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domingo, 18 de julho de 2021

ISAAC & KRONOS - COMPLEXOS PATERNOS

             

Na base das ordens religiosa, social e política ocidentais, atreladas de um modo geral ao chamado mundo masculino, a figura paterna sempre representou tradicionalmente a autoridade suprema nas três. Pai dos Deuses, Pai de Família e Pai da Pátria são expressões comumente encontradas em muitos textos que discutem tais ordens. Se vamos a outros ramos do conhecimento humano, os que tratam do nosso psiquismo, como a Psicanálise, por exemplo, a figura paterna aparece não só como instância ordenadora do nosso eu superior como aquela que tanto interdita o acesso do homem (filho) à figura materna como lhe inflige simbolicamente vários tipos de castração.

É por todas estas razões que a figura paterna, detentora do poder gerador ativamente considerado, assume vários papéis, os de dominação, de posse, de criador de valores etc. Deus, pai, patrão, mestre, tirano, professor, regente, são os papéis normalmente a ela atribuídos, concebidos, de um modo geral, como desestimuladores ou inibidores de quaisquer esforços de libertação por parte dos que a ela estão submetidos em vários níveis. A figura paterna, com relação aos filhos, é de se lembrar ainda, subsiste, em muitas tradições ocidentais ou não, como um ideal de transcendência que deve ser aceito pelos que dela dependem a título de uma relação inspirada, muitas vezes religiosamente, pelo chamado amor filial.

Para ilustrar este tema utilizei-me da história de Kafka, trazendo para nossa consideração as relações que ele manteve com o Pai, Hermann Kafka, comerciante estabelecido em Praga com negócio de armarinho. Em 1919, Franz Kafka, então com 36 anos, anunciou ao pai que ficara noivo de Julie Wohryzek. A frieza paterna foi o que obteve como resposta. Decepção, mágoa, ódio, talvez, fracasso, sentimentos confusos se misturaram, conforme um documento que escreveu sobre esse acontecimento. Esse documento faz parte hoje da literatura mundial. Seu título: Carta ao Pai. Nele, Kafka, chama o pai ora de regente, tirano, rei, Deus, papéis aos quais acima nos referimos.  Dentre outras expressões, para se referir ao pai, usa uma que ficou muito citada: Tu eras para mim a medida de todas as coisas...

A METAMORFOSE
Em texto anteriormente aqui exposto, Kafka e a Barata, me referi aos complexos que, para mim, estão ligados às relações de Franz com o pai, os de Isaac, de Kronos e de Édipo. Procurarei me ater resumidamente aos dois primeiros, menos conhecidos, deixando o último, para considerações posteriores, por suas ligações com a mitologia grega (Sófocles), nem sempre exploradas adequadamente pelos que do tema edipiano se valeram e, sobretudo, pela importância que Freud lhe deu em sua obra.

Geralmente, dá-se o nome de complexo a um lugar de condensação na nossa interioridade onde represamos sentimentos e representações parcial ou totalmente inconscientes, com enorme carga afetiva. São núcleos, agregados, ajuntamentos de conteúdos psíquicos que não chegando ao nosso consciente navegam de modo autônomo na nossa interioridade. Muitos desses núcleos não têm a devida consistência para se fazerem sentidos. Podem, contudo, ganhar corpo, formando uma espécie de segundo eu, causando divisões quanto à personalidade que o carrega. Um outro eu que pode tomar diversas formas. Adquirem eles, nesse caso, vida própria, tornando-se bastante ativos, impondo-se muitas vezes ao que denominamos vontade, podendo mesmo, em muitos casos, destruir a noção de identidade.

ASCLÉPIO
Os gregos antigos, através dos seus mitos, já haviam notado a importância desse fenômeno. Perto de Atenas, no santuário médico de Epidauro, do deus Asclépio, o deus-toupeira, os sacerdotes que lá viviam, dentre outros procedimentos terapêuticos que adotavam para dissolver ou descarregar a energia assim represada no psiquismo dos pacientes que os procuravam, praticavam a chamada nooterapia, com o auxílio da oniromancia (interpretação dos sonhos), dentre outras técnicas. Estas terapias tinham não só a finalidade de curar as mentes doentes como de reformar o homem por inteiro, psíquica e fisicamente, através de várias atividades e controles (canto, dança, teatro, esportes, cuidados alimentares etc.). O objetivo último era o de provocar nos que lá se internavam a metanoia, a transformação da mente para que os sentimentos represados fossem eliminados. Estes sentimentos, como agentes mórbidos, eram não só os causadores de muitas doenças do corpo físico como de muitos distúrbios na vida psíquica. Cura? Só com a destruição ou transformação dos sentimentos.

A partir de fins do século XIX, com a intensa retomada, no ocidente, das terapias do psiquismo, afastados, ainda que com muita dificuldade, os preconceitos religiosos e os da ciência oficial, aos complexos foram sendo atribuídos nomes de vários personagens do mito, da religião e da literatura. Através desses nomes definiram-se comportamentos, padrões de conduta, formando-se uma espécie de demonologia, que, em grande parte, passou dos confessionários religiosos para os consultórios médicos. Os exemplares desse universo estão nos mitos de diversas culturas. Muitos os chamam de arquétipos, modelos de comportamento, há muito forjados, que se impunham. Arche, em grego, é palavra que lembra superioridade, comando, anterioridade, antiguidade, poder, precedência; typos é marca impressa num corpo, em alguma coisa. Arquétipo, numa tradução livre, é o poder do antigo, do que foi forjado há muito tempo e que se impõe.

Os exemplares desse universo estão nos mitos, nas lendas, na literatura, nos contos, em histórias muito antigas, fazendo parte de tradições às vezes esquecidas ou perdidas, encontrados em todas as culturas. Sua origem é muito discutível. Partiram de um tronco único? Ou cada sociedade os fabricou? O que parece mais aceitável é que esses padrões de comportamento aparecem como símbolos a partir de um modelo original. Conforme o contexto social em que aparecem, são atualizados simbolicamente em cada momento histórico, como se disse, pela arte, pela literatura, pelo teatro e hoje pelo cinema, pelo teatro, pela chamada comunicação de massas.

