sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A PROPÓSITO DE UM CICLO


Cid Marcus (O Diário, jornal de Santos, em 28-05-1978)

Oportuno, sob todos os aspectos, o ciclo que o Clube de Cinema de Santos apresenta atualmente com o título de Grandes Momentos do Cinema Nipônico. Iniciado em abril, com programação já fixada até fins de junho, estamos tendo o prazer, a cada sábado, às 15 horas, no Itajubá, de ver ou rever, com a retrospectiva, produções de alta categoria, que permanecem vivas, apesar da desinformação geral e do descaso com que o cinema japonês é tratado por quem deveria obrigatoriamente divulgá-lo.

Mas como já está acostumado a nos trazer coisas novas, quase sempre sem ajuda ou apoio, e isto há muitos anos, a projetá-las e a discuti-Ias com uns poucos, acredito que o Maurice continuará. E que, engolindo mais uma vez a sua irritação diante da desolação do quadro, dê a volta por cima, para nos proporcionar, no segundo semestre, o prosseguimento do ciclo.

Ao fazer estas observações, quero, ao mesmo tempo, trazer à discussão dois outros problemas. Referir-me de modo especial a duas figuras que considero como responsáveis pelo estágio em que nos encontramos nessa questão de cultura cinematográfica.

De inicio, porém, é preciso esclarecer que o cineclubismo procura a formação e a informação. Trabalha, por essa razão, com pouca gente, para pequenos públicos. Essa a sua principal atividade. O grande reparo vai, em primeiro lugar, nesse aspecto de responsabilidade, à critica cinematográfica. O cinema japonês, para ela, deixou de existir há muito tempo. Mais esclarecida, por obrigação, não deveria, contudo, ignorar este cinema como o vem fazendo. Reconheço os entraves que muitas vezes são impostos ao seu trabalho, mas acredito que sempre haveria um meio de divulgá-lo.

Quem perde evidentemente não é o clube, mas gente que poderia viver o cinema de outra maneira. Não pretendo com esta colocação que o público do Indaiá, do Iporangão ou do Júlio Dantas passe a se interessar por cinema japonês. Desejo apenas fazer uma chamada para mais um esforço que se empreende e que, como das vezes anteriores, talvez acabe no vazio.

Mas, se o importante é prosseguir, lembro ainda que não é só com relação ao cinema japonês que devemos proporcionar o embalo necessário para que ele saia da sombra. Devemos agir da mesma forma com respeito a outras manifestações artísticas de igual dimensão e importância que por razões diversas estão bloqueadas.

De um lado, pois, a crítica cinematográfica. De outro, como consequência direta da sua omissão, o público a ser atingido e que não o é. Há, todavia, um segmento desse público que, a meu ver, independeria da critica para se ligar. Falo do estudante, do universitário especialmente. Pela sua idade, pela sua privilegiada situação social e pela maior possibilidade que tem de se expor às manifestações artísticas, o universitário deveria se constituir numa significativa parcela receptora desse cinema. Com a informação que deve ter, podendo assim descartar as jogadas da critica e outros manejos e manipulações, não participa, fica alheio como os que estão na média ou abaixo.

Nisto tudo, alguma justificativa, se admitida, poderia ser tolerada quanto ao crítico, mas dele nunca se retirando a maior responsabilidade. É que escrevendo e interpretando para o grande público, o crítico, seja por comodismo ou devido aos próprios objetivos consumatórios onde seu trabalho aparece, limita-se, quase sempre, às generalidades, aos aspectos secundários do cinema. Isto é mais fácil e de maior interesse para o jornal ou a revista do que fazer coro que o cinema seja entendido como acontecimento social, indústria, arte. Cinema como importante componente de nossa vida cultural e não cinema como "arte de mentir".

