domingo, 14 de agosto de 2011

BUZZATI , O ILUSTRE DESCONHECIDO



Até bem pouco tempo, a ficção italiana tinha como principais representantes no Brasil, atuando em faixas diferentes, Ignazio Silone, Alberto Moravia e Vasco Pratolini. Nem sempre, contudo, o nosso conhecimento sobre eles provinha de razões exclusivamente literárias. Colocava-se a discussão mais em termos de nomes e personalidades do que de livros. Silone, por exemplo, teve durante algum tempo mais significação política do que literária. Seu affaire ainda é matéria para muita divagação. Moravia, de outro lado, só era reconhecido na medida em que o envolviam certos aspectos promocionais: suas ligações com o cinema, com revistas sofis­ticadas (a extinta "Senhor"** publicou muita coisa de Moravia) e a auréola de escritor "forte", "adulto", que sempre o acompanhou. Pratolini, menos conhecido do que Silone ou Moravia, acabou por ser lançado como fornecedor de estórias para o cinema; restringindo-se hoje o consumo da sua obra a grupos fiéis ao neorrealismo.

Com o agressivo surto editorial português, que toma impulso a partir dos fins da década de 50, o quadro se modifica. O mercado português e, por tabela, o brasileiro, pas­sam a receber consideráveis quantidades de traduções de romances italianos. Ao lado dos três vêm alinhar-se, então, Cesare Pavese, Elio Vittorini, Cassola, Italo Calvino, Mario Soldati, Guido Piovene, dentre outros.

Em que pese, porém essa diversificação, nem por isso fomos ainda despertados, portugueses ou brasileiros, para a obra daquele que está hoje certamente entre os maiores romancistas da Itália, Dino Buzzati. Há mesmo a cercá-lo um sistemático e incompreensível silêncio, já que, se não por específico valor literário, poderia ele, por outros motivos, de aspecto exterior, ser promovido editorialmente com algum sucesso: pa­rentesco kafkiano, incursões pelo teatro, assuntos “atuais”. Os livros de Buzzati traduzem, com efeito, certas preocupações que estão presentes atualmente em toda a moderna literatura de "situação", não só na obra de Kafka como na de Stig Dagerman, Sartre, Bruno Schulz, Camus e até na science fiction de um Ray Bradbury ou Asimov.

O primeiro livro de Dino Buzzati traduzido para o português foi Bàrnabo delle Montagne (O Homem da Montanha), em excelente trabalho de Rosália Braamcamp. Esse livro, o primeiro de Buzzati, aparece em português por volta de 1960/1961. Trata-se de uma novela onde já se configuram nitidamente os rumos da temática do escritor: o absurdo a se fazer, desfazer e refazer constantemente; o clima de malogro, o suspense, o fluir do tempo, encruzilhadas, labirintos.

DINO BUZZATI

Mas nada de ambiguidades, de casos extremos, de situações-limite. Pelo contrário, ação marcada intensamente pela presença humana, materializada em todos os seus aspectos, realidade palpável e palpitante, ainda que estranha, onde a simbologia se acha integrada sem objetivos metafísicos ou existenciais. Os conflitos nascem de uma situação concreta: não há forças transcendentais, nem incomunicabilidade absoluta.

Em O Homem da Montanha, o velho del Colle, chefe dos guardas-florestais de San Nicola, é assassinado num dia de festa. Ninguém viu os matadores, possivelmente os contrabandistas da montanha. A vida prossegue, sucedem-se as estações. Voltam um dia os bandidos e Bàrnabo, um dos guardas, se acovarda. É demitido. Anos depois, a convite de um amigo, retorna a San Nicola. Aceitam-no como vigia da antiga sede, no alto da montanha, agora abandonada. Bàrnabo ficará só, à espera dos bandidos, a espreitar a montanha, os penhascos, as escarpas, com as suas cores, perfumes e sons.

Sobre o mundo lacunar, talvez confuso, fantástico ou labiríntico, em que Buzzati coloca Bàrnabo não flutua, entretanto, como em Kafka, um espaço obstruído. Os persona­gens de Buzzati não são “repudiados”. Têm nome, identidade legal. Bàrnabo ou Giovanni Drogo, de O Deserto dos Tártaros, não são apátridas sem passaporte. Nem Sísifos modernos. E isto porque o absurdo de Buzzati, como o de Camus, reduz-se ao conceitual. Diferente do de Kafka, essa absurdidade confina-se na órbita do racional não sendo perturbada por afluxos do in­consciente.