O revestimento básico desses padrões de comportamento, na cultura ocidental, é dado, na sua maior parte, pela mitologia grega, não se excluindo deste predomínio, porém, o fato de outras culturas terem colaborado bastante para dar vida a outros modelos. Os complexos constituem um entrave na vida de qualquer pessoa, criando sempre muitos obstáculos para o pleno desenvolvimento de sua personalidade. Sociedades muito rígidas, de características acentuadamente puritanas, por exemplo, favorecem o aparecimento e a fixação desses complexos. 

Dentre alguns complexos vindos desse mundo, um dos mais significativos é o de Isaac, que aqui abordamos. O nome do filho de Abraão e de Sara, Isaac, deriva do verbo rir. Os pais o tiveram já velhos, daí o riso, as gargalhadas, quando anunciado o seu futuro nascimento. Deus testou a fidelidade de Abraão (10 testes). Um dos testes foi o de que ele deveria oferecer o filho tão aguardado ao sacrifício.

Segundo a tradição bíblica, Abraão era um respeitado patriarca e grande astrólogo em sua terra (Ur, Mesopotâmia). Quando tinha 75 anos foi visitado por Deus. Recebeu ordens para abandonar sua casa e seus pais e partir em direção de uma terra que Deus lhe mostraria.  Seguindo em direção de Canaã, com sua esposa Sara, seu sobrinho Lot e companheiros convertidos à sua fé monoteísta, Deus lhe prometeu, dentre outras coisas, uma descendência numerosa, tão numerosa quanto as estrelas do céu, como está no texto bíblico. 

Quando Abraão chegou aos 99 anos, Deus lhe apareceu novamente para ratificar com ele e seu povo sua aliança e ordenou que ele se circuncidasse, um símbolo da referida aliança, prática a ser mantida por todos os seus descendentes. Como a tradição revela, foi a partir desse acontecimento que Abraão se tornou perfeito, que o nome de sua mulher, também muito idosa, foi mudado de Sarai (minha princesa) para Sarah (princesa de todas as nações), e que se anunciou para breve o nascimento do filho tão desejado. Assim aconteceu, nascendo Isaac.

SACRIFÍCIO DE ISAAC
(REMBRANDT,1606-1669)
Homem cheio de devoção e benevolência, Abraão foi submetido então por Deus a vários testes para que, através deles, desse demonstração de sua fé. O seu último e mais difícil desafio, como a Torá revela, era o do sacrifício de Isaac. Conhecemos os detalhes da viagem do pai e do filho, então com 25 anos, para o local do sacrifício, o monte Moriá. No último momento, porém, quando Abraão estendeu a mão para cortar a garganta de seu amado e dócil filho, surgiu o arcanjo Gabriel que salvou Isaac. Akedá é como os judeus chamam este teste de obediência, também designado por alguns pelo nome de teste da amarração. 

No lugar de Isaac foi colocado um carneiro, animal sacrificial por excelência, que, como se sabe, representa o princípio solar viril, luminoso, ligando-se o seu simbolismo ao ciclo das estações. Na tradição judaica, cristã e muçulmana o animal torna-se a vítima sacrificial do período do Pessach, da Páscoa e do Ramadã, inclusive entre os povos védicos. Adotado especialmente pelos cristãos, o animal representa o Messias, o Verbo divino. Sempre ligado a ritos de fertilidade, ele aparece associado à chamada festa equinocial da primavera, enquanto a festa do bode tem relação com a das colheitas. 


Lembremos que bem antes de Abraão, o primeiro patriarca judeu, o carneiro já aparecia como um símbolo astrológico-religioso. O shofar, pequena trompa feita com chifres desse animal, passou a ser empregado em rituais religiosos e usado em sinagogas ao fim do Yom Kipur. No cristianismo, o Pessach tomou o nome de Páscoa. Outra versão, porém, narra que foi Abraão quem colocou, como um sacrifício alternativo, no lugar de Isaac um carneiro, animal que aparecia como suporte simbólico de numerosos ritos que falavam da continuidade da vida. O que se sabe quanto a Isaac, é que após a traumática experiência da akedá, ele se retirou da vida mundana, mas ficou com sérios problemas nos olhos por ter olhado o céu enquanto estava amarrado no altar do sacrifício e visto Deus. Além disso, seus olhos foram também afetados pelas lágrimas de chorosos anjos, apiedados de sua sorte.

Sob o ponto de vista astrológico, não há como se negar que a história de Isaac esta repleta de símbolos arianos. Áries é o signo do Carneiro, marcado pela entrada do Sol, a cada ano (hemisfério norte), a 21 de março, nessa constelação (equinócio da primavera). Áries é o signo que marca o despertar da natureza, a passagem do frio ao calor, da escuridão à luz. Lembremos que o carneiro entre os muçulmanos está na relação dos dez animais admitidos por Maomé no paraíso. A divindade védica Kubera, guardiã dos tesouros e das riquezas da Terra, aparece cavalgando um carneiro divino, sua montaria (vahana).  

Isaac foi o primeiro judeu a ser circuncidado no tempo certo (oito dias depois do nascimento). Para desfazer boatos sobre seu nascimento, Isaac foi criado de modo a que se parecesse o máximo possível com seu pai. Por exigência de Sara, Ismael (Deus escuta, em hebraico) e a mãe, a escrava Agar, foram expulsos por Abraão, tornando-se nômades do deserto. Apareceu-lhes então um anjo que os conduziu a um poço onde o Senhor anunciou a Agar que de seu filho nasceria uma grande nação. Seus descendentes seriam chamados de filhos do vento. Nômades e livres, eles tomaram o nome de beduínos (de badw, deserto) por se considerarem os únicos descendentes diretos de Ismael. Isaac se casou com Rebeca e se tornou pai dos gêmeos Esaú e Jacó. 

CHOURAQUI
Diante do exposto e das preciosas informações que retiramos da "insólita Bíblia" (tradução francesa e comentários de André Chouraqui, 1917-2007), o tema do complexo ilustrado por esta história pode ser explicitado: Isaac é o arquétipo dos filhos aos quais os pais transferem os seus problemas para que estes os assumam ou paguem por eles; é o filho que passivamente se coloca à mercê do pai, que procura lhe impor uma profissão ou fazê-lo seu herdeiro profissional; é o caso do descendente que deve assumir deveres ou responsabilidades paternas sem se revoltar. O patriarca hebreu Abraão é, nesta perspectiva, um ser cruel, orgulhoso, dominador, um ser da separação que rejeita o amor à posteridade, apesar de tudo o que os textos da ortodoxia judaica defendem contrariamente. Na Idade Média, Isaac tornou-se o símbolo do martírio judaico. A morte de crianças judias pelos pais por causa da perseguição cristã ou pelo batismo forçado foi inspirada pela akedá de Isaac, acompanhada sempre da esperança da ressurreição. 

