundo real. Por isso, o Tarô é tanto rito de entrada como rito de saída. O Tarô não opera diretamente com a noção de adversário. Ele nos põe antes em contacto com a própria organização do cosmos que passamos de certo modo a imitar quando "jogamos", um percurso individual de iniciação pelo qual se vai de uma etapa a outra num processo de autoconhecimento. Lembremos que para os antigos gregos o processo de individuação e as cosmogonias eram equivalentes. Sob este ponto de vista, é possível encarar o Tarô como uma expressão semelhante àquela que se tem no jogo de relações que encontramos na cruz cardinal da Astrologia, a partir do Ascendente.

O arcano 0 ou 22 é conhecido sob diversos nomes, Louco, Bobo, Bufão, Andarilho, Indefinido. É conhecido também como o arcano que não tem número. Pensemos um pouco no zero. Zero é a total ausência de quantidade, número que corresponde a um conjunto vazio. Aquilo que de mais recuado sabemos sobre o zero está na Índia, uma criação dos místicos indianos, que colocavam em torno de um z um círculo, chamando o símbolo de cifra. Os árabes usaram o símbolo, chamando-o de sifr.


Os gregos chamaram o símbolo de Zéphyro, um deus-vento de sua mitologia, que sopra na direção oeste-leste. Zéfiro passou a designar simplesmente o vento, o sopro, isto é, nada.


A letra z é a 22ª do alfabeto latino, sendo a 6ª do grego. A origem do zero também pode ser pesquisada em outras tradições (maia).

Qualquer que seja a sua origem, porém, o que importa é que o zero é sempre um símbolo de todas as potencialidades, o Brahman do Hinduísmo, no qual tudo que foi, é e será está contido. Equivale também o zero ao ovo cósmico, base de todas as cosmogonias que, como já sabemos, são análogas ao nosso processo de individuação. Simbolicamente, o zero é o princípio feminino, é a matriz, o útero. É o zero aquilo que antecede a manifestação, ou seja, o um.

Na Índia, o zero é o não-ser dotado de energia criadora. Já os sábios muçulmanos sempre demonstraram um particular interesse por este não-ser, por este não-existente, por este nada criador, por eles chamado muitas vezes de Deus escondido, o deus absconditus dos místicos latinos, o deus insondável e infinito, o Todo dos hermetistas, aquele que não se deixa apreender pela razão humana, a não ser pela coincidentia oppositorum.

O zero simboliza também o objeto que não tendo valor por si mesmo, mas somente pela sua posição, confere valor aos outros, multiplicando por dez os números colocados à sua esquerda. Por isso, o zero simboliza também a pessoa que só tem valor por delegação. Um zero à esquerda é uma pessoa destituída de valor. É neste sentido que o arcano 0 do Tarô se coloca. Não sendo numerado, pode valorizar ou anular os outros, segundo a sua posição.


Encontramos a ilustração do que acabamos de dizer na mitologia do Popol-Vuh (poema simbólico e esotérico escrito em língua quiche pouco antes da conquista espanhola, descrevendo a origem do mundo e as tradições religiosas do povo maia). Nessa mitologia, o zero (segundo muitos, conceito descoberto pelos maias, já utilizado por eles há mais de mil anos antes de ter aparecido na Europa) corresponde ao momento do sacrifício do deus-herói do milho por imersão num rio e da sua ressurreição a fim de subir aos céus para se transformar no Sol. No processo de germinação do milho, este momento corresponde ao da desintegração da semente na terra, antes que a vida volte a se manifestar, fazendo aparecer a pequenina haste da planta nascente. Esta ideia está no ocultismo ocidental, na Astrologia, sendo o instante da reversão da polarização, que separa o fim do semi-círculo involutivo e marca o começo do evolutivo no ciclo zodiacal. O zero maia explica assim o grande mito da regeneração cíclica, o eterno jogo entre o 0 e o 22 no Tarô.


Se o 0 indica o início das possibilidades, o número 22 indica o fim. As letras do alfabeto hebraico, como sabemos, são 22, que é também o número das correntes que ligam os dez "sephirot" entre si, elementos essenciais na tradição cabalística.


