terça-feira, 17 de julho de 2012

AFRODITE - CARMEM


AFRODITE


DALILA E SANSÃO (1609, RUBENS)

A arte, a literatura mais de perto, apresenta inúmeros exemplos da feminilidade perigosa, temível, noturna, como a encontramos em muitas mitologias. A Bíblia, por exemplo, está cheia de mulheres perigosas para os homens, Judith, Esther, Dalila e muitas outras. Se ficarmos na  mitologia greco-romana, de onde extrairemos os melhores exemplos para a cultura ocidental, podemos, por exemplo, falar de Circe e de Calipso, que tantos problemas causaram ao herói Ulisses, como está na Odisseia, e da romana Lara, também chamada Tácita ou Muta, de perigosos encantamentos.



ISHTAR

Dentre as várias deusas gregas que nos fornecem modelos de comportamento (arquétipos) femininos que a mulher pode incorporar, positiva ou negativamente, Afrodite é uma das mais importantes. Deusa de origem oriental, que tem como ancestrais Ishtar (Mesopotâmia), Astarte (Fenícia) e outras, Afrodite incorpora em sua personalidade traços notáveis dessas duas deusas. Ambas se ligavam à vegetação e ao ciclo anual das estações enquanto símbolo da morte e do renascimento. Outro componente da personalidade da Afrodite grega, oriundo de antigas deusas orientais (Grandes-Mães), tem relação com antigos cultos orgiásticos, dos quais fazia parte a chamada prostituição sagrada (Hierodoulia). No mundo grego, Afrodite é incontestavelmente a deusa do amor, da beleza, do prazer, da sensualidade, da atração simpática, da sedução, tendo afinidade com a alegria, a graça, as festas, a convivência harmoniosa e educada, com os risos, as flores e os perfumes.


PALAS ATHENA
O modelo oriental de Afrodite passou certamente por um período de aclimatação no mundo Egeu, em Chipre, onde tinha nome de Aphro-deti, isso bem antes da chegada dos aqueus à futura Grécia continental. Afrodite não encontrou facilmente lugar no panteão grego, entre os doze “grandes”, os olímpicos. A deusa Palas Athena, divindade tutelar de Atenas, votava-lhe, por exemplo, grande antipatia. Afrodite era chamada pelos atenienses de “a oriental” ou “a prostituta”, nenhum culto se realizando na cidade em sua homenagem.

Os gregos distinguiam, dentre os vários comportamentos de Afrodite, dois, em especial. Um deles era o da chamada Afrodite “popular” (Pandemia), que tipificava a mulher comum, a mulher do povo, que assegurava a reprodução e a continuidade da raça, e outro, a “celeste” (Urania), a dos amores elevados, puros, onde expressões físicas não entravam, que procurava fazer com que a alma reatasse seus contactos com o divino.


AFRODITE "ORIENTAL"

Entre estes dois padrões havia muitos outros, caracterizados pelas diversas experiências da vida da mulher nos quais o que de mais importante se notava eram os sentimentos e os contactos humanos sob o ponto de vista amoroso. Lembre-se que Afrodite foi criada para colocar as relações humanas sob a perspectiva da reciprocidade. Embora suave, cheia de ajustes, havia um certo ardor nesta dinâmica, pois para a deusa a vida era a arte dos encontros, o que levava muitos a considerá-la como uma oportunista. As aspirações profissionais que o modelo Palas Athena inspirava eram certamente muito tediosas para a mulher-Afrodite. A deusa também não estava interessada em uniões formais ou na maternidade, como Hera ou Deméter. Poderia, quando muito, ser até uma mãe afetuosa, mas nunca convencional, já que os relacionamentos ocupavam um lugar mais importante em sua vida, sejam eles amorosos, amigáveis, sociais, platônicos, físicos, extraconjugais ou simplesmente de tendência espiritualizante.


