sábado, 15 de maio de 2021

EGITO - O LIVRO DOS MORTOS

      



O que os egípcios fizeram pelos seus mortos iguala ou mesmo ultrapassa o que eles fizeram pelos seus deuses. A sua arquitetura voltada para a morte nos deslumbra até hoje. O que se conseguiu salvar dos tesouros encontrados em túmulos e conservados em salas de vários museus é espantoso. Nas bordas de vários desertos do território egípcio as necrópoles se sucedem quase que ininterruptamente. Todas as épocas da história do país estão nelas representadas, desde o paleolítico. Cada dinastia escolheu um “lugar santo” para a construção de suas tumbas. Os reis tebanos, por exemplo, escolheram o chamado Vale dos Reis para esse fim enquanto às rainhas, aos príncipes e aos aristocratas coube uma região mais afastada, no flanco da montanha, diante da cidade. Qualquer que seja o ângulo pelo qual abordemos a história egípcia o que mais se destaca é a importância atribuída às sepulturas.

MASTABA
Inicialmente, antes da primeira documentação histórica obtida através de pesquisas arqueológicas, tudo parece indicar que as ideias sobre a morte se resumiam ao depósito dos corpos numa valeta, a eles se juntando algumas provisões e armas. Mas já nas primeira e segunda dinastias encontramos, com aspecto monumental, grandes mastabas de tijolos e um mobiliário rico e variado junto dos túmulos.

Tradicionalmente, o primeiro período dinástico se estende de 3.100 a 2.686 aC e apresenta como fatos históricos mais importantes a unificação do Alto e do Baixo Egito por Menés, o primeiro faraó que construiu a sua capital em Mênfis. Nesse período (1ª dinastia: 3.100-2.890 aC), se estabeleceu o comércio dos egípcios com o Levante e se organizaram expedições ao Sudão. Determinaram-se também com precisão o calendário e o uso da escrita hieroglífica. Médicos desse período escreveram o primeiro tratado cirúrgico conhecido. Realizaram-se grandes obras de irrigação e drenagem.  Os grandes túmulos reais foram construídos em Abidos e Mênfis. A segunda dinastia (2.890-2.686) foi perturbada por lutas religiosas entre o Alto e o Baixo Egito, pelo uso de granito e de ardósia na estatuária e pelo uso crescente de pedras na construção. Ao final desse período, o Alto e o Baixo Egito voltaram a se unificar. 

Certamente por influência dos romanos, os ocidentais, na prática, sempre colocaram a religião em áreas separadas da sua existência quotidiana. Para os egípcios, tal entendimento era uma aberração, pois a religião integrava a sua vida política, social e econômica. Toda a vida de um egípcio, nos seus pormenores inclusive, da cheia do Nilo à morte de um animal da casa, dependia da disposição divina. 

VALE  DOS  REIS

As bases da religião egípcia vinham, como se disse, de tempos pré-históricos, bem antes do aparecimento dos faraós. Como aconteceu com outras expressões religiosas, a do Egito sempre demonstrou uma atitude de respeito com relação aos fenômenos da natureza e às características temíveis ou admiráveis dos animais. Assim, não era de se estranhar que fossem representadas por animais as divindades que ao longo de sua história religiosa foram surgindo. Durante grande parte da história do país, animais vivos, associados aos deuses, foram criados e exibidos em quase todos os templos. 

MAAT
A religião egípcia, independentemente da divindade cultuada, tinha um fundo moral a que se dava o nome de maat, palavra que traduz simultaneamente ideias de ordem, verdade, justiça, dever e responsabilidade. Considerava-se maat como uma qualidade que havia sido infundida pelos deuses no momento da criação e que os homens deviam obrigatoriamente respeitar. Algo, como se vê, muito parecido com os diversos significados que o conceito hindu de dharma admite. Assim, cada ser humano, na esfera de sua atuação, tinha um maat pessoal, exatamente como os hindus (svadharma). Respeitá-lo era a única maneira de viver harmoniosamente com os deuses, uma qualidade que se traduzia por um comportamento ativo.

O mundo havia sido criado pelos deuses e, por isso, tudo era fixo, eterno. Mesmo acontecimentos como as pestes, as guerras, as epidemias e as secas não passavam de perturbações ocasionais da ordem cósmica estabelecida. Criado o mundo como deveria ser, sua concepção, desde a criação, não poderia admitir nada melhor nem antes ou depois dele. Decorria desse entendimento a maneira do egípcio encarar a morte. 