HEGEL, 1770-1831
Ao longo da tradição cultural da humanidade, a história de Abraão e de Isaac foi interpretada e usada de diversos modos. Hegel, por exemplo, antes de Freud, viu no Deus dos judeus a imagem da crueldade, sendo Abraão um ser da separação; seu desprezo pela humanidade leva-o a rejeitar um dos sentimentos mais profundos do ser humano, o amor à posteridade. De um modo geral, inclusive na visão de escritores modernos que se valeram do tema, como Kierkgaard, Marcel Proust, Alfred Döblin e Thomas Mann, Isaac é o exemplo da vítima consentida, escravo do Pai, ser do silêncio e da solidão, sendo Abraão um patriarca egoísta e orgulhoso.

MOZART, 1756-1791
O complexo de Isaac apresenta variadas nuances. Podemos, por exemplo, encontrá-lo no mundo da realeza, nos casos de Luís XV e Luís XVI. No mundo empresarial, temos muitos casos de filhos que nos dão lamentáveis e patéticos exemplos. Entre os profissionais liberais de sucesso são notáveis os casos do complexo de Isaac, isto é, de filhos que, sem a mínima condição profissional, herdam empresas, escritórios e clínicas famosos. Um exemplo histórico de como não funcionou o complexo foi o de Mozart, ainda que Leopoldo, seu pai, tentasse impô-lo ao jovem Wolfgang. O pai pretendeu fazer com que ele, desde a infância, “entrasse” no complexo. Só que Mozart era imensamente maior do que o papel que o pai queria lhe impor. Além de inúmeros exemplos colhidos no mundo real, a literatura poderá ser também uma boa fonte para os estudos de casos deste complexo, como encontramos em Eça de Queiroz, Balzac, Turgueniev etc. 

Quanto aos gregos, como dissemos, deixaram-nos eles um dos melhores exemplos de um complexo semelhante ao de Isaac (mas muito diferente em vários aspectos) centrado na figura paterna, arquetípico para a cultura ocidental. Os antigos poetas gregos especialmente Hesíodo, sempre consideraram a Idade do Ouro da mitologia grega, que coincidiu com a do reinado de Kronos, como um período muito favorável aos humanos. Na realidade, porém, o que temos, nesta Idade, é uma sociedade estruturada com base na figura paterna, na sua necessidade de concentração de poder, na sua rigidez e na eliminação de qualquer forma de sucessão. É por esta razão que, segundo o mito, Kronos exigia que Reia, sua esposa, lhe entregasse, assim que nascidos, os filhos para devorá-los. Este modelo grego aproxima-se muito do que Franz e seu pai Hermann viveram. Kafka, entretanto, a seu modo, a duríssimas penas, conseguiu (?) superar o massacre a que o Pai o submeteu. Outro caso  exemplar, que ilustra à perfeição este complexo, é o do italiano Gavino Leda, cuja história foi levada exemplarmente para o cinema (Padre Padrone, obra-prima) pelos irmãos Taviani.

SATURNO (GOYA, 1746-1828
Ao complexo de Kronos damos também o nome de complexo do sucessor ou do herdeiro. Nos tipos mais significativos dos que neste complexo melhor se enquadram temos os casos daqueles que jamais se sentem à vontade na relação pai-filho, sempre vivendo na defensiva com relação ao pai, no seu temor, na sua dúvida, num eterno autoquestionamento, modos de ser que costumam, considerados mais de perto, tipificar muitas fases de estados depressivos ou bipolares. É por tudo isso e muito mais que Saturno (Kronos na mitologia) é conhecido também como o planeta da melancolia, estado mórbido, depressivo, caracterizado por um esgotamento físico e moral que pode levar a um progressivo apagamento do eu, acorrentados que ficam os filhos a um destino que sempre significa aniquilação, frustração e autocrítica negativa. Foi Goya quem talvez tenha melhor ”ilustrado” este complexo com a sua fantástica obra Saturno devorando um de seus filhos, encontrada na Quinta Del Sordo, hoje no Museu do Prado.


S

quinta-feira, 3 de junho de 2021

A PEÔNIA


PEÔNIA
No Ocidente, as sementes e raízes da peônia, desde a antiguidade, têm uma reputação medicinal. É a peônia uma flor do gênero das ranuculáceas (família de plantas venenosas, cujas raízes lembram as patas de uma rã). O nome da flor foi retirado da palavra grega curandeiro (paion). Paion, nome já registrado em Creta, bem antes de seu aparecimento na Grécia, é um dos apelidos do deus Apolo, o médico dos deuses, pai de Asclépio, divindade médica de Epidauro; era Apolo irmão gêmeo de Ártemis, deusa lunar. Outro nome da peônia entre os gregos: rosa sem espinhos, por sua cor e semelhança com a rosa.

APOLO

Em grego, ferir é paiein. Apolo era aquele que "como num golpe de mágica" curava as feridas, as doenças. Próximo deste verbo temos em grego pauein, que significa acalmar, suprimir, fazer cessar as moléstias. Com o tempo, o apelido Peã se juntou ao nome de Apolo para designá-lo como uma espécie de deus curandeiro, a grande divindade das curas. A palavra serviu também para designar um hino de agradecimento cantado por aqueles que tinham a sua saúde por ele restaurada. O poeta Píndaro é o maior cultor deste gênero poético, um gênero do qual saíram muitos ditirambos, peãs e trenos, estes últimos lamentos fúnebres, cantos chorosos. 

ASCLÉPIO
Para Homero, Apolo-Peã foi o deus médico que curou as feridas dos deuses Hades e Ares, agredidos por Hércules. Asclépio, filho de Apolo, também acabou por receber o apelido. Os deuses tinham os seus males (feridas) curados por um bálsamo aplicado por Apolo. O poeta da Ilíada prestou grandes homenagens aos poderes do deus, que ensinou inclusive os humanos a colecionar ervas dessecadas, conservadas e organizadas segundo uma sistemática, dando origem ao que passou a ser conhecido mais tarde como fitotaxonomia, ciência que lida com a descrição, identificação e classificação dos vegetais. 

