segunda-feira, 31 de outubro de 2011

TESEU, ARIADNE E DIONISO


Etimologicamente, Teseu quer dizer aquele que estabelece, que institui, o que legisla. Fazendo jus ao seu nome, Teseu, quando assumiu o poder na Ática depois da morte do pai, realizou o que os gregos chamavam de sinecismo, união de vários burgos para constituir uma cidade (Atenas). O mais célebre sinecismo de que se tem notícia na Grécia antiga foi o realizado por nosso herói. De diversas pequenas cidades da Ática, dominadas por poderosos genos, Teseu, conta o mito, fez uma só polis. Atenas tornou-se assim capital política de um estado cujos cidadãos eram todos atenienses, mesmo que tivessem nascido em outros lugares, como em Eleusis ou em Maratona.

 
Teseu, como rei de Atenas, segundo o mito, mandou construir o Pritaneu (edifício público, residência dos pritanes, delegados tribais, onde estes e mais pessoas ilustres da cidade se reuniam para as refeições) e o Senado (Boulé, conselho de Estado), promulgou leis e adotou o uso da moeda. Foi ele responsável também pela fixação no calendário religioso das Panateneias, as festas totais de Atenas, em honra de Palas Athena (fig.dir.), festas que representavam a unidade política da Ática. Devem-se ainda a Teseu a divisão da sociedade ateniense em classes e a definição dos fundamentos da sua democracia, conhecidos mais tarde como: isonomia (igualdade diante da lei), isotimia (igualdade de consideração, de condição), direito de opinião, e direito às honras conferidas pelo mérito pessoal e não pelo nascimento.



POSEIDON

A genealogia do nosso herói é complicada. A versão mais acatada nos revela que Egeu, rei de Atenas, em visita a Trezena, foi recebido pelo rei Piteu, famoso por sua sabedoria e virtudes. Embriagado pelo dono da casa, Egeu foi levado à cama de Etra, princesa real. Durante a noite, ela teve um sonho no qual Palas Athena lhe apareceu, sugerindo-lhe que fosse para uma determinada ilha. Lá chegando, ainda sonhando, o deus Poseidon a recebeu e com ela se relacionou sexualmente. Ficara Etra grávida de Teseu. Na manhã, seguinte ela se lembrava de tudo vagamente, acreditando Egeu, por seu lado, ter com ela mantido relações sexuais, o que o levou a se considerar como pai da criança que Etra teria.


MEDEIA E SEUS FILHOS

Uma outra versão nos conta que Egeu fora ao oráculo de Delfos para descobrir a razão de não ter filhos, depois de ter estado com várias mulheres. No caminho de volta para Atenas, passou por Corinto, onde vivia a feiticeira Medeia. A sobrinha de Circe se preparava para pôr em ação seu plano de matar o rei Creonte, sua filha Creusa e os seus próprios filhos, os que tivera com o herói Jasão, que a desprezara para casar com a mencionada princesa. Em troca de proteção e abrigo em Atenas, depois de cometidos os crimes que arquitetara, Medeia se comprometeu, com o emprego de sua arte, a fazer Egeu gerar um filho. Depois de tudo acertado com a maga é que Egeu, numa outra tentativa para ter o desejado filho, resolveu visitar seu amigo Piteu, em Trezena, conforme está no parágrafo acima. Não houve, assim, necessidade da arte de Medeia, o que não trouxe problemas para que Egeu a recebesse em seu palácio de Atenas e acabasse aceitando-a como amante. 

M menino, conforme combinado, por questões políticas (Egeu temia pela vida do filho), ficou sob os cuidados da mãe e do avô materno em Trezena. Antes de partir, Egeu enterrou sob um rochedo sua espada e um par de sandálias. Pediu que quando atingisse a adolescência o filho fosse procurá-lo em Atenas, levando a espada e as sandálias como sinal de reconhecimento. Teseu, já na infância, demonstrou uma precocidade espantosa: revelou-se um atleta excepcional, intelectualmente muito capaz, além de ser grande músico e instrumentista. Na adolescência, a mãe lhe revelou toda a história do seu nascimento. Jovem, fortíssimo, inteligente, belo, sentindo-se capaz de enfrentar os perigos da jornada, Teseu partiu em direção de Atenas à procura do pai, onde a feiticeira Medeia, como se disse, vivia como hóspede e amante de seu pai. 

A espada e as sandálias que Egeu deixara para Teseu haviam sido enterradas sob um grande rochedo. O jovem, sem grandes esforços, conseguiu levantar a enorme pedra e apossar-se do que o pai lhe deixara. Teseu estava pronto para iniciar o seu caminho e enfrentar as provas que todo herói deve necessariamente cumprir. 

