domingo, 8 de setembro de 2019

O CÉU E O TEMPO - I

    

CÉU  ( RENÉ MAGRITTE , 1898 - 1967 ) 

Na maioria das línguas conhecidas, a palavra céu é utilizada para designar tanto a elevada região dos astros e das nuvens como a morada de deuses e de suas cortes, além de, ainda sob o ponto de vista religioso, caracterizá-lo como um lugar para onde vão os eleitos, os bem-aventurados, ou, segundo outros, as almas dos justos depois da sua morte. O campo semântico da palavra céu é vasto, nele se incluindo conceitos astronômicos, meteorológicos, astrológicos e teológicos.  


OBSERVAÇÃO  DO CÉU
Desde tempos imemoriais, pré-históricos, as impressões que os homens recolhiam quando levantavam a cabeça e olhavam o céu deram-lhes a noção de que as incessantes mudanças e transformações que nele se observavam obedeciam a ordens superiores que independiam de sua vontade. O que ocorria no céu era inteiramente alheio e indiferente ao poder e à força dos humanos, algo maior, muito maior que tudo o que os homens  pudessem imaginar. O homem daqueles recuados tempos logo entendeu que do céu vinham a luz, a vida. Foi por essa e outras razões que ao poder maior que das regiões celestes parecia comandar tudo que as tribos indo-europeias deram a esse poder o nome de deus, palavra que tem origem no radical diw (div), deiwos, do proto-indo-europeu, que significa brilhante, celeste. Dentre todos os fenômenos que ocorriam à sua volta e acima de sua cabeça, o que mais atraiu a atenção e impressionou esse homem primitivo foi, sem dúvida, o do céu irradiando luzes.     


URANO,  GEIA  E  QUATRO  DE  SEUS  FILHOS


Antes de representar a relação céu-terra através de mitos e de divindades, o homem pré-histórico sentiu os fenômenos celestes como poder, transcendência e sacralidade. É por isso que encontramos em muitos mitos cosmogônicos, como o dos gregos, a ideia de uma unidade original entre o Céu e a Terra, ou de uma figura masculina (Urano) e de uma figura feminina (Geia) unidas, depois separadas para que o ar se interpusesse entre elas e que os homens pudessem  viver. 

TEMPLO  EM  AGRIGENTO
A simples contemplação da abóbada celeste provocou no homem antigo certamente um sentimento de religiosidade, cujos componentes mais fortes eram a veneração (reverente respeito) e a adoração (rendição de culto). Esse sentimento deu origem a determinadas atitudes então traduzidas pelo verbo considerar, olhar o céu atentamente, isto é, examinar com cuidado e respeito religioso os astros. Tudo isto levou o homem primitivo a ir elaborando uma incipiente Astrologia, uma espécie de Uranoscopia, com a finalidade de não só tentar decifrar a influência dos astros nos acontecimentos terrestres e na vida das pessoas como predizer o futuro dos grupos humanos. O mesmo se diga com respeito a palavras como contemplar (fixar o olhar no céu com respeitosa admiração).  Templum, na antiga Etrúria, era um setor do céu definido pelos áugures para a observação do voo dos pássaros então considerados como mensageiros celestes. O espaço celeste era dividido em quatro partes, quatro quadrantes, identificado o centro a partir da cabeça do áugure. Depois, os etruscos deram o nome de templum a um edifício construído por eles para esse fim. Cada setor foi subdividido em quatro secções, o que deu o total de dezesseis secções ao todo, cada uma delas tutelada por uma divindade. Este sistema foi adotado e modificado mais tarde pelos romanos e espalhado por toda Europa. Depois, templum tomou o sentido de lugar de respeito consagrado e reservado aos deuses na Terra. 

Desde logo percebeu esse homem antigo que a sua vida estava ligada de modo indissolúvel aos fenômenos celestes, sobretudo ao movimento dos astros. Esse sentimento foi formado por ideias de culto, de práticas, de escrúpulos, de receios e de superstições, muito afetada inclusive a sua linguagem. A palavra desejo, por exemplo, é, etimologicamente, afastamento do céu, dos astros. Sideralis, em latim, quer dizer relativo aos astros. Na origem, desejar (desiderare) tinha o sentido de deixar de ver (um astro), lamentar uma ausência, uma perda, não ver o que ele sugeria. Nesse contexto, apareceu, por exemplo, a palavra desastre, evento que causa sofrimento, prejuízo, calamidade, dor, porque as mensagens celestes não foram percebidas. Em italiano, ainda exemplificando, disastro, além de infortúnio, quer dizer má estrela.  


