quinta-feira, 11 de agosto de 2011

NOSSO INFERNO PESSOAL

A atividade agrícola provoca uma crise de valores entre as populações do final do chamado período Paleolítico. Até então eram muito importantes, sob o ponto de vista religioso, as relações entre os homens e o mundo animal. A esse tempo, os humanos passavam para o chamado período neolítico, o eixo da vida se concentrando mais no mundo da agricultura Neste período, a agricultura com a sua simbologia começa a suplantar aquela proveniente das relações de caráter animal, até então mais poderosas. Estabelece-se aos poucos uma espécie de solidariedade entre os seres humanos e o mundo vegetal. Com isto, a mulher e o mundo feminino carregam-se de sacralidade.

As mulheres, como se sabe, passaram neste período a ocupar uma posição de relevo, pois há um nexo natural entre a fertilidade da mulher e a fertilidade da terra. Não é por acaso que o mundo indo-europeu tem o radical gen para designar nascimento, o ato de engendrar, de gerar. Daí, gênesis (criação), genos (raça, entre os gregos), engenho (caráter inato), degenerar (corromper, adulterar-se) etc. E é desse radical que, por exemplo, sai o nome da primeira entidade nascida do Caos, segundo a cosmogonia hesiódica, Geia, também chamada de Gaia, a Mãe-Terra.

As mulheres, neste período, se tornam responsáveis pela abundância das colheitas, pois são elas que conhecem o "mistério" da criação, compreendido como algo religioso, que tem como "outro lado" a morte. Essa mudança, que alguns chamam de "revolução neolítica", vai tomando lugar, mais ou menos, entre 9.000 e 7.000 AC. Ao começar a produzir os seus alimentos, ao contrário do que ocorrera no Paleolítico, o ser humano precisou modificar bastante o seu comportamento. Teve que aperfeiçoar novas técnicas de intervir no solo, de medir o tempo, de aprender a fixar datas com base em calendários lunares, ainda que bastante rudimentares. Com isto, a atividade agrícola deu um novo sentido à religiosidade do homem. Uma das grandes histórias desse período refere-se à ligação que o homem faz entre as plantas nutritivas (cereais) e os tubérculos, que foi aprendendo a usar.

Os homens desse período consideravam que os alimentos extraídos da terra eram produtos divinos. Alimentavam-se do corpo de um ser divino. Para se apropriar destes produtos divinos era preciso colhê-los, isto é, cometer um "crime". A origem dos cereais e tubérculos foi entendida como o produto de uma união sagrada (hierogamia) entre o céu e a terra. Os processos de alimentação e morte se vinculam. O solo fértil, a terra, tem fortes analogias com a mulher e o trabalho agrícola com o ato sexual. Tudo isto sobrevive em algumas tradições populares como, por exemplo, o ato de depositar a criança que acaba de nascer sobre a terra para que esta a abençoe. Ou, então, o gesto de darmos três pancadas na madeira para pedir proteção, para "isolar", que outra coisa não é senão um pedido de socorro à nossa Grande Mãe (madeira vem de mater, mãe, matéria). Afinal, a grande constatação: o homem, nascido da terra, acabará a ela retornando um dia. A sexualidade da mulher está ligada aos ritmos lunares. Terra, Lua e mulher se unem, são solidárias. Este mistério se cumpre pela morte da semente, que assegura, então, um novo nascimento. A vida humana se parece com a vida do mundo vegetal, nascimento, morte e renascimento, tudo como os ciclos desse mundo.


As mitologias dos vários povos irão refletir este drama, que tem vários atos. 

São inúmeras as histórias que nos falam de deuses que morrem e renascem (Afrodite-Adonis, os Mistérios de Eleusis etc.). Desenvolve-se nas civilizações agrícolas desde o Neolítico uma concepção religiosa de natureza cósmica que tem como núcleo, conforme inspiração dos ciclos do mundo vegetal, a ideia da renovação periódica do mundo. Assim como os ritmos cósmicos se expressam em termos da vida vegetal, assim ocorre com a existência humana. O cosmos se renova periodicamente, anualmente. O tempo, por isso, é circular. Depois do inverno, a primavera...