ZEUS E HERA
ÁRTEMIS

 Nos tipos superiores, a mulher-Afrodite pode ser tanto sensual como sensível, civilizada, culta, não demonstrando nenhum interesse, por exemplo, em atividades esportivo-sociais, como acampar em montanhas ou participar de pescarias em alto-mar, coisas da mulher Ártemis. A Afrodite de que estamos falando, a do tipo superior, costuma se sentir bem com o seu corpo e a sua sexualidade é no geral descomplicada. Precisa, sim, de uma vida social ativa, onde o amor ou mesmo a sua simulação ocupe um lugar importante.


AFRODITE KALLYPIGIA
Nos tipos inferiores, encontramos, por exemplo, as mulheres-Afrodite que querem ser rainhas de beleza, que podem fazer do seu corpo um meio de acesso a níveis socialmente endinheirados. Um destes modelos é a chamada Afrodite kallipygia (de belas nádegas), que facilmente se transforma em símbolo sexual. A Afrodite Pandemia, a partir do final do séc. XIX, trocou a sua função de reprodutora, de “deusa do lar”, por papéis mais públicos. Com o cinema, a TV, as novelas, os espetáculos musicais e da moda, além de uma intensa exposição da vida íntima das pessoas por psicólogos, religiosos, sexólogos, médicos e repórteres policiais em programas sensacionalistas, Afrodite e suas histórias passaram a fazer parte do nosso cotidiano.


 Qualquer que seja o ângulo pelo qual a consideremos, Afrodite sempre representou algo de fatal para o patriarcado, para o machismo, vista ora como sedutora perigosa, despudorada, ora como bruxa, feiticeira, ou ainda como destruidora de lares, vampe, mulher que seduz os homens para arruiná-los, depois de tê-los explorado sexual e/ou economicamente em muitos casos.


Para falar da Afrodite Androphona dos gregos, modelo da mulher destruidora de homens, é preciso ir um pouco mais ao fundo do seu arquétipo. De início, saliente-se que a Afrodite grega, embora com traços mais suavizados, conservava muito da personalidade da deusa Ishtar (personificação do planeta Vênus no mundo assiro-babilônico), deusa do amor, mas com um forte temperamento guerreiro também. Deusa da voluptuosidade, mostrava-se Ishtar muitas vezes irascível e violenta quando sua vontade era contrariada. Sua cidade, Erech, era famosa como centro da prostituição sagrada, como Corinto, na Grécia, o era de Afrodite. São conhecidos os inúmeros casos amorosos de Ishtar, sendo o mais famoso aquele que manteve com Tammuz, o deus da vegetação. Este caso amoroso foi transposto para a mitologia grega, sendo seus os seus personagens Afrodite e Adônis.

 
AFRODITE E ADÔNIS

 Nas antigas sociedades patriarcais, a descendência e os bens (propriedades e dinheiro) eram, como ainda hoje o são, transmitidos patrilinearmente. Dessa via dependia também a continuidade religiosa, permitindo esta que os pais se imortalizassem através de seus filhos. Neste sistema, a fidelidade da esposa era muito importante, essencial diga-se, como garantia dessa transmissão, sob todos os seus aspectos.

A liberdade que Afrodite propunha, como arquétipo, sempre foi uma séria ameaça para a estrutura das sociedades patriarcais, nas quais instituições como o concubinato e a prostituição tinham (hipocritamente) um lugar, sendo até muito toleradas e admitidas. Raríssimo, porém, que o filho de um patriarca com uma concubina ou uma prostituta viesse a ter reconhecidos quaisquer direitos diante dos que eram fixados para o de um casamento legal.