A peônia era considerada por Homero (Ilíada) como a “rainha das ervas”; na poesia bucólica grega (séc.III DC) tinha o mesmo status, sendo aclamada inclusive por sua beleza e poderes curativos, tornando-se, nas mãos de Apolo, uma verdadeira panaceia, aliás, nome de uma das filhas de Asclépio, Panaceia, a que socorre a todos. As demais filhas de Asclépio eram Áceso, a que cuida de; Iaso, a cura; e Higeia, a Saúde (há uma bela estátua desta última no MASP, em São Paulo). 

HIGEIA ( MASP )
O nome Asclépio tem relação com a palavra grega, toupeira, animal insetívoro, de olhos muito diminutos, quase cego, corpo alongado, com patas traseiras adaptadas para cavar. Simbolicamente, no mito, a toupeira aparece como um animal de natureza ctônica, que conhece as profundezas da terra. Figuradamente, designa pessoas que trabalham em lugares escuros. Os sacerdotes de Asclépio “desciam” à escuridão do psiquismo dos doentes que procuravam a clínica de Epidauro. Para tanto, sabiam usar com grande habilidade a oniromancia, a técnica de interpretação dos sonhos. 

HÉCATE
A peônia era também encontrada nos jardins da deusa Hécate, que tinha um conhecimento profundo das ervas, o que confirma os seus poderes de maga. Segundo consta, Hécate, a deusa triforme das encruzilhadas, que vivia no mundo infernal, num palácio ao lado do deus Hades, mantinha um jardim famoso na Cólquida, perto do Mar Negro, cercado por altas muralhas, com o auxílio de Medeia (sobrinha da maga Circe), que às vezes passava por sua filha. Já entre os judeus, a flor era conhecida por causa de Moisés, que sabia de suas virtudes anti-demoníacas. Conta-se que ele aconselhou sua sogra, perturbada por espíritos infernais, a se dirigir ao pico de uma montanha, onde Deus lhe indicaria lugares em que a peônia crescia.  


Dioscórides, médico e botânico grego do séc. I, compilou a primeira descrição sistemática de 579 plantas da Grécia e definiu cerca de 4.700 usos medicinais dessas plantas e o seu modo de ação. Seu trabalho chegou até nós pela tradução latina do texto De Materia Medica (c.65 dC). Esse trabalho teve importância fundamental para a medicina europeia até o séc. XVII. Galeno, nascido em 131 dC, registrou mais tarde as propriedades das plantas descritas por Dioscórides e desenvolveu a concepção humoral do corpo humano.   

Dentre as prescrições de Dioscórides, destacamos: para conter o fluxo menstrual, dar, numa taça de vinho, de dez a doze sementes da peônia vermelha; para combater pesadelos, histeria e dores uterinas, elevar a dose, dando-se quinze sementes. Depois do parto, para rápido restabelecimento das mulheres, acrescentar ao vinho raízes secas da planta.


DISCÓRIDES
Nos trabalhos de botânica que deixou, Dioscórides fez a descrição de dois tipos de peônia, uma chamada "macho" e outra "fêmea", mencionando que cresciam em zonas montanhosas, mais nos picos, e nos seus contrafortes. Plínio, o Velho, grande naturalista e enciclopedista romano, nos fala que as peônias cresciam nas áreas sombrias das montanhas e que eram um ótimo remédio para pessoas que tinham pesadelos. Já Teofrasto, grego, sécs. IV-III AC, grande botânico, discípulo de Platão e depois de Aristóteles, mencionara o valor medicinal da peônia, desfazendo inclusive a história que herboristas haviam espalhado, a de que sua colheita só deveria ser feita à noite para que fossem evitados ataques de pássaros. A história, evidentemente, procurava evitar que pessoas não iniciadas se entregassem à colheita predatória da flor.

THESSALUS
No tempo do imperador Nero, havia um médico, Thessalus (nome grego, de um filho do famoso Hipócrates) de enorme fama, que freneticamente denunciou todos os seus colegas como incapazes. Foi enterrado na Via Appia. Uma inscrição, em grego, na lápide, proclamava-o o Conquistador dos Doutores. Thessalus enviou uma carta a Nero, aliás muito chegado a convulsões (epilético?), e nela discorria sobre a peônia, afirmando que ela crescia e minguava simpaticamente como a Lua; se arrancada na fase crescente, sua raiz não pode ser utilizada para a expulsão dos demônios, agravando ela a moléstia do paciente. Deve-se arrancá-la na fase decrescente lunar.

Astrologicamente ligadas ao Sol, as raízes da peônia, segundo antigas crenças, só podem ser colhidas à noite e, mesmo assim, se um cão a ela estiver amarrado (?), porque ela pode soltar um grito, fatal para quem ouvi-lo. Este cuidado evitará também um possível ataque de aves, no caso o pica-pau, ave de Marte. Esta ave, como se sabe, era muito honrada na Roma antiga, pois alimentou Rômulo e Remo quando o leite da loba se tornou insuficiente.

SHISHI.
Na China, como flor nacional, a peônia se liga a significados de riqueza e de honras, tanto pelo seu porte como pela sua cor vermelha; está muito presente em todas as festividades populares, especialmente nas da primavera, em casamentos e nascimentos. Na China era conhecida com a rainha das flores. Já no Japão, também, era a flor da boa sorte, da beleza, da fertilidade, da longevidade e da prosperidade. Ao lado do leão, formava o símbolo shishi, como representação do equilíbrio entre o poder e a beleza. Associa-se também ao cinábrio e à fênix, o primeiro, droga alquímica e a outra, ave mítica, ambos trazendo ideia de longevidade e de imortalidade..

Por causa de sua cor, avermelhada, que sugere vitalidade, a peônia foi também muito apreciada na Idade Média. Os grânulos e raízes de uma peônia colhida em noite sem Lua e aplicados em compressas sobre os pulsos ou colocados em volta do pescoço, como um colar, eram remédios excelentes contra a epilepsia. Lembre-se que ainda hoje, em alguns países da Europa (no interior da França, por exemplo), um colar feito com sete raízes da planta, colhida na Lua decrescente, entre a meia-noite e o nascer do Sol, é considerado um remédio eficaz contra a dança de São Guido ou de São Vito, coreia, um mal nervoso acompanhado de convulsões. 