O MUNDO SUBTERRÂNEO


As idéias aos poucos vão se fixando: mulher, feminino, ritmos lunares, semente, interior da terra, morte, escuridão, retorno... E quanto ao ser humano? Destruído o corpo (soma), desprendendo-se a alma (psiquê), fixa-se nessas civilizações o conceito de imortalidade. A perda da energia vital coincidia com a exalação do último suspiro. Daí a relação entre respiração e alma, fundamento da vida. Psiquê, anima, alento. Psiquê, a alma, toma a forma de um eidolon, uma representação que lembra vagamente a forma do corpo substancial, uma espécie de fantasma, que guardava uma "consciência" latente, podendo ser ativada através de cerimônias adequadas.


ULISSES E TIRÉSIAS (ODISSEIA)


      Era a nekyia, ou invocação da alma dos mortos, como Ulisses a realiza no canto XI da Odisseia.



Para Homero, Psiquê era como um sopro, mais ou menos material, que habitava o Hades. Aparecia sob uma forma frágil, volátil, uma skia (sombra). Outras designações: opsis (aparência), onar (sonho), simulacra (simulacro). Quando Psiquê deixava o corpo, suas faculdades de inteligência, memória e fala ficavam muito prejudicadas. Estas faculdades poderiam ser recuperadas por momentos. Os gregos nunca, a rigor, consideraram a morte como algo irreversível, definitivo. Usavam comumente a expressão "cobrir-se de trevas" para falar da morte. A alma para os gregos não era uma ficção, era algo real, podendo ser evocada pela aflição dos vivos, pelo amor, pela saudade, pela magia, pela poesia. A alma descia para o Hades, era a chamada catábase. Muito enfraquecidas, como vimos, pois os mortos são os dessecados, as almas não têm seiva, verdor. Envelhecer, caminhar para a morte é dessecar-se. O seco dificulta os processos metabólicos, gera tensão, rigidez, endurecimento. O seco freia o quente, é estreitante.

A partir da morte, com base em todas aquelas ideias já bem fixadas desde o período Neolítico, define-se, desde as tumbas, o conceito de Inferno, da existência de um lugar subterrâneo, residência das almas. Este conceito sucede ao de que esse mundo para onde iam as almas ficava além do oceano, uma serpente líquida que envolvia a Terra, como está na citada Odisseia. Com a crescente organização social, estratificando-se a sociedade, a ideia de mundo inferior se verticaliza e estabelece, lugar para onde iam as almas depois de terminada a vida terrestre.


HESÍODO

Com o poeta Hesíodo, do séc. VIII aC, em sua Teogonia, temos uma ideia mais clara do mundo infernal. Diz ele que do Caos, o misterioso indiferenciado, dotado de energia prolífica, num determinado momento, vão saindo várias entidades. Quatro são de polaridade feminina, negativas: Geia, a Terra; o Tártaro, o mais profundo, o mais abaixo, a partir de Geia; entre Geia e o Tártaro, o Érebo, as trevas inferiores intermediárias; acima de Geia, as trevas superiores, Nix, a Noite. A única entidade positiva a sair do Caos foi Eros, que aparece logo depois do Tártaro e antes das outras; é a força que une, que vai garantir não só a continuidade das espécies como a coesão interna do universo. Geia, por cissiparidade, gerará Urano, o céu, "em igualdade de esplendor e beleza, para que ele a cubra”. Unindo-se entre si e/ou com os seus descendentes, estas entidades darão origem às potências primordiais que constituirão o Cosmos.

O parágrafo acima descreve sumariamente o que chamamos de Cosmogonia grega, segundo o poeta Hesíodo. As cosmogonias, no geral, são modelos arquetípicos por onde principiam as diversas visões que os homens têm da organização do Cosmos (ordenação), uma visão sagrada. Lembremos que as cosmogonias e os processo de individuação do ser humano se assemelham bastante. As cosmogonias indicam um a ser, algo a ser construído, uma ordem a ser instaurada a partir do Caos, que sempre antecede a existência. As coisas entram na existência e desta passam a se cosmizar. Esta cosmização deve ser constantemente renovada, ela não se faz sem choques, sem lutas. A vida nasce da morte, todo progresso se apóia na destruição. Mudar é, ao mesmo tempo, morrer e renascer.