Desde que as religiões patriarcais se impuseram, os patriarcas, ainda que alguns se sentindo culpados, pecadores etc., sempre buscaram a mulher-Afrodite fora de suas uniões oficiais. Um efeito colateral dessa atitude é a espantosa ignorância na qual foram (são) mantidas as esposas pelos maridos, a fim de que esse sistema de privilégios seja mantido.                                                       Decorre daí o medo
de que as religiões patriarcais têm da mulher-Afrodite, razão das inúmeras restrições que limitam a liberdade feminina em muitas sociedades, ainda hoje, quer sob o ponto de vista religioso, político ou civil. Entre os semitas, judeus ou islâmicos, a nudez masculina ou feminina é um tabu; nada de corpos expostos, tudo muito diferente daquele saudável amor ao corpo masculino e feminino e à nudez que gregos e romanos sempre demonstraram com a sua maravilhosa arte. O ocidente que se diz cristão caminhou no sentido contrário. Vem expondo mais abertamente os corpos, o da mulher principalmente, erotizando-os, não para promovê-la, mas, sim, para transformá-la em objeto de consumo, um meio, como o anterior, de mantê-la prisioneira do sistema.


    Não há nenhuma referência no cristianismo sobre essa questão, a de Cristo ter se insurgido contra o
SANTO AGOSTINHO
sexo ou ter desprezado o corpo das mulheres. Ao contrário até, pois muitas o seguiam de perto, mencionando-se ainda o fato de, depois de sua ressurreição, ter ele procurado Maria Madalena, de quem era muito próximo. O problema da rejeição da mulher no cristianismo começou com São Paulo, que tinha uma verdadeira obsessão no sentido de impedir o que ele chamava de fornicação (prática sexual, especialmente com prostitutas, ou ato sexual com parceiros diversos; “fornicatio, onis”, ação de abobadar, formar um arco, movimento do corpo fazendo sexo). Para São Paulo, o melhor que o homem tinha a fazer era procurar o celibato. Se a carne se mostrasse fraca, seria preferível, então, o casamento, sempre um mal, mas um mal menor diante da fornicação, pois era melhor, como dizia, “casar-se do que arder”. No cristianismo, foi por causa do discurso de dois inimigos das mulheres, São Paulo e Santo Agostinho, dois misóginos, que mulher, sexo, sujeira, banho e pecado sempre apareceram associados desde então.


Expulsa das religiões patriarcais, Afrodite assumiu um dos seus grandes papéis, o da mulher fatal, destruidora de homens. Sob o ponto de vista filosófico ou psicológico, o esquema é conhecido. Afrodite é o arquétipo (arkhê, original, antigo, + typos, exemplar, modelo) dos padrões femininos por excelência, isto é, modelo ou padrão passível de ser reproduzido em simulacros ou objetos semelhantes; é paradigma, princípio explicativo de todos os demais tipos femininos, que vêm sendo atualizados simbolicamente ao longo da história da humanidade, segundo a cultura e a época em que eles se manifestam ou são criados.


Embora deusa do amor, são notáveis as raivas de Afrodite, as suas vinganças, as maldições que envia, podendo ela fazer do amor uma arma terrível, venenosa, destrutiva, já que o ódio e o amor são as duas faces de uma mesma moeda. Pelo fato da deusa Eos, a Aurora, ter se enamorado de seu antigo amante, Ares, deus da guerra, Afrodite fez com que ela se apaixonasse
FEDRA E HIPÓLITO
pelo gigante Orion, um tipo violento e complicado. Por ter renegado o seu culto e adotado o da virgem Ártemis, deusa lunar, o jovem Hipólito foi punido, tornando-se objeto de uma paixão incontrolável de Fedra, sua madrasta, mulher de Teseu. Este, como se sabe, expulsou o filho do palácio e pediu que seu pai divino, Poseidon, o punisse. Um monstro marinho espantou os cavalos do carro do jovem príncipe, que se despedaçou ao cair sobre os penhascos da estrada Atenas-cabo Sounion, à beira-mar. Por não lhe terem condignamente prestado culto, as mulheres da ilha de Lemnos foram punidas. Fez com que o corpo delas exalasse um odor tão insuportável que todos os homens da ilha as abandonaram. Esta maldição só foi revogada pela deusa a pedido de seu antigo marido, Hefesto, quando os argonautas, em trânsito para a Cólquida, ali aportaram.