O  OVO  CÓSMICO ( S. DALI , 1904 - 1989 )

O céu se revelava para o homem primitivo como transcendência, ou seja, parecia dotado de qualidades que ultrapassavam radicalmente a sua realidade sensível. Por isso, o céu, em virtude de sua perfeição e superioridade, mantinha, com relação ao mundo em que esse homem vivia, relações absolutas de distância e de soberania. De altura infinita, o céu era o "elevado", atributo inerente às divindades que o representam. As zonas siderais tornam-se, assim, divinas. O substantivo deus como o adjetivo divino vêm, como dissemos, de um radical proto-indo-europeu que quer dizer brilhar, resplandecer  O céu luminoso é visto então como o lugar de onde vêm as manifestações diretas da transcendência, o céu como fonte de hierofanias inesgotáveis, carregadas de poder, de sacralidade, de perenidade. Como lugar inacessível que mortal nenhum pode atingir, nem ser alcançado pelos picos das mais altas montanhas, ou pelas aves a que mais alto pudessem chegar, era do céu que vinha a ordem cósmica. 

Pela ação do céu sobre a Terra, ação que lembrava penetração sexual, é que a vida surgia em sua infinita variedade e os seres nasciam. O céu dá, a terra recebe ou, como dizem os hindus, nas suas cerimônias religiosas, a mão direita dá, a mão esquerda recebe. A perfeição do céu e de tudo o que nele ocorria se revelou ao homem pré-histórico pelo movimento circular e regular dos astros. O círculo é perfeição, homogeneidade, ausência de distinção, simbolizando o movimento circular, também, os efeitos da criação, ao transmitir concentricamente a ideia de uma hierarquia entre os seres criados. Os astros, através de sua inflexível regularidade, estavam animados por um movimento circular, sempre um sinal de perfeição. Além disso, eram belos, distantes e majestosos, tivessem eles movimentos regulares (a maioria) ou movimentos irregulares, uns poucos, como os bólides e os cometas. 

Assim, era lá das alturas que provinham as dinâmicas dos ritmos cósmicos, muitas vezes contrariando os desejos humanos, impondo-se sempre inapelavelmente. Era pela ação celeste que a noite ocultava o dia, que as marés subiam e desciam, que as flores brotavam e murchavam, que os animais migravam, que as crianças tornavam-se jovens e os adultos envelheciam e morriam, que a natureza cumpria as suas funções. Uma das expressões celestes
CORDILHEIRA DO HIMALAIA
mais incisivas e categóricas do movimento dos astros se concretizava como Tempo, um poder impiedoso, indiscutível, que dominava todas as fases da vida terrestre, a mineral, a vegetal, a animal e a humana. Para confirmar o que aqui se diz, basta revelar, por exemplo, que as montanhas da cordilheira do Himalaia, ao norte da Índia, são as mais “jovens” do nosso planeta (têm cerca de 40 milhões de anos) e que continuam a crescer alguns centímetros anualmente, como o atestam os nossos fisiógrafos, os que estudam a geografia física, a dinâmica das nossas paisagens.

Dentro da fenomenologia profana e religiosa do homem primitivo, o tempo representa a duração relativa das coisas. É ele quem cria para o ser humano a noção de passado, presente e futuro, ou, de outro modo, o período contínuo no qual os eventos se sucedem. A ação do tempo só pode ser representada, por isso, pela roda, pela rosácea, sempre em movimento. Foi nos fenômenos celestes que o homem primitivo encontrou a mais perfeita expressão de um movimento uniforme e perpetuamente igual. O zodíaco era a imagem perfeita dessa representação.  Através do movimento do Sol e dos astros no círculo das doze constelações zodiacais que envolve a Terra estavam descritos simbolicamente os ciclos completos da vida em sua totalidade. 

Ainda que rudimentar inicialmente, a observação do céu foi revelando aos poucos ao homem primitivo a existência de leis precisas que regiam o movimento dos corpos celestes e de como tais movimentos tinham relação com a natureza e o curso de acontecimentos terrestres. O centro do círculo foi então considerado como o aspecto imóvel do ser, o eixo que torna possível a medida do movimento dos seres, do fluir das coisas e a compreensão do tempo como duração. Ao tomar a figura de um círculo, inscrito o tempo numa curva evolutiva entre um começo e um fim, o ser humano começou a "controlá-lo", ligando-o indissoluvelmente ao espaço, isto é, entendendo o tempo como função do espaço. 


A referência aos astros, como recurso para a medição do tempo, está em todos os livros religiosos das várias tradições. No Gênesis encontramos, por exemplo, na descrição do Hexaemeron (hex, seis; hemera, dia; érgon, obra), a obra da criação em seis dias: Deus aponta, ao criar no quarto dia, o Sol, as estrelas e a Lua, que a eles caberá iluminar a terra, distinguir o dia da noite e marcar as porções do tempo. No Alcorão, encontramos referências semelhantes, quando nele se revela que Alá criou a Lua e indicou as suas casas para que os homens pudessem conhecer o número dos anos e a medida do tempo. O mesmo encontramos entre os judeus, cujo calendário é constituído por doze meses lunares.