HADES E PERSÉFONE

A partir do século VI AC, o Inferno, isto é, o Hades já estava organizado. No mais fundo, o Tártaro, acima o Érebo, ao lado de ambos, pendendo para o oriente, os Campos Elísios. Junto, o chamado Campo da Verdade, lugar de julgamento. O Hades era um lugar fortificado, tinha muralhas, palácios, acrópole, uma grande região vestibular através da qual se fazia a passagem da superfície terrestre para ele. Este mundo localizava-se nas entranhas da Terra, pendendo, como um todo, para o oeste. Era atingido por aberturas na superfície da Terra, cavernas, grutas, lagos, lugares misteriosos, como Lerna (pântano da Argólida), Averno (lago ao sul da Itália), Tênero (cabo ao sul do Peloponeso) etc.



HÉRCULES E A HIDRA DE LERNA


A terra infernal não era fecundada, o solo era ingrato, sem luz, nenhum ser vivo. Cresciam nele, apenas, os ciprestes negros, os salgueiros, que jamais davam frutos, e álamos, que simbolizam as forças regressivas da natureza, que apontam mais para as lembranças que para a esperança, mais para o tempo que passou que para o futuro e o renascimento. Sobre o solo, também, o asfódelo, planta fúnebre dos cemitérios e das ruínas, flor infernal. Flor hermafrodita, chamada de pseudo-Narciso, consagrada a Hades e a Perséfone, o perfume do asfódelo lembra o do jasmim, tem propriedades narcolépticas, significando sempre perda da consciência, morte. O asfódelo era também conhecido entre os gregos pelo nome de aipo real. Neste sentido, era usado para coroar os vitoriosos nos Jogos Istímicos, conforme Píndaro atesta. Nos ritos fúnebres, era usado para indicar o estado de juventude eterna ao qual a morte dava acesso. O cipreste era sagrado pela longevidade, sempre de um verde persistente, encontrado nos cemitérios; árvore funerária, de resina incorruptível, lembrava imortalidade, ressurreição, morte, luto e renascimento. O salgueiro, ligado à morte, estava associado a sentimentos de tristeza e também à imortalidade. Os vegetais do Hades eram "representados" pelas ninfas denominadas Hespérides (hespera, tarde, poente), ninfas do poente, filhas de Nix, a grande deusa da noite, que as gerou por partenogênese.



AS HESPÉRIDES

São três, Egle (cipreste), Eritia (salgueiro) e Hesperaretusa (álamo), isto é, a brilhante, a vermelha e a do poente, o princípio, o meio e o fim do percurso solar. Estas três ninfas simbolizam, respectivamente, o Amor (Doação), o Desapego (Sabedoria) e a Compaixão (Serviço).

O território vestibular pelo qual se tinha acesso ao mundo infernal através dos lugares acima designados ficava logo abaixo da superfície da Terra, de Geia. Era chamado de o Bosque de Perséfone. Era um lugar lúgubre, desolado, nele viviam espectros, fantasmas, seres que haviam se fixado num estado entre a vida e a morte, que não haviam morrido ritualmente. O Bosque da Rainha do Hades era sobretudo território das divindades alegóricas. Dentre elas, destacamos: Algos (Dor); Geras (Velhice); Limós (Fome); Ponos (Fadiga); Metanoia (Arrependimento); Koros (Deboche) e sua filha Hybris (Desmedida); Penthe (Luto); Apate (Fraude); Sicofantia (Calúnia) sempre precedida de Ftnos (Inveja); Tryphe (Luxo); Lyssa (Fúria); Ate (Erro); Penia (Pobreza); Strofe (Chicana), cujo templo é o Palácio da Justiça, sendo seus ministros os juízes, os procuradores, os tabeliães e os advogados. Compartilhando o território com todas estas entidades, com a mesma importância, divindades e monstros como Eris (Discórdia), as Erínias (As Fúrias), os Centauros, os Gigantes, a Hidra de Lerna, as Górgonas, as Harpias, a Quimera, os irmãos gêmeos Fobos (Horror) e Deimos (Pavor), Enio (Grito de Guerra), o casal Tifon e Équidna. No centro do Bosque, uma árvore gigantesca, um olmo copado, árvore funerária, onde residiam os sonhos quiméricos. Este olmo era alimentado pelas águas do rio infernal Aqueronte.


