quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

UMA ASTRÓLOGA DO SÉCULO XII?



HILDEGARDE VON BINGEN


Hildegarde von Bingen, conhecida como a Sibila do Reno, nasceu a 17 de agosto de 1098 em Bermersheim bei Alzey, Hesse renano, caçula de uma família de dez filhos da aristocracia renana. Com oito anos, seus pais confiaram sua educação a Jutta von Spanheim, superiora de um eremitério construído ao lado do mosteiro de Disibodenberg, na confluência dos rios Glan e Nahe.


DISIBODENBERG

Alguns anos depois, em 1112 ou 1115, Hildegarde decidiu entrar para a vida monástica, na ordem beneditina, fazendo os seus votos. Quando da morte de Jutta, em 1136, escolhida pelas monjas, assumiu como superiora (magistra) a direção do convento e a função de orientadora espiritual da comunidade conventual.

            

SÃO BENTO

A fim de dirigir a vida da sua comunidade, lembre-se, Hildegarde tinha à sua disposição a Regra de São Bento que já havia provado a sua eficácia desde o séc. VI. Aliás, era por esta razão que tal Regra, como suas ordenações ficaram sendo coletivamente conhecidas, servia de modelo a todas as comunidades monásticas do ocidente.

Nos anos seguintes, a congregação religiosa dirigida por Hildegarde se expandiu, mudando-se ela, com vinte monjas, para um convento que fizera construir em Rupertsberg. É deste convento que sua ação se irradia, tornando-se Hildegarde uma das figuras femininas mais importantes não só da vida religiosa germânica como de toda Europa medieval.
                                 
RUPERTSBERG NA IDADE MÉDIA






Perto dos seus quarenta anos, grandes mudanças. Aos quarenta e três anos, Hilgegarde teve uma visão celeste (línguas de fogo) através da qual recebeu ordens para dizer e escrever o que via e
ouvia. Assim, começou a sua carreira mística de escritora, compositora e poeta. Em 1165, Hildegarde assumiria também, com muito empenho e firmeza, o superiorato do convento agostiniano de Eibingen, o que a obrigava a, em companhia de algumas dedicadas monjas, cruzar o Reno duas vezes por semana para  dar conta dessa sua nova função.


CONVENTO AGOSTINIANO DE EIBINGEN


Dentro da tradição de humildade que a vida monástica impunha, alguns conventos conseguiram entretanto encontrar meios de melhorar a sua subsistência. Alguns, como os que Hildegarde administrou, fizeram parte de um seleto grupo, que sempre deu provas de grande capacidade e visão, obtendo inclusive êxito quando envolvidos nos negócios temporais.



Hildegarde foi além de seu tempo ao produzir uma considerável obra literária, que chama a nossa atenção
principalmente pelos seus aspectos visionários e proféticos. Através da “Luz Viva”, a visão que tivera, tomou consciência de sua missão profética. Procurou, desde então, depois dos seus quarenta anos, ativamente, falar, escrever, compor, tudo para, como dizia,  acordar os seus contemporâneos, combatendo o seu esquecimento de Deus. Uma notável peculiaridade: nunca, porém, os chamou para uma vida que significasse o abandono do mundo.

Por palavras e escritos,  Hildegarde  sempre  deu  mostras  de  se interessar pela vida universal como  um todo, do sentido religioso que via nela e de como a vida humana poderia ser vivida nessa perspectiva. O céu, a terra, a fé, as ciências humanas e naturais, a existência do ser humano na sua profunda diversidade, as escolhas a serem feitas, tudo a interessava, tudo era ao mesmo tempo, como dizia, “um presente e um dever”.

É importante ressaltar ainda que as organizações religiosas que Hildegarde chefiou fugiam bastante dos modelos conventuais da época. Nada de muito ascetismo, de frugalidade, de muito silêncio, de preces ou meditação. Havia nas comunidades dirigidas por ela um certo gosto pela arte e mesmo por alguns prazeres mundanos, como os da alimentação, e, sobretudo, devido à forte personalidade de Hildegarde, carregada de muita sensualidade, como diziam alguns, uma grande ênfase dada à  educação musical, ao canto e à poesia. Tudo isto revelava uma surpreendente capacidade de Hildegarde e de suas religiosas de viver tudo muito praticamente, de um modo muito diferente do tradicional.

Neste ponto, não podemos deixar de estabelecer um paralelo entre as comunidades de Hildegarde e a das Ursulinas, congregação fundada por Santa Angela Merici, em Brescia, em 1535, educadoras, cuja pedagogia sempre foi combatida pelos meios católicos mais conservadores.