RELÓGIO  ZODIACAL  DA  CATEDRAL  DE  CHARTRES

Dos astros vinham a luz e as trevas, o frio e o calor, a esperança e o medo. A partir deles, fixou-se o entendimento da vida como um ciclo composto de vários subciclos. O círculo zodiacal era dividido pelo número perfeito, o doze, o número das constelações. Quatro, dentre elas, marcam o tempo "forte" na caminhada solar, Touro, Leão, Escorpião e Aquário. Elas se situam entre os equinócios (21 de março, Áries, e 21 de setembro, Libra) e entre os solstícios (21 de junho, Câncer, e 21 de dezembro, Capricórnio). São seguidas pelas constelações que fazem as passagens dos tempos "fortes", Gêmeos, Virgem, Sagitário e Peixes, para o início das estações. O círculo zodiacal se divide em quadrantes iguais de 90º. Todos os povos da antiguidade, em todas as longitudes e latitudes praticaram a Astrologia, conheceram o Zodíaco, entendendo-o como uma soma dos símbolos cósmicos, fisiológicos e psicológicos, a partir do círculo.


A  PERSISTÊNCIA  DA  MEMÓRIA ( SALVADOR  DALI , 1904 - 1989 )

Criava-se a ciência do tempo a partir da observação do movimento dos astros no céu, no cinturão das constelações zodiacais. O Zodíaco foi, sem dúvida, o modelo de todos os relógios, mecanismos para medir o Tempo, que viriam a ser fabricados. Horologion, em grego, era o quadrante solar em que se liam as horas, isto é, segmentos de uma duração, maiores, como o dia e a noite, ou menores, como momentos, instantes (etimologicamente, aquilo que está para acontecer, ameaçador, próximo, pendurado).  

Diante do imediatismo que cercava a existência do homem primitivo, a primeira distinção a ser estabelecida foi entre a luz e as trevas. Entre dois períodos luminosos, um período de trevas. A luz era o ponto de partida para a fixação da contagem, a luz que lhe permitia dedicar-se ao trabalho, à caça, à pesca, à agricultura, à vida fora das cavernas ou sem a necessidade de se empoleirar no alto das árvores ou esconder-se no fundo das cavernas para se proteger. Quando o Sol mergulhava no oceano ou sumia atrás das montanhas e sem meios para produzir e controlar adequadamente o fogo, era o terror. O homem se envolvia então com a noite, o sono assustado, o descanso precário, o medo, o temor de que o Sol não voltasse de sua viagem noturna.

Durante milênios sem conta o homem primitivo viveu preso a esses dois momentos, luz e trevas, representados pelo Sol e pela Lua. Essa dualidade fez, evidentemente, com que o dia fosse amado e a noite temida. Tudo o que se relacionasse com a Lua, desde tempos
GIUSEPPE  VERDI
imemoriais, seja nos mitos, nas religiões, no folclore, nos contos populares, na arte, na poesia, nas canções, passou a simbolizar privação de luz própria, já que ela é passiva, não sendo mais que um reflexo do Sol. Além do mais, ela tem fases diferentes e muda de forma, lembrando periodicidade e renovação. Daí, a Lua como símbolo do feminino, dos ritmos biológicos, do tempo que passa. La donna è móbile, como diz Verdi no Rigoletto. 

Com relação ao Sol, a Lua foi considerada como o tempo concreto, que ela mede, através de suas fases sucessivas e regulares, da sua morte (Lua nova), que, entretanto, nunca é definitiva. Para o Sol, coube tudo o que é imutável, preciso, central, imortal, masculino, ativo. É o Sol, por excelência, o destruidor das trevas, o vivificador, aquele que revela as coisas, tornando-as perceptíveis, e, ao revelá-las, dá as medidas do espaço, sendo a base de toda geometria cósmica.

Tanto é significativo o entendimento que desde a pré-história se dava à Lua, como está acima, que os povos indo-europeus usaram para se referir a ela o radical me, que está na origem de várias palavras “lunares”, em algumas línguas, relacionadas com as coordenadas de tempo e espaço (medidas). Alguns exemplos, colhidos no nosso léxico e na mitologia grega: mês (período de 30 dias), menstruação (fluxo uterino mensal), catamênio (“descida da Lua”, menstruação), imenso (que não pode ser medido), mediato (que não se acha em relação direta com outra coisa), medida (avaliação de grandeza física), Nemeia (Bosque da Lei, ideia de limite; quinto trabalho de Hércules) Nêmesis  (deusa da justiça distributiva; seu nome provém do verbo nemein, delimitar). É deste verbo, nemein, que sai, em grego, nomos, lei, limite, regra categórica, como encontramos esta última na palavra economia (oikos, casa, família, mais nomos, lei), a lei da casa, numa tradução livre. Nomos, em grego, lembremos, é costume, convenção, norma, regra, lei constitucional ou arbitrária.