Os sephirot são atributos do divino, representando a sua manifestação descendente, desde kether (Coroa) até Malchut (Reino).
Existe uma relação natural entre o zero e a numeração, a multiplicidade. É a partir do zero que se desenvolvem os princípios matemáticos de positivo e negativo. Zero é o ponto de chegada da contagem reversiva, indicando uma globalidade indiferenciada e vazia. É por essa razão que o 1, que surge do nada, é seu filho "consubstancial". Por isso, o 1 encerra todas as potencialidades do ser, que no zero existiam em estado informal. Sephira em hebraico é o plural de sephirot, sendo saphar o verbo enumerar, palavras que lembram em grego sphaira, bola, esfera, círculo. Todas estas aproximações sugerem uma forte e determinante "presença" da Cabala no Tarô. A Cabala é um sistema filosófico-religioso judaico de origem medieval (sécs. XII-XIII), que integra elementos que remontam ao início da era cristã, desenvolvido principalmente da Espanha. De natureza mística, esotérica e taumatúrgica, caracterizam-na principalmente indagações sobre a doutrina da criação do universo pelo princípio da emanação divina.


O Louco, um dos nomes do arcano, se considerado a partir do 0, tomará um sentido evolutivo-involutivo, isto é, da matriz original dos números até o estado a partir dos quais eles deixam de existir. Ele representa tanto o vagabundo que caminha como o louco (a mente que não sossega jamais, representada na Astrologia pelo planeta Mercúrio) do rei (o eu superior, o Sol). Poeta, inspirado, alucinado, idiota, o louco em todas as antigas tradições não tinha só a função de divertir, ele gozava também da chamada "liberdade dos loucos", denominada também como "loucura divina", a prerrogativa de poder dizer a verdade sem temor de punição, sob a condição de que ela fosse proferida como brincadeira, como sátira ou como deboche.

Os loucos na antiguidade grega eram sempre seres tocados pelo divino, mesmo no caso da loucura comum, causada por doenças, por males físicos, diferente daquelas formas de loucura enviadas pelos deuses, também chamadas de mânticas (profética, mistérica, poética e erótica). O louco sempre esteve fora das normas, das regras sociais. Uma das prerrogativas do louco é a de poder dizer o que lhe passe pela cabeça, dizer a verdade sem temor nenhum de ser punido. Pela roupa que veste e por outros símbolos que carrega, o louco pode ser visto como uma representação da sabedoria espontânea, ingênua, dos chamados "loucos de Deus", de inúmeras tradições místicas (Índia, Grécia, Islã etc.).



Kiron

Um detalhe importante da figura de que tratamos é o cão, tradicionalmente associado a caçadores, a exploradores. Nessa condição, os cães sempre caminham à frente do caçador e, como tal, são muito importantes na chamada arte cinegética, uma das cinco artes que o centauro Kiron ensinava aos seus discípulos, futuros heróis. Na figura de que tratamos, o cão não vai à frente, pelo contrário parece andar à volta do personagem, atrás. Nos mitos, os cães, simbolicamente, são indicadores de trilhas, de caminhos, andam à frente do caçador (o eu que virá). É neste sentido que deve ser entendida uma antiquíssima tradição dos povos indo-europeus, a do sacrifício desse animal aos mortos, a fim de que lhes fosse servir de guia no outro mundo. É nesse sentido também que devemos entender a posição desse animal em vários mitos e na astrologia (a estrela Sirius, que anuncia a plenitude do verão, estrela da constelação do Cão Maior, que faz a ligação entre as constelações zodiacais de Câncer e Leão). Ora, o cão neste arcano não nos permite pressupor que sua função seja a de guiar, de orientar, de indicar caminhos. Brincalhão e lépido, saltitante, parece simbolizar muito mais a dispersão, a desconcentração, ou seja, a grande dificuldade que o ser humano tem em fixar a sua mente, a atividade do seu pensamento, a dificuldade em organizar, enfim, o conjunto dos seus processos cognitivos e as atividades psicológicas que lhes são correlatas. Uma fórmula alquímica talvez traduza muito melhor o que acabamos de colocar, solve et coagula, ou seja, a alternância entre a conquista e a perda da forma na caminhada existencial.



O 0-22 descreve, nessa leitura, a ronda infinita da criação (o 22 retornando ao 0 e deste novamente àquele). O 0 é o infinito como o En-Sof da Cabala é o vazio absoluto do infinito divino. A Cabala antecede a série dos números (sephirot) por uma fonte não manifesta, o En-Sof, que designa o incognoscível, o incriado. O zero e o infinito, que o Tarô representa pelo 22, são os dois modos diversos da mesma realidade inapreensível.