Quanto ao que nos toca mais de perto, a omissão do universitário santista, constatamos que ela acabou por situá-lo numa retaguarda cultural que impressiona. Mesmo os mais ligados a essas coisas de arte foram se transformando em passivos consumidores de modismos culturais. Vivendo de eventos, jamais descendo às estruturas, isto é, às relações, o fenômeno cultural passa a ser entendido como espetaculosidade. Informações compartimentadas, pensamento em curto-circuito, temos, nesse panorama, de um lado, comportamentos com altíssimas taxas de apatia, e, de outro, formas mais ou menos disfarçadas de escapismo, cultivo de um vastíssimo folclore industrial nas atitudes, no modo de falar, nas roupas, nos adornos. No geral, são os cineminhas de arte de meia-noite, onde o que afinal importa mais é o clima, a barra, e não o filme etc., etc., etc.
Não espero que ciclos como o que o CCS promove tenham grande público. Há muita gente, de formação universitária, vivendo entre Rio e São Paulo, que não aceita outras formas de representação cinematográfica senão as que o cinema americano apresenta. Se visse uma apresentação de Kabuki ou alguém tocando um shamisen, essa gente riria, certamente. Para esses não há escapatória. Dirijo-me, sim àqueles que ainda teimam em fazer da arte uma estratégia de vida. A mais elevada forma de sobrevivência, queiram ou não.


HISTÓRICO


Quando Rashomon .explodiu no ocidente em 1951, no Festival de Veneza, ficamos sabendo que fora dos Estados Unidos e da Europa também se podia fazer cinema de excelente nível. E o sucesso logo a seguir obtido por A Vida de O Haru, Ugetsu Monogatari, O Intendente Sansho e Os Sete Samurais viriam confirmar a impressão deixada pelo filme de Kurosawa, sobre a novela de Ryonosuke Akutagawa.

A crítica se deslumbrou. Estávamos efetivamente diante de um cinema que havia criado uma estética, novos modos de fotografar em branco e preto ou de tratar a cor e fazer tomadas, novas pesquisas no campo da linguagem. A qualificação veio logo: "Herdeiro de seiscentos anos de teatro Nô, de três séculos de Kabuki, de milênios de cultura e de tradição".

Diretores como Kurosawa, Mizoguchi, Kinugasa, Kinoshita, Ozu, lmai, Gosho e Shindo passaram a ser citados como grandes figuras da cinematografia mundial. Fomo nos familiarizando com os nomes das casas produtoras: Schochiku, Toho, Daiei, Shintoho, Nikkatsu. Atores como Toshiro Mifune, Hideko Takamine, Machico Kyo, Mariko Okada, Chiezo Takaoka e outros começaram a despontar como grande astros, ao lado dos ocidentais.

Para o espectador comum, o cinema japonês, quando muito, nesses primeiros contatos, chamava a atenção apenas pela fotografia, pela beleza das imagens. Este mesmo espectador estranhava que aqueles filmes apresentassem histórias complicadas, intrincadas, quase sempre tendendo ao exagero ou à violência, com interpretações extravagantes, ritmo confuso. Quando Ugetsu Monogatari, de Kenji Mizoguchi, sobre uma lenda do século XVI, que no Ocidente tomou o nome de Contos da Lua Vaga, Pálida e Misteriosa Depois da Chuva (Leão de Prata. Veneza, 1952), foi exibido na Europa, o maior impacto ficou com o aspecto plástico do filme. Filmes sobre temas modernos, como Okasan, pareceram lentos, incompreensíveis mesmo. O geometrismo de Ozu, insuportável.


Para o espectador dos festivais, para os mais informados, que iam além da abordagem primária do feito cinematográfico, o cinema japonês constituiu-se numa grande revelação. Fenômeno semelhante ocorria com a música oriental, aliás. Começamos a perceber que ela era muito mais rica e complexa que a nossa, encerrando maiores "possibilidades auditivas".

O maior exemplo do cinema japonês estava, contudo, no seu extremo grau de liberdade. Desde a mistura de gêneros, na elaboração dos roteiros, até a grande flexibilidade na montagem, onde se resolvia o ritmo, a liberdade era enorme. Um mosaico que se ia armando aos poucos, muitas vezes em meio a um aparente caos, e que se fechava, totalmente acabado, ao fim daquela hora e meia ou mais. De outro lado, diretores que eram capazes de imobilizar a câmara, tirando desse imobilismo efeitos surpreendentes, faziam-nos repensar o cinema. Por isso, um cinema de extremos, entre o céu e o inferno (palavras que, por sinal, estão no título de muitos filmes japoneses), com uma extensa escala de sentimentos e reações humanas. E no plano da realização, por conseqüência, grande liberdade de formas dramáticas e estilísticas.