PAEONIA OFFICINALIS
Chamada na Europa de rosa de Nossa Senhora, símbolo da Virgem Maria, a peônia dos jardins (Paeonia Officinalis), sempre foi muito procurada por suas inúmeras virtudes: ajudava muito as crianças quando do aparecimentos dos primeiros dentes; era, para muitos, além do que já se apontou acima, remédio infalível contra a asma e a gota. Recomendava-se também a peônia aos homens do mar, pois ela evitava tempestades.


PRINCESA AYA E PEÔNIAS

Ao longo dos séculos, inúmeros poetas escolheram a flor como seu tema predileto, aproximando-o das belas donzelas, como a concubina favorita do imperador. Neste particular, merece referência também a ópera O Pavilhão das Peônias que exalta a coragem dos jovens contra os costumes da sociedade confuciana feudal, especialmente contra o casamento arranjado. Um dos textos mais famosos sobre a flor é o da lenda Os Galanteios de Lu Dongbin para a Peônia, que narra o assédio amoroso de um imortal taoista à fada Peônia para obter o grampo sagrado da Rainha Celestial a fim de salvar uma aldeia.

MANUSCRITO DO SÉC. XIII
Devido ao seu aspecto exuberante, farto, ereto e elegante, a peônia como flor nacional sempre nos apontou para símbolos relacionados com a nobreza e a riqueza. Invariavelmente, sempre foi representada junto de outros vegetais, frutos e flores para que se associem os seus símbolos. Com hibiscos, temos, por exemplo,  riqueza e reputação, com maçãs sinalizam riqueza e bom crédito, com pêssegos apontam sobretudo para longevidade. Quer pensemos em regiões geográficas diferentes do país ou grupos étnicos que parecem pouco ou nada terem em comum, é sempre através dela e de sua simbologia, que espantosamente vamos encontrar algo como um grande centro que a todos e tudo une.  






segunda-feira, 11 de novembro de 2019

DOS PECADOS II

                                          
OS SETE  PECADOS  CAPITAIS

2) Pecado mortal é pecado grave que pode ser considerado de diversos modos, mas sendo, antes de tudo, uma ação livre e consciente do homem que quebra a relação homem-vida religiosa. O homem perde totalmente o contacto com o divino, ao qual se ligava pela religião (de religare, religar, latim). O pecado mortal introduz uma desorganização no mundo, rebaixando o divino, o espiritual, a níveis puramente físicos. A gravidade do pecado mortal tem dois componentes profundamente deletérios sob o ponto de vista da lei divina: ele é cometido com pleno conhecimento, isto é, quem o comete sabe o que está fazendo e a ele adere plenamente com a sua vontade.

Dolo é procedimento fraudulento, denota má-fé, é logro, ardil, que pode levar alguém a fazer com que outra pessoa pratique um ato lesivo contra si mesma. No Direito Penal, é ação deliberada de violar a lei por ação ou por omissão, com pleno conhecimento da criminalidade do que é feito. Nestes sentidos, o pecado mortal causa a perda da graça divina, levando à danação eterna. Esta danação eterna entre os antigos gregos significava o encerramento da alma no Tártaro, a camada mais profunda do Hades (O Inferno), de onde ela jamais sairia, isto é, reencarnaria, lugar de sofrimentos eternos, onde a luz jamais chegava. 


INFERNOS ( LIVRO DAS HORAS DO DUQUE DE BERRY , C 1415

O pecado mortal, sob os aspectos acima mencionados, é, pois, sempre doloso, isto é, quem o comete tem a deliberada intenção de cometê-lo, de violar a lei divina, tem pleno conhecimento do que está fazendo. Aquele que vive em estado de pecado, cometendo, por exemplo, continuamente, os chamados pecados capitais, está preso a um destino que o levará certamente à danação eterna. Para sair deste estado, será preciso que o pecador retorne ao reino de Deus através da Graça, pelo arrependimento e pela penitência. Para Santo Tomás, os vícios capitais são sete vícios especiais que gozam de uma especial liderança. O vício compromete muitos aspectos da conduta humana, é uma restrição à autêntica liberdade e um condicionamento para o mal.


O   DIA   SEGUINTE  ( EDVARD  MUNCH , 1863 - 1944 )

Para possibilitar ao fiel receber ou voltar a receber a graça divina, a Igreja católica instituiu os sacramentos, atos rituais não só a tanto destinados como também a conferir sacralidade a certos acontecimentos da vida cristã. Os sacramentos, como sabemos, são sete: batismo, confirmação (crisma), eucaristia, reconciliação (confissão, penitência), unção dos enfermos, ordem e matrimônio.

A CONFISSÃO DE UMA MULHER ITALIANA
(KARL PAVLOVICH BRYULLOV, 1799-1852)
A instituição da confissão sempre mereceu grande destaque para garantir que o crente voltasse a receber a graça divina. Este destaque foi muito realçado entre os sécs. XIII a XIX. Os confessionários foram realmente os centros através dos quais se desenvolveu um verdadeiro drama entre a dialética da culpa e do perdão. O confessor foi uma espécie de médico de almas durante esse período. Milhões de pessoas durante os séculos apontados passaram por confessionários no mundo ocidental em busca do perdão, lugares onde sofredores, seres culpados, angustiados, encontravam a sua redenção. 

SANTO  AFONSO  DE  LIGÓRIO
Santo Afonso de Ligório escreveu no seu Guia do Confessor: para cumprir os deveres de um bom pai, o confessor deve mostrar-se cheio de caridade, e o primeiro uso que deve fazer dessa caridade consiste em acolher com igual benevolência todos os penitentes, pobres, sem instrução e cobertos de pecados. Recomendava o autor, além de uma abertura especial para a benevolência, que fosse adotada uma técnica cuidadosa de escuta e de questionamento do pecador. 

A maneira afável e cuidadosa proposta por Santo Afonso de Ligório foi adotada pela Igreja católica até a segunda metade do século XIX. Tal procedimento não impediu, porém, que uma certa hostilidade se fizesse sentir, principalmente por parte dos homens, com relação ao sacramento da confissão. Os sacerdotes, em muitos casos, foram acusados de intervir na intimidade dos lares, na política, de opor a mulher ao homem etc. 

