sábado, 9 de julho de 2011

A BOIUNA & O BOTO


A boiuna é uma serpente que faz parte de um mito hídrico de origem ameríndia americana, mais localizado nas águas da bacia amazônica. Trata-se de uma enorme serpente escura, voracíssima, capaz de tomar a forma de qualquer embarcação, uma canoa, um veleiro ou de sedutora mulher. Ao atravessar os rios, a boiuna produz um ruído que tanto lembra o das cachoeiras quanto o das hélices das grandes embarcações. Seu prestígio vem do pavor provocado pela sua voracidade e pela enorme capacidade que tem de se disfarçar, de mudar de forma. Nenhum culto lhe é devotado. O que se sabe é que para ela convergem mitos como os da mãe-d’água, da iara, do boto e outros. Para os indígenas, matá-la é pior que encontrá-la, pois isto significaria a própria morte e a destruição da tribo.

O nome vem mboya, cobra, e una, preta, na língua tupi. Os olhos do monstro são luminosos como dois faróis ou archotes que desnorteiam todos os que estão por perto. As populações ribeirinhas anunciam sua presença nos rios, lagos, lagoas e igarapés sempre com muito temor. Vive na parte mais funda dos rios e mede, segundo os depoimentos, entre 20 e 45 metros de comprimento. Quando sobe à terra, deixa sulcos que se transformam em igarapés.
É conhecida também pelos nomes de cobra-norato, mãe-do-rio e senhora-das-águas. O mito teria derivado de histórias relacionadas com a sucuri ou sucuruji, serpente da água que se alimenta de pequenos animais, que chega mesmo a atacar e matar os maiores. Em Belém, acredita-se que uma boiuna esteja com a cabeça na Sé e a cauda na igreja do Carmo. No dia em que a boiuna despertar e for para o mar, diz a lenda, a cidade desaparecerá. De certo, porém, ainda segundo a lenda, é que quando a boiuna se mexe a terra treme.
A sucuri ou sucuruji, como se sabe, é uma serpente da família das boídeos (família de cobras tropicais com cerca de quarenta espécies que incluem, entre outras, a jiboia), encontrada em muitas regiões da América do Sul. É a maior serpente do mundo, podendo alcançar de dez a doze metros de comprimento; vive à beira dos rios ou mergulhada em lagos e lagoas; alimenta-se de vertebrados de tamanho variado, que são mortos por ela por constrição. E também conhecida pelo nome de anaconda, nome este importado da Asia, da língua tâmil (sul da Índia e Ceilão), palavra que significa “a que mata elefante”.
O tema da sucuri, no folclore brasileiro, aparece num ciclo que tem o nome de “Cobra Grande”. Nesse ciclo, a cobra-grande ou sucuri é a senhora dos elementos e, como tal, tem poderes cosmogônicos, sendo dela o dia e a noite. Esse ciclo foi aos poucos se fragmentando, tomando a forma de histórias, contos maravilhosos, referentes a cultos astrolátricos que nos falam de constelações e de tarefas agrícolas.


Conta a lenda que a cobra-grande, também chamada de coisa-má, engravidou uma cunhã, que deu à luz uma cobra, que passou a perseguir a mãe por toda a parte. A cunhã, contudo, conseguiu esconder-se de tal modo que nunca mais foi encontrada. Desiludida, a cobra voou para os céus, tomando a forma da constelação do Serpentário, cujas estrelas anunciam o início do verão na região amazônica. Essa constelação também brilha muito em setembro, marcando o início do plantio nas roças, época importante para Guaraci, o Sol.