KABUKI

Essa liberdade está refletida, por exemplo, em declarações como esta, de Kinugasa (grande ator do Kabuki, especialista em papéis femininos e depois famoso diretor de cinema); “0 mais importante para mim numa película é dar um tema aos sons. Não creio na sincronização perfeita de som e imagem. O filme-imagem deve ser tratado como cinema mudo, e o som lhe dará a poesia e o sentimento. Meu maior desejo seria rodar um filme que contasse a história de um homem que vive o ano todo às margens de um rio. Sua vida nos seria contada pelos temas dos sons”. Ou esta, de Kenji Mizoguchi: "A imagem deve expressar a sensação de odor e de tato”. Um filme deve ser algo mais que uma simples expressão psicológica. Ou ainda esta, de Yasujiro Ozu, o grande realizador de Flor de Outono e Fim de Verão. “Todos os meus esforços tendem a buscar a expressão de um mundo nos pensamentos imóveis. Desejaria poder expressar todos os seus reflexos pensando sobretudo nas reações do público, que deve sempre encontrar-se a si mesmo em cada um dos personagens”

É preciso também lembrar que é somente por volta de 1950 que os problemas econômicos e sociais provocados pela guerra e pela ocupação americana foram se solucionando. O Japão retoma o seu contato com o mundo exterior, a indústria cinematográfica cresce. Mas até então tudo estava fechado, a vida era difícil. Exemplo do clima negro foi dado, na época, por Kurosawa, com o Anjo Embria­gado, de 1948.

A partir de 1950 veio o impulso, a abertura. Kurosawa filma Rashomon. Konoshita realiza A Volta de Carmem, o primeiro filme japonês a cores. Os filmes de Mizoguchi fazem sucesso. E logo o Japão se alinha entre os maiores produtores cinematográficos do mundo. É claro que a enorme quantidade de filmes que estão sendo produzidos hoje se enquadra, nos diversos gêneros, nas variadas classificações, do excelente ao péssimo: neo-reaiismo, novelas róseas, pornografia, ficção cientifica, pacifismo, exaltação militarista, drama do cotidiano, comédias, melodramas, histórias de samurais, bonzos, gueixas, fantasmas, espíritos etc.

Uma produção enorme, onde se torna difícil escolher, realizada, como em qualquer país, por diretores geniais, por bons diretores ou por uma grande parcela de imitadores e diluidores, cuja única preocupação é acelerar a linha de montagem para aumentar o faturamento. No meio de tudo isso, porém, importantes exemplos de cinema. Cada casa produtora foi se especializando num tipo de filme, cada diretor foi formando a sua escola, fruto de suas concepções, do seu modo de ver o cinema. E as grandes linhas do cinema japonês se delinearam, ao lado de um grande intercâmbio de influências com o cinema externo.



BUNRAKU

Dentro das duas grandes correntes do cinema japonês, os chamados filmes de época (jidai gekki) e os modernos (gendai gekki), podemos estabelecer algumas tendências regularmente definidas. No primeiro caso, temos os filmes históricos, produzidos dentro da tradição de Kioto, inspirados no Kabuki, contendo elementos do teatro de marionetes (bunraku), destacando-se, dentre todos os filmes de samurai e os de duelo (Kengeki). Os temas destes filmes são mais ou menos característicos: ambição pelo poder, vida de famílias ilustres, rivalidades entre famílias, histórias de bandidos, batalhas famosas, grandes espadachins. Apresentam estreitas ligações com o teatro e procuram certa fidelidade histórica.


KENGEKI

A simbologia destes filmes, herdada do teatro, facilita a sua aceitação pelo público, embora o ocidental os veja muitas vezes como complicados ou exagerados. Com grande dinâmica, estes filmes são formalmente apurados, até requintados, ressaltando-se sempre a excelente fotografia. Foi com filmes deste gênero que o Japão abriu as portas do Ocidente. Os Sete Samurais. a vida do lendário Miyamoto Musachi, filmada por Uchida e Inagaki, são exemplos. Com Murmúrios do Rio Fuefuki, Kinoshita nos dá outro grande exemplo. E muitos e muitos outros: Harakiri. A Espada Fantástica. Trono Manchado de Sangue, Orgulho de Samurai.