Outro fator que afetou bastante o sacramento da confissão em meados do séc. XIX foi um conjunto de ideias que desde o final do séc. XVIII entrou em circulação. A verdade das religiões, tida como revelada, indiscutível, começou a ser combatida por intelectuais que falavam, muitos sem o saber direito o que faziam, em nome da nova classe ascendente, a burguesia. No geral, este movimento que filosoficamente tomou às vezes o nome de Iluminismo ou de Enciclopedismo, se opunha à ”verdade” de que os centros da vida estavam  na Igreja, na realeza, na nobreza e na tradição. Não mais confundir o presente com o eterno, como queria a Igreja. Combater a espiritualidade cristalizada, refundi-la no sentido de torná-la algo vivo, em permanente movimento.

ASCLÉPIO
Outro grande problema para as religiões, esvaziando mais os confessionários,  tomou forma na segunda metade do século XIX: o papel de ajudar as pessoas na solução de seus crimes, pecados ou faltas, geradores de crises de consciência, começou a ser assumido por certos profissionais da área médica. Com a “redescoberta” da chamada vida subconsciente (já conhecida pelos antigos gregos do Santuário Médico de Epidauro, do deus Asclépio), esses profissionais, que hoje são os nossos psicólogos, psiquiatras ou psicanalistas, vêm, desde os fins do séc. XIX, desempenhando, em grande parte,
SANTUÁRIO  DE  EPIDAURO ,  RUÍNAS
com maior ou menor sucesso, com o auxílio ou não da Química, a função de psicoterapeutas, cumprindo, em grande parte, senão totalmente, a função que antes cabia aos sacerdotes nos confessionários. Pertinente por isso, aqui, a observação jungiana de que os modernos tratamentos, baseados na análise, tiveram origem no sacramento da confissão. 

  CAVALGADA  DOS  PECADOS
Os pecados mortais mais comuns são: 1) Idolatria, a real ou a simbólica. 2) Substituição do amor e do serviço a Deus pelos bens do mundo (conforto e prazer); neste item estão incluídos a falta à missa dominical; o trabalho dominical desnecessário; fazer compras aos domingos; o marido, acomodado, que deixa a esposa assumir a condição de cabeça do casal; controle da natalidade; aborto, laqueadura e vasectomia etc. 3) Incesto. 4) Adultério. 5) Concubinato. 6) Masturbação. 7) Falta de modéstia no vestir. 8) Embriaguez e drogas. 9) Práticas homossexuais. 10) Heresia. 11) Apostasia. 12) Eutanásia. 13) Agnosticismo. 14) Atos no vestir que mais revelam o corpo que o cobrem. 15) Inseminação artificial e muitos outros pecados que seria longo demais  aqui enumerá-los. O papa Gregório X (Concílio de Lyon, 1274) declarou que as almas daqueles que morreram em pecado mortal ou apenas com o pecado original, em qualquer caso, descem imediatamente ao Inferno, embora punidos com diferentes castigos.


EVRÁGIO DO PONTO
Dentre os pecados mortais destaque especial para os pecados capitais (etimologicamente, de caput, capitis, em latim, cabeça, no sentido de elevado, de importante). Embora o tema dos sete pecados capitais já tivesse aparecido antes do cristianismo, quem teve a ideia de listá-los foi o monge asceta Evágrio do Ponto (séc. IV dC), autor do livro Origens Sagradas de Coisas Profundas. Como um bom asceta, muito preocupado com as tentações mundanas, vivendo em locais afastados dos centros urbanos, Evágrio procurou fixar aqueles que, segundo a tradição, mais facilmente corrompiam os homens.

Estes pecados, na Igreja católica, entretanto, só foram devidamente fixados no séc. VI dC, pelo papa Gregório Magno. Para tanto, ele usou as Epístolas de São Paulo onde aparecem definidos, como pecados, vários vícios de comportamento:: Orgulho (Soberba), Inveja, Ira, Indolência, Avareza, Gula e Luxúria. Nesta lista, a Indolência entrou no lugar da Acídia ou Preguiça e a Melancolia foi substituída pela Inveja. 

 A  DIVINA  COMÉDIA
Dante Alighieri, entre os séc. XIII e XIV, em sua A Divina Comédia, concebeu o Inferno como uma espiral descendente dividida camadas, que descem da superfície da Terra até o seu centro. Quem o guiou nessa viagem foi Virgílio, o poeta da Eneida. É no oitavo ciclo, dividido em dez fossos (malebolges, fossos do mal), que são punidos os que cometeram pecados mortais, os fraudulentos, os rufiões, os sedutores de toda espécie, os

aduladores, os simoníacos, os adivinhos, os feiticeiros, os políticos corruptos, os hipócritas, os ladrões, os conselheiros fraudulentos, os astrólogos, os provocadores de escândalos, os heresiarcas, os alquimistas, os falsificadores etc. A lista dos sete pecados capitais só se tornou oficial, porém, no séc. XIII, com a Suma Teológica, de Santo Tomás de Aquino. 

Ainda que encontremos as noções de pecado em várias religiões, como no judaísmo e no protestantismo, a referente a pecados capitais parece ser exclusividade do catolicismo. O nome que aparece aqui é o de Santo Tomás (1228-1274), teólogo e filósofo italiano, nascido em Aquino, perto de Nápoles.  Recebeu o apelido de Doutor Angélico tanto pela santidade de sua vida como pela importância de sua obra filosófica. Ele nos explica que quando a Igreja católica usa a palavra capital para designar os referidos pecados está se fazendo, primeiramente, uma referência a uma passagem de São Paulo, em Coríntios: um homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta desonra sua cabeça. Em segundo lugar, capital tem a ver com um versículo das Lamentações: espalharam-se as pedras do santuário pelas cabeceiras de todos os caminhos. Em terceiro lugar, Tomás nos diz que cabeça significa chefe ou governante do povo, pois os seus outros membros são de certo modo por ela governados. A lista de Santo Tomás era a seguinte: Vaidade, Inveja, Ira, Acídia, Avareza, Gula e Luxúria. 