                                              
SANTA ÚRSULA E AS VIRGENS

Ainda dentro deste paralelo, merece referência um famoso affaire que teve por cenário um convento das Ursulinas, na França, em 1634, um escândalo relacionado com a feitiçaria, sendo suas freiras conhecidas como as possessas de Loudun. Esta fama que sempre as cercou é responsável por duas grandes obras de arte que temos hoje. Uma delas foi o belíssimo e premiadíssimo filme polonês Madre Joana dos Anjos, de Jerzy Kawalerowiczc (Prêmio Especial do Juri, Cannes, 1961). A outra foi a grande ópera em três atos, The Devils of Loudun (1969), também de um polonês, Krzysztof Penderecki, baseada num texto de Aldous Huxley, dramatizado por John Whiting.

                                         
MADRE JOANA DOS ANJOS (CENA)


A isto que está acima se acrescente que Hildegarde, para uma festa de Santa Úrsula (17 de setembro), compôs os cânticos das "Onze Mil Virgens". Na mesma data, 17 de setembro, em 1179, com 81 anos, ela morreria  no convento de Rupertsberg.

Embora os escritos de Hildegarde tenham se apoiado  nas escrituras sagradas, na liturgia, nas regras
beneditinas e em textos dos pais da Igreja, percebe-se que ela sempre encontrou um modo, extremamente pessoal, de impor a sua marca. Dentre as grandes obras teológicas de Hildegarde, uma se destaca antes para nós (confirmando o seu ascendente astrológico geminiano): “Scivias” (Conhece os caminhos), na qual ela apresenta a sua visão da salvação da humanidade, indo da criação do mundo e do homem à sua redenção e ao fim dos tempos, com passagens onde se discutem as bases da Igreja católica e seu futuro. Muito ilustrativas as questões que levanta sobre as relações entre Deus e o homem, sempre um jogo de atração e de rejeição.


O que mais chama nossa atenção nos escritos de Hildegarde não são só as visões que apresenta, como grande teóloga, mas, sobretudo, o modo pelo qual as descreve, seu talento dramatúrgico e poético, e seus grandes dons musicais. Setenta e sete cantos nos demonstram tudo isto. Naquilo que escreve sobre a Igreja, Hildegarde percebe “o eco da harmonia celeste”. Para ela, o corpo do homem é  “vestimenta da alma, que dá vida à voz. A alma provém da harmonia divina, ela é sinfônica.”

Hildegarde compôs um singspiel: Ordo Virtutum (O Jogo das Forças). Espetáculo dramático com 35 diálogos que ilustram a eterna luta entre o Bem e o Mal. Retoma o mesmo tema em sua segunda obra teológica, Liber Vite Meritorum (O Livro dos Méritos da Vida).



Nela, a grande confrontação do homem, criado livre: procurar o divino ou não. Torna-te no que és, Homem, torna-te um Homem!

Na terceira obra, “Liber Divinorum Operum” (Livro das Obras Divinas), temos a irradiação do mundo como obra de arte divina. O homem aparece como um microcosmo, refletindo, em todas as suas características físicas e espirituais, as leis do macrocosmo (um pensamento claramente astrológico). Todas as coisas se atraindo mutuamente, reciprocamente unidas e ligadas. Este pensamento sobre a unidade e a totalidade é que nos permitirá entender melhor os trabalhos sobre as ciências naturais e médicas de Hildegarde e a sua afirmação: a paz da alma e a cura do corpo dependem também da fé, pois só ela produz o Bem e leva à moderação.

Os dons proféticos de Hildegarde aparecem nos textos de suas cartas, nas 390 conservadas. Em todas, a mesma constância e firmeza, posições coerentes, solicitude e rigor para com todos, muita generosidade e observações bem humoradas. No mais, um envolvimento pessoal muito grande com os temas do tempo e uma grande participação nos assuntos políticos (Meio-do-Céu em Aquário). Como tal e para isso, suas intervenções são sempre revestidas de muita autoridade (Sol em Virgo, Lua em conjunção com Plutão em Áries). Muitas figuras importantes do tempo, inclusive papas e imperadores, procuraram seu conselho.


                                           

Dentre as várias atividades que exerceu Hildegarde a mais destacada, a que vem merecendo maiores atenções dos estudiosos, é a de compositora, uma das maiores da Igreja e da música ocidental. Ela compôs 77 cantos e um singspiel, como vimos. Na sua segunda obra visionária, Liber Vite Meritorum, ela indica que reuniu entre 1150 e 1160 as composições existentes numa coleção que chama de Symphonia armonie celestium revelationum.

Hildegarde, como era costume, deu prioridade aos cantos que celebravam certos santos, Rupert, Disibod e Úrsula, por exemplo, muito venerados nos lugares em que viveu. As composições de Hildegarde têm características muito pessoais, o que as distingue bastante das de outros compositores do seu tempo, séculos XI e XII. O mesmo se diga com relação aos textos. Tanto os textos como as melodias são, conforme a crítica mais qualificada destaca, de excelente qualidade, de grande força musical expressiva.