TRAVESSIA DO AQUERONTE


De sua madeira se faziam as varas de punição, tudo o que servia para açoitar e vergastar.
O Érebo (obscuridade, escurecimento) era a camada intermediária, as trevas inferiores, por oposição e complementares às de cima (Nix). Dele se passava ao Tártaro. Guardava a entrada desta região o cão tricéfalo Cérbero. Nela ficava também o palácio de Nix, e de seus dois filhos gêmeos Hipnos e Thanatos, o Sono e a Morte.


HIPNOS E THANATOS

No palácio de Nix viviam também os Oneiroi (os Sonhos), os de mil formas, seus filhos. O Érebo era um lugar de permanência temporária (100 anos) das almas que, depois de julgadas, ficavam, em grande sofrimento, esperando o retorno.


O Tártaro é o abismo, o local mais profundo das entranhas da Terra, lugar de escuridão absoluta, sempre em declive, lugar que a luz jamais alcança. A distância que o separa de Geia é a mesma desta ao céu, Urano. Ou, de outro modo, o Céu e o Inferno são simétricos com relação à Terra. O Tártaro era a prisão dos deuses, dos grandes criminosos (Titãs, Sísifo, Tântalo, Títio, Ixion, as Danaides, os Alóadas etc.).


AS DANAIDES

Nele ficava o palácio de Hades-Plutão, cercado por um tríplice muro de bronze. O Tártaro sustentava os fundamentos da terra e dos mares. Alguns personagens do mito chegaram a penetrar nele e conseguiram sair (Hércules, Ulisses. Teseu, Orfeu). Unido a Géia, o Tártaro gerou Tifon e Équidna, aquele o maior dos monstros; juntos, os irmãos geraram inúmeros outros seres monstruosos (Hidra de Lerna, Quimera, Ortro, Leão de Nemeia, Fix, Cérbero, o dragão da Cólquida, o Abutre).


OS TITÃS NO TÁRTARO

No Tártaro havia um compartimento denominado "O Inferno dos Maus", lugar terrível, para onde iam os grandes criminosos, aqueles que haviam cometido crimes contra a família (genos), contra os deuses, contra a hospitalidade, contra a pátria (os vendilhões). A hospitalidade, saliente-se, era um dever sagrado. Todo estrangeiro era naturalmente protegido por Zeus Xênios ou por Palas Athena Xênia em Atenas. Era no Tártaro que as Erínias atuavam, atormentando as suas vítimas. Um lugar de torturas, de lamentações. Aridez, rochas, tanques gelados, lagos de enxofre, pez fervente. Era nesses lugares que as almas ficavam submetidas a torturas eternas, mergulhadas alternativamente para sofrer o frio e o calor extremos. A região era formada também por pântanos fétidos e rios abrasadores. Nenhuma esperança de retorno, de fuga, de consolação. Tudo triste e mecânico, repetitivo. A pena máxima a que ficavam submetidos os grandes criminosos enviados para o Tártaro era a obrigação de repetir o mesmo gesto eternamente. Ali, fixados na pena, sem qualquer possibilidade de mudança. O fogo, por exemplo, os torturava, mas não os destruía. A água e a comida jamais saciavam a sede ou a fome...

O Campo da Verdade era o lugar onde se reunia o tribunal para o julgamento das almas, jamais podendo se aproximar desse departamento a Mentira, a Maledicência e a Calúnia. Não se admitia também nenhum tipo de apoio ou proteção, mesmo divinos. Só a alma (Psiquê) e seus julgadores, Minos, Radamanto e Sarpedon, assesores de Hades.

Os Campos Elísios eram a morada das almas virtuosas. Primavera eterna, nada de sofrimento. Bosques perfumados, encantos, prazeres. Os heróis iam de corpo presente, conduzidos pelo canto dos poetas. Nesses Campos ficava a Ilha dos Bem-aventurados para onde eram transferidos os desejos de felicidade eterna, que ali poderiam enfim se realizar. O corpo de Aquiles, por exemplo, foi levado para lá por sua mãe, Tetis, o que lhe permitiu unir-se então a Helena, conhecendo ambos uma vida de bem-aventurança sem fim.