TRIUNFO DE S. TOMÁS
(B.GOZZOLI ,1420-1497)
Para Tomás de Aquino os três sentidos supracitados têm relação com os vícios capitais. Além disso, prossegue o Doutor Angélico, um pecado pode se derivar de outro de quatro maneiras: 1) pela supressão da graça divina; 2) o pecado predispõe a uma inclinação, podendo criar um hábito; 3) um pecado costuma oferecer matéria a outro; 4) um pecado causa outro quanto à finalidade, isto é, para cometer um pecado, um homem pode se servir de outro. 

A Igreja católica desde o início, isto é, desde que definidos os pecados capitais, procurou oferecer aos seus fiéis meios de enfrentá-los, as chamadas virtudes fundamentais. Foram Santo Ambrósio de Milão, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino que, cada um a seu modo, a partir de Platão, fixaram virtudes que podem auxiliar os pecadores. A palavra virtude vem de virtus, latim, onde tem o significado de qualidades que fazem o valor de um homem física e moralmente. Virtus, por sua vez, vem de vir, viri, homem (em oposição à mulher), homem na plenitude do termo, distinto de homo, ser humano.


SOPHROSYNE, 1872
( E.BURNE - JONES )
Chamadas também de virtudes cardinais, as virtudes fundamentais são quatro: 1) prudência, originalmente em latim sapientia, aquela que ajuda a discernir o inferior do superior, o bem do mal, ligada a ideias de escala, de medida, de regra. É considerada mãe de todas as virtudes. Praticada, permite que o homem aprenda a entender o que são as paixões, a razão e a fé. Esta virtude tem relação direta com a sophrosyne dos gregos, palavra que lembra comportamento precavido que leve em consideração os outros; aponta-nos etimologicamente a palavra para ideia de sanidade moral, para autocontrole, moderação. Na mitologia grega, Sophrosyne era um daimon, uma entidade sobrenatural situada entre os humanos e os deuses. Atuava no sentido contrário de Afrodite, deusa que inspirava grandes paixões. Como Aidós, o Pudor, outro daimon, Sophrosyne, desgostosa com o comportamento dos humanos, abandonou-os, indo viver entre os olímpicos.  

2) justiça, de jus, juris, o direito, em latim, o que é reto. Justitia é aquilo que é conforme o que é justo, reto, sentimento de equidade. Qualidade do que está conforme com o que é direito, correto. Por extensão, realização dos deveres relativos ao divino.  3) fortaleza, que assegura a firmeza, a constância dos propósitos na procura do Bem. É força moral. É um esforço que a pessoa deve fazer sobre si mesma para mobilizar toda a sua energia no sentido do fim a ser atingido. 4) temperança ou moderação,  permite o controle das paixões, virtude de quem é comedido, sóbrio, contido, Manter o corpo e a mente sob controle, domínio sobre as faculdades de percepção e de ação. Conhecer a diferença entre sensualidade e sensibilidade.  Às vezes, estas quatro virtudes se tornam sete, sendo assim apresentadas: humildade, disciplina, caridade, castidade, paciência, generosidade e temperança. 

Conforme alguns textos apontam, a humildade, como o nome sugere, lembra positivamente consciência das próprias limitações. Negativamente, é sentimento de fraqueza, de inferioridade com relação a alguém ou a alguma coisa. Submissão, fraqueza de caráter. Disciplina é saber obedecer a regras e regulamentos, cumprir obrigações e deveres, inclusive com relação a pessoas que nos sejam hierarquicamente superiores. Caridade, aqui, é disposição favorável em relação a alguém em situação de inferioridade material, física, mental ou psíquica. Lembra a empatia. Castidade, externamente, além de controle com relação aos prazeres dos sentidos, é, sobretudo, purificação interior. A constância, a força e a clareza dos nossos pensamentos, do nosso raciocínio, precisam da castidade nos dois sentidos. Paciência é a capacidade de saber avaliar o que é  e o que não é mais importante em nossa vida. Ter noção do que é possível realizar mais ou menos rapidamente. O grande inimigo da paciência é o que antigos gregos chamavam de koros, o desdém, a altivez arrogante. Generosidade é virtude daquele que sabe sacrificar os próprios interesses em benefício de outrem, da humanidade. Temperança é noção de comedimento, de proporção que temos entre nós e os outros. É também  o esforço que podemos fazer, para mais ou para menos, no sentido de nos encaixarmos melhor socialmente para que o todo funcione melhor.  Ajustes na convivência humana. 

3) Pecado venial – Venial, etimologicamente, é o que é digno de perdão, desculpável. Venia, em latim, quer dizer graça, favor, que se dá ou se presta ao que é perdoável, ao que é leve. O que caracteriza este pecado é, sobretudo quando cometido, a ausência de consentimento. Ele é cometido sem o que o pecador tenha a deliberada intenção de cometê-lo. Não há adesão de sua vontade, mesmo que ele possa, em certas circunstâncias, ser considerado como grave, mortal. Ele não é doloso, é culposo, segundo a linguagem do Direito. É um pecado que não rompe a ligação do crente com Deus, mas a enfraquece. É pecado que merece penas mais leves, purificadoras. Perigoso, porém, se muitas vezes repetido, podendo levar à adoção de hábitos nefastos.


PURGATÓRIO  ( G. DORÉ , 1832 - 1883 )
Purgatório, na teologia católica, é o lugar onde as almas dos que cometeram pecados veniais vão purgar as suas faltas antes de ir para o Paraíso (do persa, etimologicamente, amplo parque, pomar, jardim). As almas dos que morreram na graça de Deus, mas não estão inteiramente livres de seus pecados, vão para o purgatório para se purificar completamente. A tradição católica fala que há um fogo purificador no purgatório. A fim de ajudar as almas que vão para lá, a Igreja recomenda aos seus fiéis, de um modo geral, que pratiquem atos meritórios, como esmolas, obras de penitência, doações a obras católicas etc.