HELENA E PÁRIS

São muitas as histórias dos grandes amores, das proteções, dos malefícios e das vinganças de Afrodite. A disputa pelo título de “a mais bela”, quando da festa de casamento de Peleu e de Tétis, dá bem uma ideia do poder da deusa e da catástrofe que ela acabou provocando ao fazer com que a belíssima Helena, rainha de Esparta, mulher do rei Menelau, caísse nos braços de Páris, príncipe troiano.

O papel de mulheres que destroem os humanos e que perturbam a vida dos imortais pode ser vivido por mortais e deusas. Dentre estas últimas destacamos, exemplificando, as já citadas divindades Circe
CALIPSO E ULISSES
e Calipso, a elas juntando Eos, a Aurora, uma consumada raptora de amantes; algumas divindades que vivem no Jardim de Perséfone fazem parte dessa galeria, como a terrível Até, odiosa aos próprios deuses, que tanto perturba o espírito dos homens ao entregá-los à desgraça; outra é Phtonos (olhar com maus olhos), a Inveja que os romanos chamavam de Invidia, um monstro que o mais brilhante mérito não pode sufocar. Quanto às mortais que incorporam o arquétipo da Afrodite Androphona (Andros, homem, e phonos, assassinato), a mitologia grega tem um grande rol dessas figuras, que, como símbolos, atualizam o referido padrão de comportamento. Clitemnestra, as Danaides, Electra, Dejanira, Medeia e Fedra são alguns exemplos.
 
MEDEIA E FILHOS

Artistas, poetas, escritores, músicos, por seu lado, criaram e continuaram criando, ao longo dos séculos, como se disse, personagens que simbolicamente atualizaram o arquétipo, cada cultura fixando os seus modelos. No século XIX, apareceu na literatura uma mulher meio anjo, meio demônio, que, como personagem, é uma das mais bem acabadas atualizações do arquétipo da Afrodite Androphona, que estudamos.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        Prosper Mérimée, 1803-1879, escritor francês, em Paris, educado num meio culto de tradição voltairiana, formou-se em Direito.                                                                                              

Desde cedo, porém, decidiu-se pela literatura, relacionando-se inclusive com Stendhal, um dos maiores nomes das letras francesas de então. Muito ligado a temas espanhóis, Merimée publicou, em 1845, “Carmen”, personagem delineado segundo os atributos da mulher fatal.   Carmen era, como então se dizia, de costumes levianos, levava uma vida boêmia; seduziu e aniquilou um homem honesto, trabalhador e respeitador dos valores tradicionais da sociedade; apaixonando-se por ela, esse homem, Don José, cometeu um crime e destruiu a sua vida. Carmen, por seu lado, acabou tendo que assumir o papel de bode expiatório (outro arquétipo) e pagou com sua vida o que causou com o seu comportamento, sempre perigoso para o mundo masculino. Foi sacrificada em nome da moral, da decência e dos bons costumes. O cenário em que Merimée colocou a sua Carmen “pedia” esse fim.

Merimée construiu Carmen como mulher fatal usando componentes físicos que podemos chamar de “noturnos”. Por isso, para começar, ela era uma cigana, de lindos cabelos negros (tinham reflexos azuis como as asas de um corvo); seu olhar era forte como o de um lobo, sua pele, acobreada. Os valores de Carmem eram noturnos, totalmente avessos à luz. O negro, como sabemos, é símbolo do caos, do que não é, do erro, da desorientação, do descaminho. À noite corremos o risco de nos perder, pois deixamos de ver, o que sugere perdição, ignorância, inconsciência. Entrar na noite é entrar na indeterminação.   

O lobo, por seu vez,  sugere vida instintiva. É um animal caçador, predador, que gosta de atacar antes que o Sol nasça. Seus hábitos são, sobretudo, noturnos. Tem a fama de devorador, sendo usado para simbolizar, negativamente, as pressões animais que no ser humano se impõem à sua racionalidade. Carmem era, nesse sentido, uma lupina. Na mitologia dos escandinavo-germânicos há um famoso monstro, o lobo gigante Fenris, que na batalha final pela posse do universo (Ragnarok) entre deuses e monstros atacará Odin, devorando-o.