O Hades tinha cinco rios: Estige (que causa horror), Piriflegetonte (das chamas sulfurosas), Cocito (dos gemidos), Aqueronte (da estagnação, da tristeza, da aflição), o mais importante, e Lethe (do esquecimento). As almas chegavam ao Inferno conduzidas pelo deus Hermes, na sua função de Psicopompo. Ele as levava até as margens do rio Aqueronte, para que, na barca de Caronte, penetrassem definitivamente no Hades. Segundo a tradição, Aqueronte era um filho de Géia, condenado a permanecer para sempre nas entranhas da terra porque na luta entre deuses e Gigantes consentiu que eles bebessem de suas águas. Aqueronte, unido a Orfne, a ninfa das trevas, gerou Ascálafo. Este, como se sabe, estava presente quando Hades, tendo raptado Kore, transformou-a em Perséfone, fazendo-a "comer sementes de romã". Ascálafo, por ter propalado o acontecido, foi transformado por Deméter, mãe de Kore, numa coruja. Vive, por isso, empoleirado nos ombros do pai, cochichando-lhe coisas.

Junto ao palácio de Hades, vivia Hécate, a que "fere de longe, à distância", deusa trívia lunar, muito respeitada, que a cada vinte e oito dias subia à superfície da terra para pontificar nas encruzilhadas, lugar de transformações, de viradas de destino, poder que dividia com o deus Hermes. Profundamente misteriosa, tem correspondência com a Lua Nova. Preside às aparições de fantasmas e de espectros, sendo tanto a senhora dos malefícios ou dos benefícios. Devidamente reverenciada, liga-se aos cultos da fertilidade. Neste sentido, lembra que encruzilhadas são lugares de parada e de reflexão, lugares onde escolhemos não só as direções a tomar no plano horizontal mas, sobretudo, no plano vertical, para cima ou para baixo.

HÉCATE

Esse grande império coube a Hades quando Cronos e os Titãs foram derrotados por Zeus e seus irmãos. A Poseidon coube o domínio absoluto sobre todo o elemento líqüido, inclusive sobre as águas subterrâneas. A Hades, coube o imenso mundo subterrâneo, que passou a ser designado também pelo seu nome. Hades quer dizer o Invisível (Aides, Aidoneus); era também chamado de Plutão. Sob o nome de Hades, como divindade tutelar do mundo ctônico, ele não tinha culto; era temidíssimo, sendo, por isso, invocado por eufemismos. Um deles se fixou, Plutão, que se relaciona com a riqueza, a abundância, razão pela qual é representado muitas vezes com o Corno da Abundância. Violento, poderoso, soturno, só saiu duas vezes dos seus reinos. Uma vez para raptar Kore, na Sicília , e outra para subir ao Olimpo, a fim de se curar de um grave ferimento.

A Zeus, como se sabe, condutor da vitória e grande vencedor do monstro Tifon na batalha final pelo domínio do universo, coube não só o reino dos céus como a supremacia sobre todos os demais reinos. Hades-Plutão divide o seu reino com Perséfone. A deusa passa os meses do outono e do inverno com o esposo; a primavera e o verão ela os passa com a mãe Deméter. A descida (catábase) e a subida, o retorno (anábase) de Perséfone deram origem aos famosos Mistérios de Eleusis.

Ctônia era um dos nomes que os gregos tinham para designar o Hades, significando a palavra "a que fica sob a Terra, a região subterrânea". Hoje, com base no que a Mitologia Grega nos fixou, a superfície da terra, analogicamente, passou a significar o ser humano (humus, terra) enquanto ser consciente; já o mundo ctônico, com suas divindades, departamentos e monstros, o subconsciente. Os céus, com as suas alturas inatingíveis, onde vivem as divindades olímpicas sob a tutela de Zeus, passaram a significar o mundo supraconsciente.

A PRIVAÇÃO RADICAL


MOIRAS
Há uma passagem em Heráclito, filósofo grego da escola jônica, séc.VI AC, que diz o seguinte: O Sol não sairá dos seus limites; se o fizer, as Erínias, servidoras da Justiça, o desmascararão. Um dos maiores "pecados" para os gregos era a Hybris, personificada como filha de Koros, a insolência, o deboche, o desdém. Hybris era a desmedida, a imoderação, o orgulho, a vaidade, a arrogância, a falta de humildade perante os deuses, isto é, o Todo. Entendiam os gregos que tudo o que existe no universo tem um lugar, uma função. Isto não dependia dos deuses, pois eles também estavam obrigados a esta ordem, sujeitos a ela. Esta ordem fora instaurada por Moros, O Destino. Divindade cega, inexorável, gerada pela união do Caos com Nix, nunca admitida no convívio divino, desde a instauração da primeira dinastia (Urano-Geia), Moros (em grego, também, quinhão que cabe a cada ser humano ao entrar na vida; a palavra é usada ainda como infortúnio, destino funesto e morte). O nome Moros vem do verbo meiresthai, partilhar, sortear, o mesmo que deu origem ao nome Moira ou Moiras, as três irmãs que eram as donas do fio da vida, Cloto, Láquesis e Átropos. Conhecidas também como Aisa (s), eram as Moiras, por parte de mãe, irmãs de Moros, já que tinham, como ele, Nix por mãe. Todos, portanto, irmãos de Hipnos e de Thanatos, o Sono e a Morte, respectivamente.