Emblema da bravura e do poder guerreiro, a espada é não só sinônimo de destruição como de justiça e paz. É muito comum, nos vários ciclos, que a espada passe para a mão de heróis do modo como Teseu obteve a sua. Observe-se mais que em várias tradições as espadas dos heróis têm nomes. A espada maravilhosa de Roland, sobrinho de Carlos Magno, por exemplo, chama-se Durandal. Comum, entre os víquingues, as espadas dos chefes terem nomes como “A Chama de Odin” ou “O Fogo do Rei do Mar”. Na mitologia germânica, Siegmund, lembremos, obterá da mesma forma que Teseu a espada que seu pai, o deus Wotan, deixou para ele. 

No seu caminho para Atenas, Teseu se envolveu em inúmeras aventuras, lutas contra monstros, facínoras e salteadores que punham em perigo as cidades situadas no seu caminho e infestavam as estradas. No istmo de Corinto, por exemplo, enfrentou o gigantesco Sinis, O Devastador, filho de Poseidon, que matava as pessoas que por lá passavam de um modo peculiar. Ele as catapultava com árvores que vergava, lançando-as a grande distância, estraçalhando-as. Teseu venceu Sinis do mesmo modo, sendo apelidado, por isso, desde então de “O Arqueador de Pinheiros”. 

Para celebrar essa vitória, Teseu instaurou os chamados Jogos Istmicos (fig. esq.). Chamados agones (agon, luta, concurso), estes jogos ocuparam desde sempre na vida pública dos gregos uma importância muito grande. No geral, revestiam-se de um caráter fúnebre ou religioso. Há exceções, contudo, como os jogos realizados pelos feácios, quando da estada de Ulisses entre eles, segundo nos conta a Odisseia. Os Jogos Istmicos, de caráter fúnebre, foram organizados por Teseu em honra a Poseidon e a Sinis, que matara, afinal seu irmão por parte de pai...

Um dos encontros mais conhecidos de Teseu foi com a monstruosa e antropófaga Porca de Cromion, de nome Feia, filha dos dois maiores monstros da mitologia grega, Tifon e Équidna, sendo ela, portanto, irmã da Hidra de Lerna, de Cérbero, de Ortro, de Fix (Esfinge), do Leão de Nemeia e de outros mais.

Como animal, a porca simboliza aqui na história de Teseu as forças incontidas da procriação, princípio maternal descontrolado, o feminino concentrado exclusivamente na sua função procriadora, forças das quais Teseu acabara se tornando um grande inimigo. Lembre-se que a porca é um animal de Deméter (fig. esq.) enquanto esta deusa nos remete a ideias de princípios femininos, de vida antipolítica, de abundância, de maternidade feliz. Na tradição grega, o sangue deste animal tinha função purificadora ao ser usado para limpar manchas morais. Foi o caso de Orestes, por exemplo, que Apolo aspergiu com o sangue de uma porca, quando o filho de Agamemnon o procurou para expiar a morte de sua mãe, Clitemnestra.






A PURIFICAÇÃO DE ORESTES

Uma das façanhas mais conhecidas do jovem Teseu, façanhas que no seu todo lembram muito de perto os trabalhos de Hércules, foi o fim que deu a um famoso bandido que aterrorizava os viajantes nas estradas. Esse bandido se chamava Damastes ou Polipemon (o que faz sofrer). Seu apelido era Procusto (o que estica ou reduz). Ele deitava a suas vítimas num leito de ferro; se a vítima fosse maior ele cortava o que ficasse para fora do leito; se a vítima fosse menor, ele a distendia com grande violência para que ficasse do tamanho do leito, chegando a arrancar-lhe as pernas. Vem dessa história a expressão “leito de Procusto”, figuradamente, interpretação artificiosa que visa encaixar à força uma ideia, um princípio, uma afirmação num determinado sistema, doutrina ou corrente de opinião.


A MORTE DE PROCUSTO

Precedido de enorme fama, ainda muito jovem, mas herói aclamado, e sem reavaliar o seu nome, o filho de Egeu chegou a Atenas, purificando-se antes nas águas do rio Cefiso. Vestido luxuosamente, de túnica branca imaculada, cabelos compridos, quase femininos, o jovem foi ridicularizado por alguns populares antes de entrar na cidade. Matou-os todos, lançando um carro de bois sobre eles. 