Nas sepulturas do período neolítico foram encontrados objetos, víveres e instrumentos ao lado dos mortos, o que demonstra a intenção do falecido de usá-los ou consumi-los numa vida futura. Os egípcios sempre acharam que o além-túmulo era uma eternidade a ser vivida como uma repetição dos melhores momentos da existência terrena. Dedicavam-se com grande afinco e confiança à preparação dessa vida eterna.

BA
Para os egípcios, a personalidade humana era composta de quatro partes: Khet, o corpo físico destinado à morte; Chut, a sombra; e dois elementos não percebidos pelos sentidos, Ba e Ka. O primeiro destes dois últimos era representado por uma cegonha, talvez por razões de ordem homofônicas como analógicas. A partir da 18ª dinastia, Ba tomou a forma de um pássaro (cegonha) com cabeça humana que, por ocasião da morte, escapava em direção das regiões etéreas.

BA

O homem existia, assim, através de seu corpo (khet), de seu nome (ren), de sua imagem ideal (ka), de sua alma (ba) e de sua sombra (chut). Estas dimensões físicas e espirituais, ressalte-se, não podem ser avaliadas com base nas concepções judaico-cristãs às quais estamos habituados: no mundo egípcio, as categorias do concreto e do imaginário mais se imbricam do que se superpõem. Assim, o ser humano, depois de sua morte e de se ter beneficiado dos ritos funerários se reintegra no Outro Lado. O corpo (khet), pelo cadáver mumificado, é colocado numa espécie de cova para permanecer ligado à terra, enquanto seu ka, sob a forma de uma imagem, vai receber oferendas na capela do túmulo. 

O conhecimento do nome (ren) de cada ser humano era indispensável quando da realização dos ritos de passagem por ocasião da morte porque ele guardava uma identidade secreta, sendo o morto por ele convocado. O ka fornecia a força psico-vital que permitia que o nome existisse. Aplicava-se o nome ka também à faculdade que tinha um deus, uma pessoa ou um animal de realizar seus atos.

KNUM
Quando o deus oleiro Knum fabricou com barro o primeiro corpo humano, ele criou também o ka, o duplo psico-energético do corpo físico, uma espécie de matriz invisível. Quando o ser humano morria, seu ka se separava de seu corpo físico. Este fazia parte do mundo visível, enquanto o outro participava tanto deste mundo quanto do invisível. O mundo visível, terrestre, era assim uma espécie de “cópia animada” do céu graças ao ka, que era o depósito das forças vitais do qual procedia a vida e que subsistia depois da morte. O ka era uma espécie de reservatório de forças vitais, um duplo imaterial do corpo, modelado ao mesmo tempo que ele. Quando um ser humano morria, era o ka que se “ocupava” das oferendas depositadas quando do culto funerário. O ka de um faraó tinha nele uma parcela do divino. Na arte egípcia, estátuas colossais são sempre usadas para representar o ka real.
PLATÃO

Quando nos aproximamos do conceito egípcio do ka não há como não se pensar em Platão, nas suas ideias, provavelmente retiradas, segundo entendo, do pensamento religioso egípcio.  Com efeito, para Platão, os múltiplos e sensíveis objetos do mundo físico, composto por uma matéria mutável e acidental e por uma forma pela qual são o que são, têm um substrato, uma essência, que existe eternamente. O mundo sensível era para Platão formado assim por elementos ideais e por elementos materiais, constituído pelo ser e pelo não-ser. Todos os seres e objetos do mundo, precários e perecíveis, mais ou menos segundo a espécie a que pertençam, têm em si um reflexo de uma Ideia única correspondente a essa espécie. Assim, os diferentes seres e objetos sensíveis, múltiplos e destinados à morte, como se disse, como não podem ter a perfeição da sua Ideia matriz, já que matéria é sinônimo de imperfeição, resistente sempre à forma, não passam de uma cópia dessa matriz ideal. 

O ba é a noção que mais se aproxima da nossa, de alma. Primitivamente, o ba parece ter sido a poder que os deuses tinham de se movimentar e de tomar formas diferentes. Assim, uma forma ligava-se a cada ba, podendo os deuses ter muitos deles, segundo a forma que quisessem assumir. O ba correspondia mais a uma capacidade do que a uma entidade. Quando um ser humano morria, o ba retomava a sua liberdade mas permanecendo ligado ao morto enquanto este, graças à mumificação, conservava uma forma humana. 

BA FALCÃO

Quanto aos deuses, o ba habitava a sua estátua de culto. O ba tinha assim necessidade de um suporte para se manter: uma imagem, uma estátua. No caso de Ra, por exemplo, dizia-se que seu ba era o Sol. Dizer que alguma coisa era o ba de um deus equivalia a dizer que esta coisa era a manifestação do deus no mundo sensível.