Há quem veja em algumas das composições de Hildegarde até um certo charme operístico. Mais um traço de sua originalidade, o que só faz aumentar o fascínio que exerce sobre o ouvinte contemporâneo mais atento. A Igreja católica, por razões que nos parecem óbvias, vem procurando há muito enfatizar o lado musical de Hildegarde e destacar a sua santidade, celebrando-se sua festa a 17 de setembro.

SÃO BERNARDO DE CLARAVAL
 Um certo silêncio nos meios católicos oficiais é incentivado quando se trata de discutir outros aspectos da obra de Hildegarde, o da vidência e o da profecia. Em alguns de seus escritos foram, por exemplo, encontradas ideias que parecem antecipar algumas das conquistas da astrofísica moderna. Seus trabalhos sobre as ciências naturais e medicina ainda causam um certo espanto.

Os sermões de Hildegarde foram ouvidos em muitas catedrais da Europa, reis e papas a escutaram e foram, como dissemos, não só aconselhados, mas advertidos. Correspondeu-se ela com figuras muito importantes de seu tempo, inclusive eclesiásticos eminentes como São Bernardo de Claraval. Nos momentos de folga, chegou a inventar uma língua (chamada por ela de língua ignota), mistura do alemão e do latim, com alfabeto próprio.

                                     
ALFABETO CRIADO POR HILDEGARDE VON BINGEN

Seus “oráculos” e “revelações” foram muito distorcidos, exagerados, chegando alguns, por isso, a considerá-la como farsante. Contudo, o que dela nos chegou resistiu bem às críticas, tanto as feitas no seu tempo como posteriormente. Até hoje ainda não se avaliou bem a sua influência, não com relação à música, de valor indiscutível, mas com relação aos seus trabalhos “místicos”, às suas visões ou ao seu trabalho científico.

DANTE
Hildegarde começou a escrever a partir de 1141, sendo suas obras traduzidas
para o latim no ato por uma equipe de monges a seu serviço. A título de curiosidade é de se destacar que “Scivias” exerceu considerável influência sobre Dante e, muitos séculos mais tarde, William Blake.


Por tudo o que Hildegarde deixou, não podemos, é claro, considerá-la como astróloga, como está na pergunta que dá título a este trabalho. Também nada quanto à Astrologia poderá ser recolhido do biógrafo oficial de Hildegarde, Bernard Groceix, francês, que em 1982 publicou seu trabalho sobre ela. Alguns estudos posteriores na Alemanha e nos USA também nada acrescentam quanto a este particular.

AS QUATRO ESTAÇÕES

Contudo, ao nos aproximarmos dos escritos de Hildegarde não podemos deixar de destacar que o seu pensamento, como um todo, se encaixa naquela corrente que nos vem das cosmologias que tiveram sua divulgação no Ocidente patrocinadas pelo grande centro cultural que foi a Escola de Chartres. As posições de Hildegarde quanto à relação Homem-Cosmos levaram-na a se aproximar bastante dos temas da harmonia universal que tanto encontramos em Pitágoras quanto na filosofia neoplatônica (Plotino e Porfírio). Uma das linhas de pensamento mais interessantes que vem de Chartres, certamente conhecida por Hildegarde, era a de que em todas as coisas criadas se refletem sob formas e aparências variadas ou estão contidas em potência todas as coisas ainda não criadas, que a onipotência de Deus sempre pode criar, ou, de outro modo, as imagens arquetípicas do espírito (vide Jung).

Bernard Silvestre, grande figura de Chartres, já na segunda metade do século XII, deixou um poema que faz uma espécie complemento às colocações de Hildegarde quanto ao tema das relações Homem-Cosmos. Silvestre deixou um poema, certamente influenciado por Platão, De Mundi Universitate, dividido em duas partes, Megacosmus e Microcosmus. Na primeira, a criação do mundo e, na outra, a descrição do homem. O personagem central do poema chama-se Natura e realiza uma viagem mística através do Universo, nas regiões celestes, em companhia de Urânia (uma das musas gregas), regente dos astros.

Não estará também fora de cogitação a ideia de que Hildegarde teria se aproximado de algum modo de teses gnósticas (era uma livre-pensadora, sem dúvida) especialmente as defendidas por Orígenes, discípulo de Clemente de Alexandria. Doutor cristão de língua grega, representante da Gnose ortodoxa, grande escritor, foi o primeiro dentre os cristãos a propor um sistema completo de Cristianismo que integrasse as teorias neoplatônicas à doutrina cristã. Suas teorias o levaram a defender a correspondência entre o Zodíaco e o corpo humano, bem como a entender que os astros estavam organizados segundo um código que, se interpretado, poderia permitir a previsão de acontecimentos terrestres e humanos. Embora muitos pontos de suas teses tenham sido rejeitados e condenados (concílio de Constantinopla em 553), isto não impediu que seu pensamento se tornasse muito conhecido no mundo cristão.