A constelação do Serpentário é austral, sendo chamada pelos gregos de Ophiuchus, visualizada como um homem que segura uma serpente dividida em duas partes, Serpens Caput e Serpens Cauda. Os gregos identificavam a figura humana como a do seu deus médico Asclépio, que aprendeu as artes da cura com o centauro Kiron. Na Idade Média, astrólogos judeus viram Moisés na figura humana desta constelação; os cristãos, uns, nela viram São Paulo com a víbora que lhe picou a mão e outros nela identificaram São Bento, de pé, entre espinhos. Ressalte-se que a constelação do Serpentário, astrologicamente, sempre apareceu ligada a influências médicas e à produção de drogas em geral a partir de ervas, como no caso dos monges beneditinos, que fabricavam um famoso álcool.
A sucuri não é venenosa, sua cor é pardo-azeitonada, com uma grande série dupla de manchas pretas. De hábitos semi-aquáticos, alimenta-se de peixes, aves e pequenos mamíferos que surpreende nos bebedouros (capivaras, antas, veados, bois etc.). Utilizando a sua extraordinária força muscular, enrosca-se nas presas, cujos ossos tritura, preparando assim o alimento para a deglutição. Apesar de poder dominar animais de maior porte (há registros de sucuris que atacaram crianças e adultos), só os ataca eventualmente, preferindo os menores.
Por oportuno, transcrevemos aqui um trecho do livro Viagem pelo Brasil, de J.B. von Spix e de C.F.P. von Martius, sobre os mitos amazônicos. Spix e Martius, alemães, vieram ao Brasil em 1817 com a missão científica austríaca, aqui permanecendo por três anos para fazer principalmente um levantamento da fauna brasileira, chegando a classificar 3.381 espécies de animais: “A dar-se crédito às inúmeras narrações de pessoas simplórias, as profundezas do Amazonas hospedam, além dos grandes anfíbios acima mencionados, ainda uma espécie de cobras-de-água, que são peculiares a esse rio e aos seus maiores afluentes, porém, que evitam as águas das ipueiras e lagoas vizinhas. Têm-se visto enormes serpentes, esverdeadas ou pardas, nadando como se fossem troncos flutuantes, e, segundo dizem, crianças e adultos já foram arrebatados, quando acaso elas saem em terra. A esse monstro os índios dão o nome de Mãe-d’Água (paranamaia, de paraná, rio, e maia, mãe), temem encontrá-lo e ainda mais medo têm de matá-lo, porque então é certa a própria ruína, bem como a de toda a tribo. Um velho remador de nossa canoa afirmava haver avistado essa terrível cobra-d’água perto do Gurupá, e, dois dias depois, ela enroscou e arrebatou o seu irmão. Este passeava com a noiva, à margem do rio, e, chegando a um ponto onde havia no fundo um barro preto fino, com que as índias tingem os tecidos de algodão, ela pediu-lhe que colhesse uma mão-cheia. O rapaz mergulhou, mas a noiva em vão o esperou por muito tempo. Quando, depois, observou, aflita, mais de perto, o lugar onde ele sumira, não viu mais a sombra dele no fundo, e, no meio do rio, a Mãe-d’Água sacudia a terrível cauda furiosamente e o noivo lhe tinha sido arrebatado para sempre. Já desde milênios se preocupa a imaginação dos povos com tais idéias de cobras gigantescas, habitantes do fundo das águas, e que só raramente emergem das mesmas, para terror e desgraça dos homens.
Na Europa, admiramos o primor artístico do Laocoonte, originado dessa lenda; na América, a fantasia toma proporções colossais no cenário agigantado, quando delineia esses monstros. O aparecimento, tantas vezes confirmado, da serpente do mar nas costas norte-americana deu ensejo a semelhante crendice acerca das águas, tão cheias de vida, do Amazonas. Cumpre dizê-lo, porém: os índios enfeitam os mais simples fatos com exageros fabulosos. Assim, eles contam que, de quando em quando, aparece a Mãe-d’Água com um diadema de brilhantes ou deixa emergir a cabeleira luminosa fora do rio, quando o nível da água baixa em extremo, com isso determinando a propagação das doenças decorrentes. A firme crença, com que os índios contam tais lendas, é uma das feições do seu caráter, e o viajante, neste país, deve ficar prevenido disso, para descontar a parte da imaginação nos fatos maravilhosos que ouvir da boca dos Peles-Vermelhas. Florear os mais simples fenômenos da natureza com galas da fantasia é a única poesia de que é capaz a alma soturna e obscura do índio. De igual modo, quase todos os fatos naturais, que se assinalam por qualquer distintivo, logo se transformam em fábulas. De muitos animais e plantas, os índios contam as maiores extravagâncias. As lendas das Amazonas, de homens sem cabeça e com a cara no peito, de outros que têm terceiro pé no peito ou possuem cauda, do conúbio de índias com os macacos coatás etc., são idênticos produtos da fantasia sonhadora dessa raça de homens.”
Alguns estudiosos aproximam o mito da lara ao das ondinas e sereias do Mediterrâneo. Iara (Yara, senhora, na língua tupi) seria o nome literário da Mãe-d’Água. As ondinas são ninfas da mitologia escandinavo-germânica, ninfas do amor que vivem nas águas, seduzindo, desencaminhando marinheiros e navegadores. Na mitologia grega, as sereias, um ser metade peixe (a parte inferior do corpo) e metade mulher lindíssima (a parte superior do corpo), são atraentes e perigosas. Antigos navegadores falam delas, do seu canto mavioso; quem o ouvisse não resistiria. Atraíam os marinheiros, que, lançando- se ao mar, pereciam afogados. De acordo com o mito, habitavam a costa sul da Itália. Aparecem em várias histórias, sendo a mais famosa a de Ulisses (Odisseia), de Homero.
O mito da Mãe d’Água, ou Iara, ganha, contudo, outro sentido, ampliando-se bastante, se o associarmos, como de fato devemos fazê-lo, ao do Boto. O boto (butis, em latim, barrica, odre de vinho) é um cetáceo encontrado no mar e em rios, em várias partes do mundo, sendo chamado também de golfinho e toninha. Nos mitos amazônicos, o Boto é um personagem que seduz as moças que vivem perto dos rios. Por esse motivo, o Boto passa por ser o pai de crianças com paternidade desconhecida. Há registros de depoimentos sinceros de mulheres ribeirinhas que confirmam essa história. É comum, por exemplo, no Pará, a alusão ao “filho do boto”, isto é, a criança sem pai.
O mito do Boto nos conta que ele, perto do anoitecer, transforma-se num belíssimo jovem, branco, grande dançarino e bom de copo; surge nos bailes, ficando todas as mulheres caídas por ele. Um fato notável: jamais esse Boto-Homem tira o chapéu da cabeça. Explicação: como o boto, o misterioso dançarino tem um orifício no alto da testa, razão pela qual usa o chapéu, para ocultá-lo. Depois de dançar e brincar com todas as belas jovens, desaparece misteriosamente. Volta à água, tomando a sua forma primitiva. Uma ou mais das jovens presentes aparecerão grávidas, tendo, no tempo devido, um filho, o “filho do boto”.