A referência de Merimée ao “olhar de lobo” de Carmem põe em evidência não só a sua ferocidade (o lobo é um animal feroz), a sua força incontrolada, mas também nos fala de tentação, de sedução, de falta de escrúpulos. O lobo sempre foi visto como a imagem de uma libido descontrolada, traduzida por uma grande avidez, de tendências egoístas, antissociais, violentas, virtualmente destrutivas.

Como o urso e a serpente, o lobo simboliza igualmente a sombra, aspecto inconsciente da personalidade humana cuja manifestação pode ser perigosa diante das energias despertadas, fazendo a consciência submergir. Carmem é, nesse sentido, a antítese da luz, atributo divino, coeterna à escuridão e dela saída. Não é Carmem, pois, um ente solar, símbolo do espírito, do conhecimento direto e inspirado, por oposição ao conhecimento lunar, cuja luz é reflexo dos raios do Sol.

Desde o início do texto de Merimée, ficamos sabendo que Carmem vem de um mundo proibido e ao mesmo desejado pelos homens. Sua vida liga-se à água, a um rio, lugar onde as mulheres entregavam-se aos prazeres do banho. A água, como sabemos, é um dos grandes temas da “solutio” alquímica, que, basicamente, transforma o sólido em líquido. O sólido, nas terapias do psiquismo, nos fala dos aspectos fixos e estáticos de uma personalidade que não admite mudanças. Estabelecidos ao longo de muitos anos, esses aspectos se nos apresentam como justos e corretos, mas podem ser destruídos pela operação alquímica a que estamos nos referindo.

A solutio é de Afrodite, deusa que nasceu no elemento líquido. Os poderes dessa operação têm como agentes, no mito, como se sabe, sereias e ninfas aquáticas, que atraem os homens, levando-os à morte por afogamento. O Antigo Testamento nos oferece um exemplo clássico de uma solutio fatal. O rei David era um homem íntegro, culto, sábio. Um dia, sem querer, do alto de uma janela do seu palácio viu uma mulher lindíssima que se banhava. Apaixonou-se por ela. Ela se chamava Betsabá e era casada com Urias, um soldado hitita. David pediu aos seus chefes militares que o enviassem para lutar na linha de frente do exército judaico para que fosse morto em combate. O profeta Natan censurou asperamente o rei David por esse procedimento. David se uniu a Betsabá e com ela teve um filho, que se tornaria mais tarde o famoso rei Salomão.

BETSABÁ  ( REMBRANDT )

 Exemplos como o de David são inúmeros no mito e nas artes, na literatura especialmente. Os aspectos fixos da personalidade de David literalmente liquefizeram-se, foram destruídos. Imagens de afogamento, de descida à profundeza das águas, costumam aparecer quando um acontecimento dessa natureza ocorre na vida de alguém. O banho, a imersão na água, as chuvas que inundam e alagam são imagens da solutio alquímica, que podem também aparecer em sonhos. O batismo, por exemplo, é um ritual que participa do tema da solutio lembrando morte e renascimento. Quando a solutio simplesmente acontece, como a de David, ela pode ser perigosa porque, em muitos casos, é experimentada com grande sofrimento, pois costuma provocar o desmoronamento do ego, que se acreditava inabalável.

A beleza de Carmem fascina e intriga. Ela vive num ambiente noturno, de práticas ilícitas, de contrabando, de roubos. Usa seus encantos para isso, passa por feiticeira, pondo em perigo todos os homens com os quais se relaciona. É Carmem quem vai decidir o destino de D.José. Ela vive agitada, sua vida é escandalosa; ela é instintiva, provocativa, agressiva. Seu lado animal é ofensivo, mas tremendamente sedutor. Suas cores são o vermelho e o negro.