Todas as divindades da mitologia grega estavam submetidas ao poder de Moros, os céus (Zeus), o elemento líquido (Poseidon) e os infernos (Hades-Plutão). Moros estava acima dos deuses e dos humanos, pois administrava uma lei que nem mesmo Zeus podia transgredir. As leis de Moros estavam escritas desde o princípio da criação, guardadas num lugar ao qual os deuses tinham acesso. O máximo que eles podiam fazer, entretanto, era apenas consultar o livro de Moros, jamais admitida qualquer mudança no que nele estava fixado. Só os oráculos podiam entrever e revelar o que estava escrito. Como não possuía templos nem culto, Moros era reverenciado por muito poucos. Representavam-no tendo sob os pés o globo terrestre; numa das mãos, uma urna onde estava guardada a sorte dos mortais. Na outra, um cetro, símbolo de seu poder soberano. No alto da cabeça, usa uma coroa de estrelas. Às vezes, Moros era representado por uma roda à qual está presa uma corrente. Acima da roda, uma enorme pedra; abaixo dela, duas cornucópias com pontas de lanças. São as leis cegas de Moros, como diziam os gregos, que tornam culpados tantos mortais, apesar de todo o seu empenho em se manter virtuosos. Ou, no sentido oposto, são as mesmas leis que tornam vitoriosas tantas pessoas que pelos seus atos demonstram o contrário da virtude, da honestidade e mesmo do respeito aos deuses. O exemplo clássico disto que aqui se expõe pode ser encontrado em Homero, na Ilíada, no episódio da morte do grande herói troiano, Heitor (canto XXII).


ANANKE


A obrigação que todos temos de respeitar a ordem universal era representada pelo conceito de Ananke. Este conceito significa coação, necessidade, e tem o sentido de fatalidade. Ananke governava todas as coisas de um modo providencial, uma espécie de necessidade mecânica, que vai além das causas puramente físicas. Um dos melhores exemplos deste desrespeito esta naquele comportamento que os gregos chamam de Hybris, a desmedida, o descomedimento, o orgulho. Nós o encontramos, ainda exemplificando, no mito de Dédalo e de seu filho Ícaro. Dédalo é o inventor, o técnico e também artista, símbolo do tecnocrata, que fabrica asas para que se filho escape do Labirinto, palácio cretense onde estavam presos. A história, como sabemos, termina em fracasso, pois as asas eram de cera. O que fica da história é que a tecnologia não é o melhor instrumental para se chegar às "alturas". A saída do Labirinto (subconsciente) em direção das alturas (supraconsciente) não pode ser feita através de meios técnicos, pois eles não passam de “asas de cera”. A ciência e seu subproduto, a tecnologia, são meios impróprios, totalmente inadequados, para se chegar à vida supraconsciente, à vida espiritual Ou seja, o mundo não melhora com a eles, piora...

Tudo no universo parece respeitar Ananke, a coação, a necessidade. "Olhem os corpos celestes", diziam os gregos, "como eles respeitam Ananke". Por que só o homem tenta escapar dela? Existe uma lei, uma ordem no universo que deve ser respeitada. Os hindus a chamam de Rita, a ordem universal, superior aos deuses, que devem obedecê-la também. Rita é a força da forças, uma categoria essencial da qual depende a própria existência. Tomado por Eris, por Até, por Lyssa, por Apate e por outras entidades o homem ultrapassa limites quer nunca deveria ter ultrapassado.