Importantíssima função tem nestes filmes, como,disse, a simbologia. Essa simbologia trabalha também com o tempo do Kabuki, no qual em poucas horas temos comprimida para nós a vida de várias gerações ou mesmo séculos. Simbologia que compreende ainda os sons (o canto do Kirigirisu, um inseto, significando outono), a maquilagem, a gesticulação, as cores, tipos de penteado, as variações do tempo, a vegetação, uma infinidade de signos não verbais que de geração em geração o Kabuki pôs em circulação e que o cinema assimilou.

Mas é com filmes sobre temas atuais que uma boa quantidade de opções se abre para nós. É famosa, por exemplo, a linha intimista, onde diretores como Gosho e Naruse despontam, que faz da mulher o centro das atenções. Através desse fio condutor, sem grandes lances ou polêmicas, mas sempre firmemente, é-nos apresentado um vasto painel da vida japonesa: conflitos íntimos, transformações do mundo moderno, prostituição, ocidentalização, costumes tradicionais em choque.

Filmes como Quando a Mulher Sobe a Escada, A Face de Marfim, Caminho Espinhoso, Canção da Despedida representam bem esta corrente. Românticos às vezes, chegando quase que à perfeição, sob o aspecto formal, os filmes destes diretores causam certa estranheza ao ocidental menos familiarizado com a vida japonesa. Mais estranhos ainda nos parecem os filmes de Yasujiro Ozu e Hideo Ohba. Longas sequências, tomadas esticadas, lentidão, requinte estético até à obsessão, rigor, poesia, o cotidiano tomado ao vivo sem grande alarde. E, formalmente, talvez como poucas vezes o cinema seja capaz de mostrar, o grande problema do ritmo e do tempo fílmico, resolvidos por eles segundo uma duração concentrada em profundidade, com enquadramentos rigorosamente simétricos, de característico estatismo. Anticinema como grande cinema.

Dentro da linha moderna, podemos, de outro lado, destacar, numa classificação bastante abrangente talvez, os filmes de caráter realista e de crítica social, neles incluindo não só os da vida cotidiana, como os de guerra, os de crianças, os policiais. Difícil se toma, sem dúvida, trabalhar com tais critérios de classificação, já que cada filme pode apresentar também diversos aspectos temáticos ao mesmo tempo. Com efeito, o realismo japonês, por exemplo, tanto chega a alcançar propostas como a dos italianos (Okasan) como pode incorporar soluções impensáveis para nós, trechos melodramáticos ou cômicos misturados com a maior liberdade. Será preferível, quem sabe, partir para as análises de cada caso, vendo pois o filme como produto de uma concepção de cinema, a de cada diretor como responsável final pela obra, passando, é claro, em revista todos os seus componentes.

Longa seria a exemplificação: Homem Mau Dorme Bem, de Kurosawa; Não Deixarei os Mortos, de Ichikawa; O General Nu, de Horikawa; Guerra e Humanidade, de Kobayashi; Morte à Fera, de Sugawa, etc. Esses filmes modernos tratam de quase todos os aspectos da vida do Japão atual e são mais compreensíveis para o ocidental por essa razão. Destituídos de exotismo, expressam bem o que é o cinema japonês, talvez melhor que os históricos.

De um modo geral, são filmes realistas, merecendo, para mim, maior destaque a abordagem que dão à vida cotidiana, nela mergulhando em profundidade, trazendo à tona todo um vastíssimo elenco de tipos e de múltiplas situações humanas, anti-cinematográficas por excelência para o ocidental. São filmes que se nutrem na vida: conflitos de gerações, a miséria, as monografias de famílias ou de pessoas que têm um ofício particular (o médico, o chofer de táxi, o professor), a velhice, a vida de pessoas deficientes ou defeituosas, a história de um padeiro. Pela variedade de temas, grande parte destes filmes chega quase a se constituir numa espécie de crônica dos problemas que o público enfrenta na sua vida diária.