Ideias semelhantes quanto à purificação dos pecados existem em outras tradições religiosas, mas sem uma conceituação como a que lhe deu o catolicismo. Muitos Padres da Igreja católica nos dizem que a ideia da existência de um estado intermediário entre o Céu e o Inferno já pode ser encontrada em São Paulo (Coríntios). O
SÃO  PAULO
catolicismo parece ter fixado o conceito de purgatório (sem a ideia de reencarnação) doutrinariamente a partir de Santo Agostinho como um lugar onde as almas seriam purificadas através de um fogo que sempre causaria muita dor (purgatorius ignis). O modelo do purgatório católico veio, sem dúvida, da mitologia grega, do Érebo, lugar de trevas inferiores, situado no Hades, antes do Tártaro, para onde ia a alma (psyche), na forma de um eidolon, purgar os seus crimes, temporariamente, para depois reencarnar. O Purgatório é assim, como se disse, no catolicismo, um lugar intermediário entre o Céu e o Inferno. Há muitas hipóteses sobre a sua adoção pelo cristianismo. Uma delas, que nos parece muito viável, foi a de que nos primeiros tempos do cristianismo o extremismo Céu-Inferno afastava muitas pessoas da religião cristã, então procurando se afirmar no mundo romano.  


COMPÊNDIO DO CATECISMO
Para o Compêndio do Catecismo da Igreja católica, publicado em 2005, o purgatório é o estado dos que morreram na amizade de Deus, com a certeza de sua salvação eterna, mas que ainda têm necessidade de purificação para entrar na felicidade do céu. As almas das pessoas que morreram em pecado mortal e nunca se arrependeram sinceramente vão para o Inferno, morada de Satanás. Nunca mais sairão de lá, não há arrependimento possível. O castigo é eterno, como no Tártaro da mitologia grega. Já as almas que foram para o purgatório sempre terão a certeza de que lá permanecerão por uns tempos, de nunca irão para o Inferno, todas indo para o Céu, mesmo que seja no final dos tempos.

PAPA  BENTO  XVI
Por fim, lembremos que a Igreja católica acrescentou, em 2008, à tradicional lista dos pecados capitais (ao que parece, agora, a ser sempre atualizada), mais sete, adaptados à vida moderna, conforme divulgação do Vaticano. Quem tomou a iniciativa foi o papa Bento XVI. São eles: 1) Pressa – Uma pessoa apressada não tempo para Deus. A pressa é mão da ira e causa acidentes. 2) Manipulação genética, pecado “tecnológico”, ou seja, tentar o homem “brincar” de Deus, algo absolutamente inaceitável. 3) Interferir no meio ambiente, o que não passa da adição de imperfeições à Criação divina. 4) Causar pobreza – Retirar dinheiro dos outros por Avareza. 5) Ser muito rico – causa desigualdade social, o que é inaceitável, pois todos são iguais perante Deus. 6) Usar drogas – interferir no organismo humano, sagrado diante de Deus. 7) Causar injustiça social, preconceito e bullying, em sua maioria.

Ao finalizar este capítulo sobre o tema de nosso interesse, julgo oportuno observar que muito do que a Igreja católica tem como estabelecido doutrinariamente até hoje com relação aos pecados não levou em consideração o que Santo Tomás de Aquino nos deixou sobre a Astrologia. O que ele escreveu sobre a Astrologia encontra-se espalhado sobretudo em sua Suma Teológica, textos que reunidos nos permitem formam um todo bastante coerente sobre a influência dos corpos celestes, como ele mesmo anotou. 

As observações de Santo Tomás sobre a Astrologia são bastante sensatas e lógicas, indicando que, além de um sério estudioso da matéria astrológica,e do mundo natural, ele a praticou também. Evidente que não podemos considerá-lo, quanto a este particular, como um “horoscopista”, desses que sempre dela se valeram e valem para faturar “algum”, antes nas feiras e mercados e hoje em “consultórios” bem mobiliados. Santo Tomás estudou Astrologia com base em sua formação filosófica, usando o seu conhecimento para abordar questões incômodas como a do livre-arbítrio. Usou também o que sabia para combater os que se aproximavam da Astrologia sob o ponto de vista da superstição e da feitiçaria. Como ele mesmo proclamava, escrevia, sim, muitas páginas para combater os falsos astrólogos, o que lhe permitiu compreender e reconhecer ainda mais o valor da Astrologia. 

Nesta perspectiva, Santo Tomás entrou em choque com outras importantes figuras do cristianismo, como Santo Agostinho, por exemplo, que viu a Astrologia apenas através dos falsos astrólogos, da sua “banda podre”. Santo Tomás radicalizou a sua posição de estudioso da Astrologia quando afirmou haver uma conexão real entre os astros e as inclinações do homem, ou seja, suas predisposições inatas. E o Doutor Angélico, reafirmando sua posição favorável à Astrologia, concluiu que os verdadeiros astrólogos poderiam, a partir dessa e de outras constatações, sem contrariar a doutrina católica, elaborar a sua ciência sobre as referidas conexões. Afirmava mais Tomás que o destino dos homens não estava rigorosamente “escrito” nos astros quando do seu nascimento. Sua máxima, a de que “astros inclinam, não determinam” foi desde então incorporada à “boa” Astrologia. 
A Astrologia defendida por Santo Tomás, nunca estudada a rigor pela
JEAN BAPTISTE MORIN
Igreja Católica (só por uns poucos de seus membros), e muito menos aplicada, tinha bases racionais e lógicas como aquelas que os árabes transmitiram ao ocidente, praticada por sábios como Ptolomeu (muito citado por Tomás), Kepler, Cardan, Tycho-Brahé e por aquele que talvez tenha sido o maior astrólogo de todos os tempos, Jean-Baptiste Morin de Villefranche. 


SANTO  ALBERTO 
Santo Tomás, como se sabe, foi aluno de Santo Alberto, o chamado Doctor Universalis, pela vastidão de seus conhecimentos. Para Alberto, a Astrologia como a Alquimia eram conhecimentos obrigatórios, principalmente a primeira, segundo ele, ao explicar como a esfera celeste (zodíaco e planetas) moldava não só o caráter de uma criança que estava para nascer como exercia influências sobre o poder curativo das ervas medicinais. 


SANTO  TOMÁS
( GENTILI  FABRIANO , 1370 - 1427 ) 

Foi, entretanto, Santo Tomás quem codificou a posição da “banda saudável” da Igreja católica medieval com relação à Astrologia, ao combater o determinismo adotado pelos falsos astrólogos que carregavam para as suas interpretações as suas próprias paixões e, sobretudo, quando a serviço dos Grandes, os seus interesses pessoais sob o ponto de vista político e econômico.