IMPRESSION , SOLEIL  LEVANT  ( CLAUDE  MONET, 1840 - 1926 )


O dia é a base de todas as medidas de tempo. Para alguns povos é calculado de aurora a aurora, para outros é o espaço entre dois crepúsculos (luz fraca) vespertinos. Hoje, o dia é local e geográfico, principiando à meia-noite. Já para astrônomos e navegantes, começa ao meio-dia. O dia solar não é, contudo, igual em todos os lugares e em todas as estações. Tivemos em séculos passados o chamado dia solar médio, o que não resolveu o problema. Foi então criado o chamado sistema de fusos horários. Quando o Sol cruza o meridiano de um certo lugar, temos o meio-dia nessa região. Isto quer dizer que nos países ou regiões imediatamente vizinhos são onze e treze horas respectivamente e assim por diante. À frente do Sol ficam as horas da manhã e atrás dele as horas da tarde, luz sombra.



O globo terrestre, como sabemos, foi dividido em 24 fusos, valendo cada um deles quinze graus. No interior de cada fuso temos a hora legal. A partir de 1911 todos os países do mundo foram aderindo ao sistema, que tem como base o meridiano de Greenwich, famoso observatório nas proximidades de Londres.


Necessidades práticas levaram o homem a dividir o dia. Tal divisão foi estabelecida há milênios antes de Cristo, não se sabendo bem a quem creditar a invenção do sistema. O que se sabe é que a divisão do dia foi baseada na sombra que faziam pedras, árvores ou montanhas. Objetos fixos projetavam sombras que caminhavam, que se alongavam. Além disso, as sombras eram avessas ao Sol, sempre apontando para uma direção oposta à solar. Aos poucos, pela observação do caminho que a sombra de uma pedra percorria com relação ao caminho de outra ou com relação a algum ponto fixo foi possível estabelecer, por exemplo, o tempo que se teria para terminar um trabalho ou o tempo que o caçador levaria para voltar para casa. Desta observação passou-se, aos poucos, para os relógios. Sabe-se que foram os chineses que criaram um sistema mais "científico".


A  NOITE  ESTRELADA ( VAN  GOGH , 1853 - 1890 ) 

Quanto à noite, terror. A escuridão era dominada por divindades soturnas, maléficas. Os gregos, no seu mito, tornaram a noite filha do Caos, dando-lhe o nome de Nix, as trevas superiores, tendo como irmão o Érebo, as trevas infernais, inferiores, a camada interior do Hades. Eram seus filhos as Moiras, as donas do fio da vida, deusas tecelãs, os gêmeos Thanatos (A Morte) e Hipnos (O Sono), as Keres (As Cadelas do Hades), Éris (A Discórdia), Fílotes (A Ternura), Gueras (A Velhice), Ápate (O Engano) e Nêmesis (A Justiça Distributiva), aquela que restabelece o equilíbrio quando a justiça não é equânime.

A noite é a ausência do Sol, da luz, do calor, da vida. Dura do crepúsculo matutino ao vespertino. Sumérios, egípcios e judeus a dividiram para dominá-la, ganhando-a para viagens, guerras, trabalho e divertimentos. Dividiram-na em partes iguais de três horas cada uma. A primeira hora começava ao escurecer e a quarta findava ao amanhecer, ao nascer do Sol. Essa divisão foi muito útil, pois, dentre outros benefícios, permitiu que as tarefas noturnas (militares, pastores, marinheiros, vigias) pudessem ser melhor equacionadas, criando-se os turnos. Ao fim de cada período, substituições eram feitas, uns iam para o descanso e outros assumiam as funções. A esses períodos se deu o nome de vigília, condição de quem está desperto, estado de quem vela. 

No seu processo de socialização, tornando-se, ao longo dos séculos, mais complexo o seu relacionamento com a Natureza e com os outros, o homem ia aos poucos tomando posse do planeta Terra. Surgiram novas necessidades. Dentre elas, uma, logo enfrentada, foi a de separar mais definidamente as luzes e as trevas, conhecê-las, aproveitá-las melhor. Dividir em partes iguais o dia e a noite. Talvez esta tenha sido uma das primeiras, senão a primeira, das convenções que os seres humanos viriam a estabelecer para viver melhor. Para tanto, foi utilizado o número doze, um número considerado divino. O doze é o número das divisões espaço-temporais, sendo o produto do quatro (pontos cardeais) pelo três (dinâmicas universais).