quarta-feira, 14 de abril de 2021

O MONÓLOGO DE VIRGINIA WOOLF

 

VIRGINIA   WOOLF

DOROTHY RICHARDSON
Em 1918, May Sinclair, ao rever as novelas de Dorothy Richardson, empregou, ao que parece pela primeira vez, a expressão stream of consciousness para definir o método usado por esta e outros escritores, Joyce e Virginia Woolf inclusive, que permitia ao leitor conhecer o que se passava na mente dos seus personagens enquanto eram narrados  os episódios de suas vidas. De fato, esse novo processo revelava um contínuo presente até então negado àqueles que liam. Os benefícios foram muitos, em intimidade e imediatismo, principalmente. Os escritores, adotando o stream of consciousness, deixavam de ser simples repórteres ou historiadores, pois com ele podiam completar a visão exterior e, por isso, parcial, das vidas de personagens que punham nos livros.

Muitos procuraram determinar as origens dessa técnica. Havia os que levavam a discussão para o passado, afirmando que ela já era utilizada por escritores mais antigos, Flaubert, por exemplo, ou por aqueles cujos personagens tinham um controle mental frouxo, de modo especial os dos vitorianos, como as irmãs Bronte e George Eliot. Outros, embora reconhecendo esse ponto de vista, notavam que o stream of consciousness só tomara sentido nos fins do século XIX, provindo daquilo que na última década desse século recebeu o nome de Psicologia, depois do aparecimento do livro Principles of Psicology, de William James. Outros ainda, se bem que em menor número, e apenas reconhecendo como válida a experiência de Joyce, mais tarde levada às últimas consequências com o Ulisses (1925), afirmavam que o método surgira em razão dos testes de livre associação que Jung, em Zurique, onde Joyce vivera, usava na psicoterapia.

O mais certo, talvez, seja dizer que o stream of consciousness tinha as suas bases em todas essas correntes: aproveitava-se das experiências do passado e da ciência do presente. O primeiro escritor a usá-lo deliberadamente foi Dorothy Richardson, na novela Pointed Roofs, início de doze outras, que constituiriam o Pilgrimage, concluído em 1935. Essa obra, como observa Virginia Woolf, satisfazia na medida em que deixava de ter enredo, comédia, tragédia, interesses amorosos e catástrofes; havia simplesmente Miriam Henderson vivendo o dia-a-dia, experimentando, sentindo e reagindo aos estímulos do mundo exterior, pessoas e coisas.

Levantou-se então, um problema: se a matéria do escritor era tão subjetiva, se o movimento da mente humana, com os fenômenos apenas refletidos, era tão variável, como estruturá-la? Quais os limites a serem impostos? Qual o princípio orientador para a seleção de pensamentos, impressões sensitivas e associações de fluxo total da atividade mental? Com o Pilgrimage é impossível falar em estrutura, construção ou forma. A seleção implicava na significação a ser dada à exposição.  Caberá a Virginia Woolf  traçar as novas perspectivas para isso; todas as suas novelas girarão em torno de um ponto: dar uma significação a esse fluxo, a essa atividade incessante da mente humana, por meio de um paradigma dele retirado.

Em uma novela como Mrs. Dalloway temos a vida em estado de criação permanente, mudando interminavelmente de momento para momento, como uma fonte onde o instante fosse representado pela gota de água que cai. Os personagens de Virginia Woolf estão plenamente conscientes do momento que passa. Decorre dessa situação uma notável complexidade porque entram em jogo não só os pensamentos

e sensações no momento da apreensão, mas também um modo de sentir muito especial, embora às vezes não mais que uma apreensão incompleta do mundo físico. E no próprio instante em que o momento é ultrapassado ocorre uma recapitulação de experiências passadas através dos elos da associação. Pode-se mesmo dizer que nesse sentido Virginia Woolf faz, constantemente, numa escala menor, o que Proust fez ao escrever À la Recherche du Temps Perdu.

O acontecimento na obra de Virgínia Woolf não tem importância fundamental; vem em primeiro lugar o modo pelo qual é dada uma significação aos momentos de apreensão dos personagens. Em Mrs. Dalloway, nota-se que a sucessão de momentos dá margem a que tanto Clarissa como Peter Walsh façam uma recapitulação de suas vidas quando entram em contato permanente com a realidade. Já em Between the Acts, sua última novela, e talvez a melhor, Virginia Woolf coloca a ação contra todo o background da história da vida. Ela apresenta, numa tarde de verão de antes da guerra, no campo, todo o épico da história humana, o que muito aproxima essa obra do Ulisses, de James Joyce. 