No Tarô de Marselha, o arcano de que tratamos é chamado de Le Mat, que alguns traduzem por "O Louco". A palavra francesa mat vem do baixo latim, começando a se fixar no século XI. O verbo latino que lhe deu origem é o verbo madere, estar úmido. Mat é contração de maditus, particípio passado de madere, que traduzo por "umedecido", no sentido de "estar tocado", "um pouco embriagado". Esse sentido inicial de embriaguez foi se perdendo, passando mat a designar o que não tem polimento, brilho, ou que o perdeu. Lado mat de um objeto, em francês, é o lado que não brilha, o opaco. Nesse sentido, falamos de uma fotografia mate, esmaecida, que não tem nenhuma cor, fosca, sem luminosidade. Som mat é um som abafado. Mat poderá ser também, em francês, aflito, abatido.

A palavra aparece também através do árabe (mat) no sentido de "não poder se mover do lugar em que se encontra sob pena de ser morto". Em árabe e persa, temos shah mat ou "o rei está morto".



Daí, o xeque-mate do lance do xadrez. Lembremos ainda que em italiano encontramos matto, ou seja, pessoa dominada por impulsos irracionais, que provoca mais hilaredade que apreensão ou aversão pelo seu estado; falamos também em italiano de matto (sei matto?) como privado de sentido ou como de algo muito intenso (una voglia matta). Matto pode ser também adjetivo usado para designar uma parte do corpo não sadia de todo (una gamba matta). Por último, lembremos que em português temos a palavra matusquela, que ou quem não é bom da cabeça, doido. Uma gíria afetiva ítalo-brasileira de São Paulo.

Em inglês, o arcano é designado por The Fool ( Le Fou ou Fol, em francês). Em latim, follis é um balão cheio de ar (os bons estudiosos do Tarô sempre associam o arcano 0 ao elemento ar). O Verbo latino é follere, fazer o vai-e-vem de um fole (follis). Em inglês, fool é o que age com falta de bom senso, uma pessoa estúpida. A palavra designa também o bufão profissional ou aquele que, descontrolado, não sabe administrar seu tempo, seu dinheiro. Tanto em francês quanto em inglês, fou ou fool pode indicar uma pessoa de alegria muito exuberante, extravagante. É desse universo semântico que sai a palavra folia, divertimento, dança, brincadeira, com o sentido de loucura, porque o cérebro de um folião era comparado a um saco vazio (follis). Foliculário será o nome dado ao pasquineiro, ao jornalista de pouco ou nenhum valor .

Já a palavra bufão vem, na sequência, do antepositivo buf, do verbo bufar, soprar, que significa também grotesco (bufo é sapo, em latim). Bufa é também ventosidade anal silenciosa e geralmente fétida. Buffa, em italiano, deu zombaria, burla. Daí, ópera-bufa, ópera de origem italiana (séc.XVIII), ligeira, satírica, espirituosa. O bufão às vezes toma o nome de bobo (este provavelmente originário de balbus, latim, gago, que fala mal, aturdido), indivíduo geralmente grotesco (anão, corcunda), que desde a antiguidade reis e poderosos mantinham ao pé de si para se divertirem com suas caretas, suas graças e zombarias a respeito da própria corte e que podia circular por todas as dependências do palácio.



Desde o século XVI, circulava na França um livro popular, Til l´Éspiègle, baseado numa lenda germânica do século XIV, cujo personagem, Til, o malicioso, o esperto, o arteiro e também algo ingênuo e idiota, parece ter sido tomado para modelo da representação do arcano no Tarô de Marselha. Esta representação caracterizava a figura como um símbolo da experiência espontânea e ingênua da "loucura pura" própria da sabedoria. O mesmo tema, o dos loucos de Deus, lembremos, é encontrado na Índia shivaísta, na mística muçulmana e em outras tradições. Outro dado importante para entender este arcano é que durante a Idade Média os doentes mentais eram obrigados a usar uma blusa e um gorro com guizos. Gozavam da "liberdade dos loucos", não podendo ser responsabilizados pelo que diziam nem pelo que faziam .