CARMEM

Na extensa galeria das mulheres destruidoras de homens, Carmem é um dos mais bem acabados símbolos da Afrodite Androphona. Ela ocupa, justificadamente, sem dúvida, uma posição de destaque ao lado das maiores vampes de todos os tempos. Como estereótipo da mulher sedutora, perversa e cruel, sádica, a vampe, desde a antiguidade, sempre foi a sombra da mulher virtuosa. A vampe é imoral, sua sexualidade é escura e poderosa. Seu poder provém de sua habilidade de liberar nos homens suas latentes
energias sexuais, contidas por razões religiosas e culturais. Ligava-se a eles e solapava a sua vitalidade. Os modelos modernos são descritos como mulheres de unhas escuras (esmalte cor de sangue), jóias e
THEDA BARA
adereços que lembram animais satanizados (serpentes, escorpiões, aranhas, sapos etc.), agentes das forças malignas; essas mulheres já no séc. XIX fumavam em público (algo impensável à época) com uma indefectível piteira (símbolo fálico); seus modos sugeriam uma origem da Europa central ou do Oriente Próximo. Quem definiu o tipo vampe moderna no início do cinema (anos 1920) foi uma judia de Cincinatti, Theodosia Goodman, que assumiu na tela o nome de Theda Bara, um anagrama de Arab Death.

Mas, voltando à nossa Carmem, o que temos em Merimée é a queda de D.José, trágica, vista como uma espécie de possessão demoníaca. Carmem o faz vivenciar sentimentos como a paixão, o ciúme e o ódio. Vitimado por ela, que encarna o erro e o pecado, D.José se torna violento, cai moralmente, incapaz de refletir, embora tenha ele chegado a acreditar na “conversão” de Carmen, de modo a torná-la uma mulher boa e sensata.

O romance de Merimée fixa D.José como o representante da ordem social vigente, do sistema; é um militar, um “quase” padre, pois chegou a cursar o seminário. Ele faz parte de um mundo que cultua as belas palavras, honra, respeito, hierarquia. No lado oposto, Carmem, que é boêmia, marginal sob o ponto de vista social, transgressora contumaz, não conhece outra lei senão a da sua vontade.

MICAELA
Para Carmem, música e erotismo são a mesma coisa. Seu corpo vibra de sensualidade e ela tem domínio completo sobre ele. Ela sabe, pelo poder da vidência, que a morte a espera, mas isso não a incomoda. Irá até o fim. Carmem é dionisíaca, uma grande mênade, sem dúvida. Na ópera de Bizet, Micaela, como personagem, é a antítese de Carmem. Veste-se de azul, nada tem de excitante. Não tem o riso ofensivo da cigana. D. José louva a pureza e a candura de Micaela, mulher ideal, virgem, madona.

A novela de Merimée apareceu em 1845. É um texto sobre o amor, a violência e a morte. Em Sevilha, encontram-se Carmem e D.José. Vitimado pela paixão que sente por ela, ele, um homem da lei, se torna contrabandista e assassino. No momento em que julga possuir a mulher amada, ela, que não o ama, prefere morrer livre a segui-lo. Ele então, desafiado por ela, a apunhá-la.
                                                     
CARMEM E D. JOSÉ


Carmem inspirou óperas e muitos filmes. George Bizet, em 1875, transformou a história em ópera. Em 1918, no cinema, Charles Chaplin e Ernest Lubitsch nos deram as suas versões sobre a personagem; em 1954, de Otto Preminger, tivemos Carmen Jones; em 1983, A Tragédia de Carmen, no teatro (1981), é de Peter Brook; em 1983, Carlos Saura nos apresentou a sua Carmen; Jean-Luc Godard (1983) e Francesco Rossi (1984) fizeram as suas transposições cinematográficas. Na ópera, de 1977, aparece Carmen, dirigida por Claudio Abbado, com Teresa Berganza e Plácido Domingo.