Pressentindo que teria problemas com o jovem herói, Medeia instigou Egeu a mandar matar o “perigoso estrangeiro”. No banquete de recepção a ele oferecido, Medeia preparou uma cratera de vinho com veneno mortal para o jovem. Antes de levar a bebida aos lábios, Teseu, que logo percebera a nefasta presença da maga junto ao pai, puxou da espada, dando-se a conhecer. Diante dos convivas, o pai o abraçou e o proclamou seu sucessor. Repudiada publicamente, Medeia retirou-se para a Cólquida, sua terra de origem.


TESEU ATACA O TOURO DE MARATONA

A essa altura, as relações entre Atenas e Creta estavam muito deterioradas. Androgeu, filho dos reis de Creta, Minos e Pasífae, havia morrido na Grécia. Sua morte fora atribuída a Egeu, que o mandara lutar contra um pavoroso animal, conhecido como o touro de Maratona, que tudo devastava. A morte do jovem príncipe cretense, como tudo indicava (uma emboscada), fora tramada por Egeu, desconfiado de suas ligações com os palântidas, seus sobrinhos, que queriam se apoderar do trono de Atenas e que contestariam naturalmente o direito de sucessão de Teseu.

Os cretenses enviaram à Grécia um grande contingente militar. Atenas e Creta entraram em guerra. Atenas foi cercada, mas um acordo foi firmado. Os cretenses se retirariam de Atenas desde que anualmente fossem enviados a Cnossos, capital de Creta, jovens gregos que serviriam de alimento ao monstro Minotauro (esq. desenho de Picasso), que se alimentava de carne humana, escondido nos imensos corredores subterrâneos do Labirinto, palácio da cidade.
 
Tomando conhecimento da situação, Teseu se prontificou a ir a Creta no lugar dos jovens. Antes da viagem, Egeu lhe forneceu dois pares de velas para o barco que o levaria, um branco e outro negro. Se voltasse vitorioso, içaria as velas brancas. Recebido no palácio, Minos concordou com a proposta de Teseu: matar o Minotauro para liberar Atenas da pena imposta.

Teseu, durante a entrevista que manteve com Minos, foi visto pela princesa Ariadne (fig.dir.). Imediatamente, ela ficou tomada de incontida paixão por ele. Conforme combinado com Minos, Teseu pernoitaria no palácio e na manhã seguinte desceria aos seus subterrâneos para lutar contra o monstro antropófago. Durante a noite, a princesa se dirigiu aos aposentos de Teseu e lhe declarou a sua paixão.





O FIO DE ARIADNE (ESCHER)


Bem recebida, ela, aconselhada por Dédalo, o inventor mítico que vivia exilado na ilha, lhe entregou um novelo, que ele deveria utilizar para entrar e sair do Labirinto (ruínas esq.), lugar de onde ninguém voltava sem esse auxílio. Uma condição, porém, estabeleceu Ariadne: morto o monstro, Teseu a levaria para Atenas e a desposaria.




Tudo aconteceu como o previsto. Teseu venceu o Minotauro e, com Ariadne, que nada revelou aos pais do seu plano, iniciou o caminho de volta para Atenas. O barco fez uma escala na ilha de Naxos, para que ambos pudessem descansar. Na manhã seguinte, ao acordar, Ariadne se viu só. Correu à praia; ao longe pode ainda avistar o barco de Teseu, que sumia no horizonte. Um detalhe importante: Teseu se esquecera de colocar as velas brancas no barco. Egeu, com os olhos pregados no mar, viu que as velas do barco que se aproximava não eram brancas. 


Desesperado, acreditando ter perdido o filho, atirou-se dos altos penhascos do cabo Sounion, (fig.dir.) suicidando-se. Por isso, o mar dessa região, desde então, passou a ser chamado de Egeu.

Teseu logo assumiu o poder em Atenas, promovendo inúmeras mudanças políticas e sociais. Foi na condição de rei que Teseu recebeu o cego e alquebrado Édipo, acompanhado de sua filha Antígona, levando-o até Colono, bairro de Atenas, onde o malagrado herói foi acolhido por Géia, que abriu as suas entranhas para recebê-lo, longe da vista de todos.

Quanto a Ariadne, seu nome admite várias etimologias, todas relacionadas com a luz, com a claridade, provenientes talvez do nome de seu avô, o deus Hélio, o Sol, pai da rainha Pasífae. Abandonada por Teseu em Naxos, Ariadne foi ali encontrada pelo deus Dioniso, que retornava de uma triunfal viagem que fizera ao oriente aonde fora propagar os seus ritos orgiásticos e disseminar a cultura da vinha. O abandono da princesa cretense, segundo uma versão, nos diz que Teseu ao fazê-lo cumprira uma ordem da deusa Palas Athena, que lhe apareceu em sonho ou como uma visão, quando ele e a princesa cretense pernoitaram em Naxos.