Hybris é uma insolência, um excesso, um arrebatamento que leva o homem, no fundo, a tentar se igualar com o divino ou a ultrapassá-lo. Uma disposição contrária àquilo que os gregos chamam de Sofrosyné, prudência, moderação sábia. O Oráculo de Delfos, no seu pórtico, ostentava, por isso, a máxima: Conhece-te a ti mesmo. Chama-se hamartia (violência), a expressão física da Hybris. Com ela, a lei natural é rompida, os deuses são desafiados. Entenda-se que isto nada tem de social ou jurídico. Nem, por outro, falamos aqui de "pecados", como as religiões patriarcais os encaram, principalmente o mundo cristão. Não se julgam no Hades, por exemplo, "pecados" sexuais (Hades-Plutão era, aliás, um estuprador). Zeus tinha um furor erótico insaciável. O que se julga no Hades é a pretensão, a disposição para o abandono da justa medida, a ignorância do que se é e, com isto, a falta de percepção do outro, isto é, do Todo.

Toda vez que aparece uma desproporção, toda vez que nos excedemos no desejo, no sofrimento, na beleza, no amor, uma divindade entra em ação. A Psicologia inventará mais tarde nomes para essas forças que nos fazem agir assim. Nomes mais pretensiosos e menos eficazes que aqueles que os gregos nos deixaram, sem dúvida. O problema que aparece, então, com a desproporção, a desmedida, é o da responsabilidade. Tudo isto desemboca no conceito de Ananke, a Necessidade, personificada sem rosto. O universo é envolvido por ela, pela Necessidade, por vínculos, fios, nós, obrigações, dependências, uma trama infinita. Ananke, por isso, também, toma o sentido de agarrar, constranger, obrigar. As deusas da necessidade, todas femininas, se agrupam nesse conceito de Ananke; são timoneiras, tecelãs, litigiosas, velam para que todos tenham a sua parte, que ninguém saia dos seus limites. A vida, contudo, é excesso, viver é exceder-se, diziam os gregos. Por isso, as deusas (Ananke) estão em toda a parte. A deusa Themis é um grande exemplo disto, já que seu nome lembra limite. Daí tornar-se ela a personificação das leis imprescritíveis e universais, que vêm antes das leis humanas. Themis é mãe das Horas, deusas dos ritmos da Natureza, e irmã de Aidos (Pudor).

O mundo ctônico, no seu aspecto trevoso, lembra sempre o terror da destruição. Desde que os homens começaram a trabalhar a terra, sabe-se que a alimentação e a vida crescem nas profundezas, que o cereal nasce dos mortos. Por isso, Hades é o aspecto destrutivo da vida e Plutão é o seu "outro" lado, o guardião das riquezas subterrâneas. A veneração das potências ctônicas é tão antiga quanto o homem. Os homens estão destinados à morte, são mortais. Um dos nomes de Hades-Plutão é Polygdemon (o rei que recebe muitos hóspedes no seu reino invisível). A imagem do reino de Hades oferece assim um duplo aspecto. O deus dos mortos é também o deus da abundância. Pluto quer dizer rico, dispensador de riquezas. Para entrar na posse dessas riquezas é preciso morrer, fazer a viagem subterrânea. Muitas estátuas representam o deus com o chifre da abundância, a cornucópia, e junto dele vários instrumentos agrícolas, símbolos da técnica a ser usada para se chegar à abundância. Entrar com esses instrumentos na Terra era penetrar no órgão feminino, unir o homem à mulher, o Céu e a Terra, um ato sagrado. Associa-se Hades a inúmeros cultos de fertilidade. Este aspecto de sua "personalidade" se deve sobretudo à sua esposa, Perséfone. A deusa fica seis meses com ele e nos outros seis volta à superfície para se encontrar com sua mãe, Deméter, deusa dos grãos, dos cereais e das colheitas. O retorno de Perséfone anuncia o crescimento dos cereais, a colheita e consequentemente a riqueza. Esta relação dupla, Perséfone-Hades, se completa ao percebermos que o deus é o mestre da invisibilidade, do mundo que precede a germinação secreta dos grãos. Dono do que escapa da vista humana, da percepção sensível dos homens, dono de algo que lhes parece ao mesmo tempo como terrível e promissor.