O arcano 0 ou 22 é considerado como curinga, como sabemos. Curinga é o indivíduo versátil que se presta a múltiplas e diferentes funções, capaz de atuar em várias posições e de representar diversos papéis, podendo substituir qualquer outro. Entre nós, no Brasil, o curinga é chamado muitas vezes de dunga. Esta palavra significa uma pessoa sem igual em sua especialidade, exímia, arrojada, excepcional. Esta palavra veio para nós da África, com os negros de Angola, zindunga, homem pertencente a uma importante sociedade secreta, aquele que age sub-repticiamente, sendo, por isso, muito importante. Já a palavra curinga, de origem também africana, kuringa, significa fingir. O curinga em inglês é joker, que se liga a jeu, giuoco, jogo, em francês e italiano. O verbo latino é jacere, atirar, lançar. Jactabilis em latim é móvel, aquele que se movimenta com facilidade.

O arcano 0 ou 22, como o Andarilho ou o Indefinido, designações às quais temos que incorporar forçosamente tudo o que até aqui se colocou, nada mais é, afinal, para mim, do que, na perspectiva da cultura ocidental, o deus Hermes, a divindade que une os três mundos, céu, terra e inferno. Mensageiro celeste, Hermes é também o deus ctônico, do reino subterrâneo para onde conduzia as almas. Além de deus das trocas é o de todas as dualidades de que o ser humano pode fazer parte, Hermes é o deus das estradas e das encruzilhadas, dos comerciantes e mercadores. Tanto governa os caminhos que percorremos em vida como o da nossa alma depois da morte. Assimilado ao deus Toth, o da cabeça de ibis, é mestre da sabedoria na medida em que se torna o nosso guia na busca espiritual. É ao mesmo tempo deus da Alquimia ao propor que, através do trabalho entre os elementos, a partir da "matéria prima" (indeterminação, zero), da terra negra, cheguemos ao ouro (22). Esta a Grande Obra que não termina nunca, alternância permanente entre formas que se conquistam e se perdem, oscilação eterna entre o 0 e o 22. Esta oscilação pode ser apreendida pelas inúmeras possibilidades de leitura que nos oferecem os ternários e septenários possíveis entre os números 1 e 21.

Este arcano pode ser visto também como uma expressão do uróboro, a imagem da serpente que engole a própria cauda. A imagem representa, sob uma forma animal, o círculo do eterno retorno, indicando que um novo começo coincide com um fim numa perpétua repetição, ou que o fim e o começo de uma via são uma mesma coisa sob o ponto de vista superior (é neste sentido que a morte é um estado intermediário e não um fim). O uróboro assinala a existência de um indiferenciado de onde todas as coisas saem e ao qual retornam. Podemos ver o arcano, pois, como um símbolo da simples repetição, onde tudo volta ao caos básico ou, ao contrário, como uma renovação perpétua que supera constantemente a mesma fase de morte e renascimento até que atinjamos o indiferenciado (divino) que está além de todos os pares de opostos, que escapa sempre de todas as categorias de nossa lógica e da nossa linguagem.




Quanto à origem do Tarô, impossível certamente chegar a ela. Teria ele vindo dos mistérios sapienciais do antigo Egito, das artes divinatórias da China, da Índia? Teria sido criado por Hermes Trimegisto, durante o período helenístico da história grega, ou elaborado no fim da Idade Média a partir de contribuições astrológicas, ciganas (boêmias), alquímicas, cabalísticas e cristãs? Ou é uma mistura de tudo isto e de algo que talvez nunca saibamos? A viagem que o Tarô propõe não está ligada a peregrinações, travessias de desertos, escalada de montanhas, visitas ao mundo ctônico nem à busca de paraísos como o Valhala, a Pasárgada, o Eldorado, o Bosque do Velocino de Ouro, o Pays de Cocagne, o Jardim do Éden  os Campos Elíseos, a Terra do Nunca, o Jardim das Hespérides, o Ming-Tang etc. O marco zero para o início da viagem que o Tarô nos propõe deve ser colocado numa recusa, a de não querer ser mais como somos. É desse ponto em diante que pode começar talvez aquela que seja a única viagem que realmente interesse, a que podemos fazer ao nosso mundo interior...



Palestra proferida (2005-2006) no encerramento da Jornada com os Arcanos Maiores - Clube do Tarô.