KA

Negra e furtiva, a sombra (chut), depois da morte, e uma vez “aberta” a porta da tumba, escapava em direção da luz juntamente com a alma. A sombra, a fiel companheira do homem durante a sua vida, ao escapar, adquiria autonomia. A sombra era considerada como um duplo do ser humano com a função de lhe oferecer proteção.

Depois da morte de uma pessoa, o ka podia permanecer no corpo mumificado ou em alguma estátua que a representasse. Comida e alimentos deviam ser oferecidos para que essa ligação se mantivesse. No momento da morte, o ba, na forma de um falcão com cabeça humana, deixava o corpo e podia se deslocar por várias lugares, inclusive viajando pelos céus, mas com a obrigação de, à noite, voltar ao túmulo.

TEXTO DAS PIRÂMIDES
Os livros religiosos que nos informam sobre os costumes funerários egípcios, os Textos das Pirâmides, os Textos dos Sarcófagos e o Livro dos Mortos, nos esclarecem também sobre um princípio espiritual chamado akh, representado por um íbis com um penacho na cabeça. A palavra tem relação com o que é eficaz, benéfico e glorioso. Opondo-se ao corpo, que é da terra, o akh pertencia ao céu. Em tempos muito remotos, ao que parece, só os deuses e os faraós enquanto seres divinos, participavam deste princípio.

ÍBIS E IERÓGLIFOS

O akh estava no começo de qualquer gênese. A imagem para explicá-lo era a da luz saindo das trevas. Os egípcios diziam que Ra saindo de Nut era o akh. No mito, Nut, deusa do céu noturno, dava nascimento aos astros e os devorava ao fim do dia. Era por isto representada algumas vezes por uma porca, animal que tinha a reputação de devorar as suas próprias crias. O akh, o ba e o ka formavam uma espécie de trindade, três estados espirituais, não independentes, algo assim como as três faces de um triângulo equilátero.

NUT

A respeitosa e obediente atitude que os egípcios demonstravam com relação à sua religião estendia-se à concepção que eles tinham da morte. Eles encaravam o Além (Duat) como uma possibilidade de repetição dos melhores momentos da existência terrena. Confiantes e até entusiasmados preparavam-se para a morte. Todo egípcio de posses preparava com grande cuidado, equipando-o, o túmulo através do qual ingressaria na eternidade. No caso de um faraó ou de altos dignatários, essa preparação chegava a se estender por vários anos. A decoração dos túmulos ostentava, por exemplo, cenas de atividades (caça, navegação, banquetes, arte, pastoreio, lavoura etc.) às quais ele gostaria de se dedicar no Outro Lado. 


DUAT

USHEBITS
Desde as dinastias do Primeiro Período da história egípcia havia a crença de que mesmo pessoas que em vida haviam ocupado elevadas posições sociais não ficariam  isentas de prestar serviços de natureza servil no Outro Lado. Por causa dessa crença, no Médio Império, os túmulos ricos foram abastecidos com centenas e até milhares de estatuetas de trabalhadores chamadas ushebtis. Esperavam os que assim agiam ser liberados numa vida futura das exigências divinas para que trabalhassem nos campos celestiais. Enquanto descansavam, os “trabalhadores” cumpririam as obrigações divinas que porventura lhes fossem impostas. 

A ideia fundamental da negação da morte limitava-se inicialmente à pessoa do faraó e à sua família. No fim do Antigo Império, essa ideia já se democratizara bastante. Admitia-se a crença de que os nobres também poderiam se beneficiar de uma outra vida no Além. A eles foi permitida a construção de seus túmulos na vizinhança do templo real e que sua decoração fosse feita com cenas das atividades palacianas que haviam exercido em vida. Desta maneira, poderiam esses nobres participar da imortalidade do faraó de algum modo. Também se admitia que os servos que fossem representados nessa decoração poderiam, além de continuar prestando serviços aos seus falecidos senhores, obter alguma parcela de imortalidade.

SARCÓFAGO COM TEXTOS
No fim do Antigo Império (2.686-2.181), quando cresceram em importância Heliópolis e seu patrono, o deus Ra, estavam inscritos nos túmulos reais os famosos textos das Pirâmides que tratavam de costumes fúnebres. No Primeiro Período Intermediário da história egípcia (2.181-2.040), com o crescimento do poder dos senhores feudais e consequentes dificuldades do poder central, os Textos dos Sarcófagos foram inscritos nos túmulos dos nobres. 