As concepções cosmológicas de Hildegarde afirmam que em direção do homem convergem todas as forças criadoras do universo, as mesmas que movem o Sol, a Lua e outras estrelas, e que o homem, microcosmo à imagem de Deus, é igual ao próprio Universo. No seu texto “Livro das Obras Divinas” apresenta o homem de braços abertos e estendidos, projetados sobre um círculo, símbolo do mundo, uma imagem que séculos mais tarde Leonardo da Vinci, outro grande conhecedor da Astrologia, poria em circulação. O homem para a Astrologia, como para Hildegarde, está no centro mundo (a visão antropocêntrica astrológica).





O Universo que Hildegarde nos descreve não é estático, mas pleno de ações e reações, de interações, de oposições, de equilíbrio e de desequilíbrio. Nessa descrição todos os planetas vibram em direção do homem. Depois de ter enumerado todas essas influências, descrevendo também grupos de animais (quatro grupos), que também fazem parte de círculos concêntricos a partir do homem, seis ao todo, e de se referir a tudo o que na Natureza recebe esses influxos, Hildegarde se dirige ao homem: Quanto a ti, homem, que presenciais este espetáculo, compreende que esses fenômenos dizem respeito igualmente ao interior da alma. Estas interações entre elementos da Natureza  e o homem se resolvem para ela no plano de sua saúde física e psíquica.





                                        O conjunto das visões da Sibila do Reno afirma que há uma espécie de unidade cósmica que rege ou influencia tanto o homem quanto o mundo no qual ele vive. Ao descrever essas influências ela desenvolve uma curiosa teoria sobre os ventos que mantêm a energia do Universo em ação devido às suas variações. Cada vento é simbolizado por um animal. Aos quatro ventos principais (Zéfiro, Bóreas, Euro e Austro, da mitologia grega) correspondem quatro energias no interior do homem: o pensamento, a palavra, a intenção e a vida afetiva. A alma, por sua vez, tem quatro asas: os sentidos, o saber, a vontade e a inteligência. Todas as visões nos falam afinal de uma unidade profunda entre Deus, confundido com o Todo (Brahman dos hindus) e sua obra, trate-se do homem ou do Cosmos. Sua observação: a alma, enquanto no corpo sente Deus, porque vem dele, mas ao realizar a sua tarefa (ação no mundo) nas criaturas não vê Deus.

Sua obra sobre ciências naturais e Medicina é uma espécie de enciclopédia de conhecimentos do tempo. Seus títulos “Physica”, “Medicina Simples” etc. Ela discorre com muita segurança sobre um tema muito caro à Astrologia, o das chamadas qualidades primitivas (quente, seco, frio e úmido), que está na base da teoria dos elementos (fogo, terra, ar e água). Daí vai à teoria dos temperamentos, revelando um bom conhecimento da obra aristotélica. No capítulo das qualidades primitivas, fala de uma espécie de quinta qualidade, a que dá o nome de “viridade” (viridente é verde, verdejante), um poder de vida que se manifesta através da seiva, ou de uma energia que habita a seiva, uma energia que está em todas as criaturas vivas, não só nas plantas. Será Eros? A libido freudiana? Ou o deus Soma ou o Prana dos hindus? Defende também a ideia de que não há doenças, mas doentes. Para ela, o estado natural do homem é a saúde; protegê-la, mantê-la, é tarefa diária, vigilância cotidiana tanto com relação ao corpo quanto com relação ao espírito.

Numa carta escrita em 1175 a Gilbert de Gembloux: Desde a minha infância, mesmo antes de meus ossos, meus nervos e minhas veias terem atingido sua força, e, mesmo agora, que já tenho mais de oitenta anos, esta visão sempre esteve em minha alma... A luz que vejo não é espacial, é muito mais brilhante que uma nuvem carregando o Sol... chamo-a “reverberação da Luz da Vida”... e vejo, compreendo e sei, tudo ao mesmo tempo, como se, num instante, aprendesse tudo o que sei. Mas o que não vejo não o sei, pois não sou instruída, ensinaram-me apenas a ler. O que escrevo é o que vejo e ouço em minha visão... E as palavras que acompanham esta visão não são como palavras que a boca de um homem pronunciaria, mas como uma chama cintilante ou uma nuvem que flutuaria num céu claro.   
                                      


Para aqueles que se interessarem mais pela Sibila do Reno, lembramos que, em 2009, a cineasta alemã Margarethe von Trotta realizou o filme Aus dem Leben der Hildegarde von Bingen (Visão sobre a Vida de Hildegarde von Bingen). Acima, cena do grande filme, com Barbara Sukova no papel título.