Ariadne é evidentemente uma das últimas grandes figuras do mundo matriarcal. A versão acima mencionada parece-nos bastante aceitável se levarmos em conta que Palas Athena é uma deusa perfeitamente alinhada com patriarcado, uma deusa combatente, virgem, encouraçada, que nunca se separou da sua égide, de sua lança de ouro nem do seu elmo. Protetora do Estado, deusa das acrópoles, é uma divindade “política”, que tem aversão ao feminino, nada tendo em comum com as divindades que o representam, Afrodite (fig.dir.) à frente de todas. Não foi por outra razão que as Panatenéias, as festas totais de Atenas, foram instituídas por Teseu.




TESEU MATANDO AS AMAZONAS

Embora Teseu sempre tenha sido considerado pelos antigos atenienses como um personagem histórico, suas histórias ocupam grande parte dos mitos referentes à Ática, região onde se situa Atenas. Aparece nosso herói tanto no mito como na história como um dos mais ferrenhos representantes do mundo patriarcal, de modo especial daqueles ligados à “polis”, de um mundo que estava substituindo aquele representado por Ariadne. Esta sempre apareceu como figura ligada à vegetação, sendo inclusive nas ilhas do Egeu considerada como uma antiga divindade das florestas. Dois mundos, já àquela altura, inconciliáveis.

A triste história da princesa cretense pode sugerir outras leituras. Podemos admitir, por exemplo, numa leitura psicológica, que Ariadne, símbolo do princípio feminino, tenha tentado fazer uma ligação entre os dois mundos que ambos representavam ao dar ao herói, símbolo do princípio masculino, o seu famoso fio, de modo que ele pudesse melhor aceitar e integrar as tendências femininas do seu psiquismo. Historicamente, Teseu foi, ao que parece, um representante no continente do mundo jônico, um povo de comerciantes, adoradores de Poseidon, fixados também na Eubéia, ilha paralela ao litoral da Ática e da Beócia.
 
O simbolismo do fio nos remete a ideias como as de união de dois estados de existência; assim, proporcionaria ela a Teseu um “segundo” nascimento, não só a integração do seu masculino e do seu feminino mas uma possibilidade de que ele pudesse sair do seu “mundo subterrâneo”. Só que Ariadne, ao lhe oferecer um renascimento, fez imposições, inaceitáveis a um representante da nova ordem patriarcal que já se impunha. Teseu foi sempre, desde a juventude, um dos mais obstinados representantes dessa nova ordem, que rejeitará totalmente o feminino.

Ariadne vinha de um mundo que perdia rapidamente o seu status, o mundo natural, as florestas; descreve a história, seu encontro com Teseu, miticamente, o conflito natureza-polis, já nos seus primeiros esboços àquele tempo. Ariadne era uma antiga divindade de um mundo que ia desaparecer, mas que teria direito, na sua agonia final, a uma apoteose digna e patética.


ARIADNE, AFRODITE E DIONISO

Quem vai se encarregar de conduzir ao seu final essa triste história é Dioniso, o deus das metamorfoses, da destruição das formas que não sabem se renovar, grande divindade do vinho. Na ilha de Naxos, como recorda Plutarco, celebravam-se há muito festas que tinham um duplo caráter, em honra a Ariadne e ao deus, com muitos cantos primaveris e ditirâmbicos. Estas festas proclamavam Ariadne como uma deusa da vegetação que tem que morrer para que se abra espaço para a cultura da vinha.

Naxos, o cenário da morte de Ariadne, é a maior das ilhas Cíclades. Consta que Dioniso ali fora educado pelas ninfas da ilha. Conquistado pela beleza de Ariadne, a ela se uniu, nascendo dessa união quatro filhos, Toas, Estáfilo, Enópion e Pepareto, que se ligarão à produção de vinho nas ilhas do Egeu. Segundo uma tradição ateniense, haveria um quinto filho, pouco mencionado, de nome Keramicos, que seria o herói epônimo de um bairro de Atenas, onde trabalhavam os ceramistas que fabricavam recipientes para transporte do vinho do deus. Lembremos que junto desse bairro havia um cemitério, de mesmo nome, por onde anualmente, sob a tutela de Dioniso, saíam as procissões em direção do santuário de Eleusis, para a realização da segunda parte dos Mistérios instituídos pela deusa Deméter.