CASA DA VIDA, HELIÓPOLIS

A essa altura, espalhando-se o culto osiriano e com uma participação maior das classes inferiores na vida política do país, o homem comum, o camponês, passou a participar também das benesses de uma vida pós-morte. Para que o homem comum tivesse acesso à eternidade não lhe bastava apenas cumprir as suas obrigações sociais e religiosas. Foi por essa época que a classe sacerdotal começou a colocar ao alcance de camadas muito amplas da população do país, democratizando-as, certas fórmulas mágicas e preces anteriormente de uso exclusivo do faraó e da nobreza feudal. 


OSÍRIS
Assim, quem pudesse contratar um sacerdote que por ocasião do sepultamento de um familiar recitasse tais preces e usasse as fórmulas mágicas muito facilitaria a sua passagem para o Outro Lado. Além do mais, se possível também a contratação de artistas decoradores de túmulos e de calígrafos (inscrições em papiros) melhor ainda. Tudo isto muito bem realizado e observado quando do sepultamento de alguém permitiria, como então se dizia, que o morto se tornasse um Osíris.

HERÓDOTO
Não se pode esquecer que para o egípcio o Além significava algo material, corporal. Nada de eidolon ou de skia, como para os gregos. A vida no Além seria gozada de corpo presente, nada de uma existência fantasmagórica. Para que tal pudesse acontecer, os egípcios mumificavam os seus mortos, tudo para que seus corpos ficassem livres da corrupção. As informações que temos sobre o processo de mumificação nos foram passadas por Heródoto. Com base nelas e posteriormente no exame das múmias encontradas, embora se possa admitir que o processo tenha sofrido algumas alterações ao longo dos séculos, a ideia básica sempre foi a de que ele procurou seguir sempre os passos do procedimento aplicado à ressurreição de Osíris, representando os sacerdotes o papel que nesse procedimento tiveram Anúbis, Hórus e outros deuses. 

Uma das grandes preocupações dos egípcios, desde os mais pobres ao faraó,  enquanto vivessem, era a de preparar adequadamente e na medida de suas possibilidades financeiras o seu túmulo. Fazia parte também desta preocupação a de se deixar dinheiro ou bens a parentes ou amigos para que ficasse assegurada, sob a responsabilidades deles, a realização periódica de certos ritos fúnebres. Se a pessoa tivesse sido rica, esses ritos eram realizados diariamente. Se de parcos recursos e nada tivesse deixado o morto, os ritos fúnebres seriam incorporados àqueles realizados coletivamente pelos mortos na época dos grandes festivais.

ENTERRO

No Médio Império, os bens deixados por uma pessoa para a realização de ritos fúnebres começaram a ser canalizados para a classe sacerdotal, que assumiu a responsabilidade em nome da família, dos herdeiros ou dos amigos. No caso de um faraó, criava-se um fundo estatal a fim de se cobrir as enormes despesas com a preparação de seu sepultamento e com os ritos a serem realizados diariamente depois. Esse fundo era administrado pela classe sacerdotal, o que explica a grande riqueza por ela acumulada e o poder que passou a deter, de modo até a interferir, em muitos casos, nos destinos do país.   

De um modo geral, em que pesem as oscilações políticas internas e os conflitos externos, a religião egípcia, que tinha no culto dos mortos o seu maior destaque, sempre serviu para manter a coesão do país, unindo os deuses, o faraó, a classe sacerdotal e o povo, uma coesão que ajudou a civilização egípcia a sobreviver por vários milênios e a nos deixar um legado de enorme interesse cultural.

EMBALSAMAMENTO
A transição entre a vida e o Além, conduzida por uma complexa liturgia, garantia ao egípcio o acesso à eternidade. O embalsamamento de pessoas ricas podia, segundo Heródoto, se estender por dois ou mais meses. Já o corpo de um pobre era despachado em um ou dois dias. O funeral exigia sepultamento no leste, lugar em que o Sol iniciava a sua jornada diária. Por isso, as imensas necrópoles se localizavam nos áridos desertos ocidentais. 


Grandes procissões, com muitas carpideiras, levavam as múmias em caixões aos túmulos. A primeira etapa da viagem era feita através do rio Nilo, em embarcações, e depois por terra, em carros puxados por bois. Familiares, amigos e sacerdotes de cabeça raspada e de corpo inteiramente depilado, entoavam cantos até a entrada dos túmulos, onde se realizavam danças cerimoniais e muitas vezes um banquete fúnebre.