Depois de O Homem da Montanha, Buzzati publicou Il Deserto dei Tartari (O Deserto dos Tártaros)***, Paura alla Scala, Il Monstro, Il Crollo della Baliverna, Il Grande Ritratto”. Em todos, as mesmas preocupações já esboçadas em O Homem da Montanha, inclusive algumas incursões pela fantascienza.

Para nós, O Deserto dos Tártaros é ainda o grande romance de Buzzati, a sua obra mais significativa. Giovanni Drogo é um oficial que vê a vida escoar-se rotineira mente na Fortaleza Bastiani, diante do deserto. Deseja a glória, sonha com os grandes feitos. Ao se aproximar o momento sonhado, é afastado da Fortaleza por incapacidade física. Ve­lho e alquebrado, é levado para um hospital. Os tártaros ja­mais atacaram. Quem o ataca, agora, é a morte, o Grande Tártaro. Giovanni Drogo agoniza. Giovanni Drogo nunca desistiu. Sorri.

A abordagem da estrutura da ficção de Buzzati permitir-nos-á focalizar as múltiplas interpretações que lhe possam ser atribuídas ou os diversos significados assumidos. E, daí, naturalmente, a aferição do seu mérito, como grande escritor dramático, sobretudo. Buzzati, embora mais do que Kafka, fornece pou­cos elementos informativos, os dados que a sua ficção apresenta são insuficientes para a determinação de um significado único. Como consequência, temos a multiplicidade, a ampliação cada vez mais intensa da faixa significativa. É isto a nosso ver, que distingue uma ficção “maior” de uma ficção “menor”: a variabilidade dos conjuntos possíveis de significados deve es­tar na razão inversa do repertório de dados fornecidos. É isto que distingue, por exemplo, no Brasil, a ficção de um Guimarães Rosa da de um Jorge Amado, onde tudo se reduz a um significado (discutível) restritivo do conjunto. Função plurívoca (Guimarães Rosa) e não unívoca (Jorge Amado), a permitir a sobrevivência da obra independente do significado atribuído.

Em O Homem da Montanha, será a montanha o Olim­po kafkiano? A volta de Bàrnabo será a expiação perante um deus mudo? Será a incomunicabilidade? Ou a montanha será simplesmente um espaço a ser conquistado? Uma luta entre guardas-flo­restais e bandidos? O Deserto dos Tártaros será o reflexo de uma batalha que não houve (alemães e franceses nas linhas Siegfried e Maginot)? Será a suprema irrisão? Será a morte como solução positiva? Será a condenação das guerras? Será a tolice do militarismo? Paura alla Scala seria a incoerência do nos­so tempo ou apenas uma sátira política?

Em todos os romances de Buzzati, a mesma linguagem incolor, enxuta, neutra (bem diferente da de Kafka, linguagem burocrática, intencional, altamente redundante), onde o experimentalismo de novas formas entra, mas onde também o ato de escrever continua sendo a transcrição da realidade. Nem vanguarda revoltada, nem recuperação média de formas linguísticas, estéticas, culturais ou históricas. Apenas um escritor que, em meio à confusão geral e à inflação de soluções inventivas, procura as suas vias de comunicação com uma consciência crítica que reconhece e distingue condições políticas, gosto do públi­co e ambientação cultural. E tudo isto sem esquecer, natural­mente, que stricto sensu, depois de Proust, Joyce, Picasso, Kafka, Sartre ou Klee as estradas estão abertas e que as van­guardas muitas vezes nada mais fazem do que arrombar portas a­bertas.

Em 1963, com a publicação de Un Amore, Buzza­ti rompe com a sua construção anterior e enfrenta, num romance "linear", com uma estrutura psicológica possível, os novos caminhos com os quais um escritor, mais dia menos dia, depara quando opta por saídas através de soluções individuais. Ou constata a ineficácia ou a inautenticidade de fórmulas ou processos que modas literárias e condicionamentos culturais põem em jogo.
Uns vêem retrocesso neste livro de Buzzati; outros, a procura de novos caminhos, perspectivas apenas vislumbradas. De uma forma ou de outra, Buzzati é um escritor que pesquisa, que investiga. Julgá-lo por Un Amore ainda não é possível. Prevalece para nós a impressão da primeira fase. O que não podemos é ignorá-lo****.


*Publicado em A Tribuna, 3/9/1967 (pág. Literatura, Artes, Cultura). ** Uma das maiores experiências de jornalismo cultural no Brasil. Durou de fins de 1959 a 1964. *** Em 1976, Valerio Zurlini lançou um grande filme, de mesmo nome, com base na história de Buzzati. Só recentemente o DVD deste filme foi lançado no Brasil. **** Dino Buzatti nasceu em 1906, em San Pellegrino de Belluno, e morreu em 1972, em Milão