O nome que os gregos davam à Terra quanto ao seu aspecto subterrâneo, por oposição ao que ficava na sua superfície, como já se disse, era Ctonos. Como adjetivo, ctônico, designava os seres que vivem no seu interior, dragões, serpentes, monstros, anões, seres fabulosos, sempre ligados a ideias de morte, germinação, fecundidade. Representam por isso, analogicamente, o aspecto ctônico do nosso subconsciente, no que ele tem de obscuro, impenetrável, violento, imprevisível, fonte de dificuldades, de sofrimentos, de castigos, de torturas e de terrores, e também de renascimento, de ressurreição.

Nesta perspectiva, a mitologia grega deixa claro que os monstros são símbolos de dificuldades a vencer, de obstáculos a superar, para que seja possível ao homem (herói) entrar na posse de tesouros que tem dentro de si. Eles, os monstros, num certo sentido, representam as provas pelas quais temos que passar. São eles que dão a medida da capacidade do homem e do seu mérito. É preciso vencê-los e, mais do que a eles, é preciso que o homem vença a si mesmo, enfrentando os monstros que vivem no seu mundo ctônico. Em muitas ocasiões, os monstros não são mais que imagens do próprio eu do homem, que é preciso vencer para se chegar a um eu superior. Os monstros fazem parte de ritos de passagem. Muitos simbolizam as forças irracionais que levam o ser humano regressivamente para estágios anteriores ao do nível racional, que lembram o caos, a desordem, a desagregação. Por isso, o homem está sempre "caindo" do racional (consciente) para o irracional (subconsciente), jamais indo em direção do espiritual (supraconsciente). Cada ser humano tem os seus monstros contra os quais deve lutar, mesmo sabendo que sua vitória possa ser apenas momentânea. Nesta perspectiva, eles podem ser considerados como uma promessa de ressurreição. Temos todos, muitas vezes, que atravessar uma espécie de caos interior, infernal, escuro, nessa luta contra os monstros, para chegar a uma nova e luminosa forma. Os monstros simbolizam disfunções do nosso psiquismo, causadoras de desordens, desequilíbrios. O Inferno, o Hades, é o estado da vida psíquica daquele que foi vencido pelos monstros que enfrentou, seja porque se identificou com eles numa perversão consciente, porque a eles se rendeu ou porque, para escapar da situação conflitual, os recalcou, os pôs de lado, isto é, afastou-os, não querendo aceitar a luta.

Dentre as divindades que residem no Hades, citamos, a título de exemplo, como executoras da punição daqueles que fracassam na luta, a ação das Erínias. Elas são também chamadas de Fúrias e, como tal, se integram ao conceito da Ananke. Sãos monstros femininos alados, cabelos entremeados de serpentes, desgrenhados, garras; com chicotes e tochas, castigam tanto na terra como no Hades aqueles que romperam determinados limites. São guardiãs das leis da natureza e da ordem cósmica, tanto no sentido físico como moral. Punem assim todos os que ultrapassam seus direitos em prejuízo do direito dos outros, os seres que se entregam à Hybris. São as vingadoras do crime, punem os que pecam contra o genos. Punem a desmedida através da qual o homem corrompe a ordem cósmica, já que a hamartia (ação física decorrente da hybris) produz um miasma, uma mancha, uma nódoa, que é tanto religiosa como social, pois envenena tudo à sua volta. Como divindades ctônicas, vivem entre o Tártaro e o Érebo, nas entranhas de Geia, e têm por missão, também, a de punir os crimes que contra a Mãe-Terra se cometem. São as Vingadoras: Aleto, a que persegue com tochas; Tisífone, a que açoita o culpado e grita aos seus ouvidos; e Megera, a que joga os criminosos uns contra os outros. São instrumentos da vingança divina. Ao atuar, "trazem" o Hades para dentro da vida do criminoso. Neste sentido, são a "consciência mórbida". Interiorizam-se como remorso, sentimento de culpa, autodestruição, doença, criando estados obsessivos, dolorosos, loucura, em função do crime cometido. Excepcionalmente, podem as Erínias transformar-se em Benfeitoras (Eumênides), quando o criminoso se arrepende sinceramente, quando demonstra (longos períodos, anos e anos de demonstrações do seu arrependimento, prestação de serviços à sociedade etc.) que está procurando se tornar "outra" pessoa. Obrigatória, também, no caso, as pesadas compensações pecuniárias em função da falta cometida. Só, então, as Erínias poderiam se transformar em Eumênides...