Em To the Lighthouse, afora as relações entre Mrs. Ramsay, seu marido e filhos, um poderoso fator de unificação é o próprio farol, que se torna um símbolo de vida, carregado de muitas significações. Na segunda parte desta novela, um interlúdio entre os dois períodos da ação, o tempo é evocado: mais do que em The Waves, os solilóquios dos personagens, postos em nove passagens descritivas da marcha do sol sobre o mar, desde a aurora até à noite, ressaltam o camera eye de Virginia Woolf: inexistência de comentário interpretativo e variação na tomada dos ângulos.

As dimensões se ampliam: espaço e tempo objetivo, de um lado, e duração vivida e fluxo de consciência dos personagens de outro, que seguem isoladamente o fio dos seus pensamentos.
O momento total será procurado através de Orlando, a biography, concebido a princípio como fantasia romanesca, num dia de outubro de 1927. Orlando não tem caracterização, enredo ou conflito: move-se ora livre, ora indiferente, ora submetido ao tempo. A existência do personagem começa a ser relatada nos tempos da Rainha Elizabeth e termina arbitrariamente em nossos dias. Se porventura os cenários desta história deslizam por águas e campos, por montanhas, navios piratas, ruas estranhas, salões brilhantes, festas e solidões, sente-se que poderiam ser outros os lugares e personagens, escolhidos pela autora como simples exemplos. Sucessivamente homem e mulher, Orlando representa a experiência do ser humano nas diferentes situações em que a natureza o coloca. Vemo-lo, vemo-la, seguir, exposto à variação das épocas, da idade, do sexo, da condição social, as suas próprias variações, Orlando, criatura humana.


Assim, mediante o processo artístico é que Virgínia Woolf vai impor ordem no fluxo das vidas vividas no tempo; a arte entra como um substituto da religião e o ato criador do artista resulta em equivalente da intuição mística. O caminho levou-a naturalmente a uma forma tão elástica e livre como a vida, ao romance microcósmico, que não mais se contentaria em descrever, mas em interpretar a realidade.

VIRGINIA WOOLF
As anotações do Diário de Virginia Woolf são bem esclarecedoras quanto a este ponto. Uma delas coloca-nos diante do problema: Por que não há uma descoberta na vida? Algo que se pudesse tomar nas mãos e dizer: é isto. Minha depressão é um sentimento perseguidor. Eu estou olhando, mas não é isto,  não é isto. O que é? E morrerei antes de encontrá-lo. Então (como estivesse andando pela Russel Square ontem à noite) vejo as montanhas no céu; as grandes nuvens; e a lua que surgiu sobre a Pérsia. Tenho uma grande e surpreendente sensação de que alguma coisa está "ali". Não é propriamente à beleza que me refiro. É de que a coisa se baste em si mesma, plenamente acabada. Uma sensação estranha, muito particular, andar sobre a terra, estar ali também; da infinita singularidade da posição humana; caminhando através da Russel Square com a lua por cima e aquelas nuvens. Quem sou eu; o que sou; e assim por diante. Esta situação se traduz tecnicamente pela escolha do monólogo interior, instrumento de exploração do universo obscuro das lembranças, dos desejos, dos sonhos, do domínio do inconsciente.

QUARTO  DE  VIRGINIA  WOOLF

Muitos se insurgiram contra estas revelações; o artista não era mais o criador a quem tudo se permitia, mas, agora, um operador que dava ao romance uma perspectiva, em vez de fazer dele um panorama. O romance, como a vida, se desintegrava: átomos combinados de um modo ou de outro, conforme o movimento imprimido ao conjunto da matéria em suspensão. A vida deixava de ser uma série de objetos dispostos simetricamente para tornar-se um halo luminoso onde estamos encerrados desde o nascimento da nossa consciência até a morte. E para entender havia que ouvir a "palavra da água": um efeito rápido, fluxo de frases, correntes uma atrás das outras como a lava; ritmo acelerado, "linguagem ingênua como a dos amantes, palavras de uma única sílaba como as de que se servem as crianças quando entram na sala e encontram a mãe ocupada a coser, e pegam do chão um floco de lã brilhante, uma pena, um pedaço de cretone... um gemido, um grito”.



Alguns filmes baseados na obra de Virginia Woolf: The hours (As horas), Orlando (Orlando, a mulher imortal), Mrs. Dalloway (Sra. Dalloway)...

No ano de 1941, em março, devido aos problemas causados pela Segunda Guerra Mundial (destruição de sua casa em Londres), má acolhida de seus textos e, sobretudo, por causa do estado depressivo em que (sempre?) vivera desde a sua juventude, Virginia Woolf suicidou-se, afogando-se num rio perto de sua casa.

Túmulo de Virginia Woolf, sob um olmo, no jardim de Monk's House, Rodmell, Inglaterra.