As três fases da vida de Ariadne nos permitem considerá-la como uma figura trágica, de fundo matriarcal, que tentou desesperadamente sobreviver na nova ordem: sua vida começou quando ela se apaixonou por Teseu, tornou-se sua amante e por ele é abandonada. Se de um lado ela lhe ofereceu segurança, abrigo, ternura, calor maternal e sobretudo salvação sob o ponto de vista físico, de outro sempre havia o risco de estreiteza, do abafamento, da opressão, certamente insuportáveis para um tipo como Teseu. Ele simplesmente a usou e se descartou dela.

Num sentido histórico, tão ou mais importante que o psicológico (a possibilidade de Teseu entender-se melhor com a sua “anima”), as relações entre o rei de Atenas e a princesa cretense representam indiscutivelmente o último ato da liquidação do matriarcado, com a grandiosa cena final comandada pelo deus Dioniso. Honrando Ariadne, como última representante de um mundo que terminava, Dioniso a faz sua mulher, tornando-a mãe de cinco filhos, todos, mais tarde, engajados na sua causa, a de proporcionar ao homem, através do vinho, a possibilidade de ultrapassar a sua condição humana em direção de uma espiritualização progressiva. Participando dos festejos matrimoniais, a deusa Afrodite ofereceu a Ariadne um maravilhoso diadema de brilhantes confeccionado pelo deus Hefesto.

As núpcias entre Dioniso e Ariadne simbolizam o ingresso da cultura da vinha nas ilhas do mar Egeu, uma união de duas divindades em que uma delas, Ariadne, terá que desaparecer (destruição das florestas para a plantação das vinhas). É por esta razão que Dioniso a matará, mas honrando-a mais uma vez, transformando em constelação o diadema que a deusa Afrodite lhe dera quando da realização das suas núpcias com ele. Assim colocado nos céus, o diadema passou a ser chamado de Corona Borealis, ou Ariadnaea Corona. Astrólogos do cristianismo medieval tentaram dar o nome de Coroa de Espinhos a esta constelação.

Situada nos céus entre as constelações de Hércules e a do Boieiro, Corona Borealis vai dos 2º aos 17º do signo de Escorpião, tendo suas estrelas a natureza de Vênus e de Mercúrio, no entender de Ptolomeu. A principal estrela desta constelação é Alpheca, a 11º 35´de Escorpião, indicando o seu simbolismo a possibilidade de acesso a planos mais elevados socialmente, mas sem a contribuição dos próprios esforços. Lembre-se, sob o ponto de vista astrológico, que mulheres como Grace Kelly e a princesa Diana, tinham Alpheca (do árabe, Al Nair al Fakkah) em posição de evidência em suas cartas astrais.

Na mão dos artistas, a triste história de Ariadne se banalizou, ficando reduzida apenas ao tema da mulher sedotta e abbandonatta. Desde o Renascimento, a história veio sendo usada nesse sentido. Quando Francisco de Gonzaga e Margarida de Savóia se casaram, Claudio Monteverdi apresentou a ópera Arianna, que se desviou do mito ao celebrar o triunfo do amor entre Dioniso (Baco) e Ariadne. Haendel compôs a sua Arianna in Creta, em 1734. A seguir, tivemos Massenet com Ariane e, já em 1912, uma das mais famosas obras sobre a princesa, a de Richard Strauss, com libreto de Hugo von Hoffmannsthal, Ariane à Naxos.



ARIADNE

Ao longo dos séculos, a história da princesa cretense foi tratada de modo diverso; todos os que dela se aproximaram, porém, insistiram, mais ou menos, como se disse, no tema apontado, o da mulher seduzida e abandonada. Para alguns (Boccaccio), Teseu a teria abandonado porque estaria interessado em Fedra, outra filha de Minos, e, além disso, porque Ariadne em Naxos teria se embriagado e caído num sono profundo. Outros a viram como uma apaixonada invasora e inoportuna. A história da princesa também foi parar na literatura, na poesia (Corneille, Victor Hugo, Nikos Kazantazakis, Marguerite Yourcenar etc.), nas artes plásticas (Guido, Tiepolo e outros), na escultura (J.Dennecker) e até em tapeçarias famosas, sem que nunca se tivesse alcançado toda a dimensão que lhe deu o mito, a de uma grande e trágica figura do mundo matriarcal que não conseguiu ou não quis se adaptar aos brutti tempi que viriam.