Este mito é muito diferente do mito do Ipupiara, uma espécie de homem marinho, como narram os índios, inimigo dos pescadores, que vira embarcações, que afoga e mata. O Boto, pelo contrário, é um sedutor irresistível, sente o cheiro de mulher a enorme distância. Pode virar às vezes as embarcações, quando vislumbra uma mulher que lhe apetece. Nesse momento, vira Boto-Homem, mantendo relações sexuais com a escolhida. Não há registros de acontecimentos dessa natureza que tenham provocado a morte da mulher. As mulheres que tiveram contacto com o Boto-Homem, conforme vários depoimentos, sempre guardaram do acontecimento uma lembrança muito agradável...
Uma versão tardia do mito do Boto nos revela, contudo, uma dominante feminina ao lado da masculina. Essa versão nos fala que o Boto se transforma muitas vezes numa sedutora mulher, a Mãe-d’Água, que atrai os jovens para os rios, seja para manter relações com eles ou para puni-los por terem feito mal a alguma cunhã. Esta versão introduz o hermafroditismo no mito, provavelmente uma contribuição das populações ribeirinhas mestiças da Amazônia. Dessas histórias sai por exemplo a grande fama que o olho de boto tem como talismã, uma infalível eficácia nas coisas do amor, no erotismo. Mas, para funcionar, o olho do boto deve ser convenientemente preparado numa pajelança (rituais que o pajé executa em determinadas ocasiões com o objetivo de cura ou magia).
Lembremos que há uma longa tradição que nos fala do sucesso do delfim, isto é do boto, na magia amorosa. Ele tem um papel de destaque na mitologia grega. Está relacionado com diversas divindades, Apolo (Delphinios), Poseidon, Eros, Dioniso e Afrodite. No mundo grego e romano, o delfim, quanto à magia amorosa, era de Afrodite. Os delfins eram tidos como voluptuosos e enamorados, sendo a eles atribuído também o sentimento da saudade (pothos). Os gregos viam nos movimentos do delfim, seu dorso descendo e se elevando acima da superfície das águas, uma grande semelhança com os movimentos que o corpo do homem faz no ato sexual.
Uma das melhores histórias que a tradição conserva desde a antiguidade pela via mitológica sobre o delfim é a do seu afeto pelo homem. Com efeito, muito se fala sobre ele como salvador de náufragos. Por isso, o delfim foi utilizado pela iconografia cristã para representar o amor de Cristo pelos humanos, amor que, através da Eucaristia, os tira da condição de náufragos. O delfim é, assim, um agente do retorno daquele que se perdeu na imensidão oceânica da vida. O perdido retorna à matriz da qual todos saíram Não é outra, aliás, a origem da palavra delfim (delphys, em grego, quer dizer matriz, seio, entranhas, o umbigo, e, por extensão, o centro da terra). Por isso é que o deus ApoIo instalou o seu oráculo em Delfos, lugar de renascimento para aqueles que iam procurar a sua sentença oracular. Mais ainda: a palavra grega para designar irmão é adelphos, uma palavra que exprime a ideia de extração ou a separação de uma mesma matriz, de um mesmo seio. Dentro deste campo semântico pode ser colhida também a palavra delfim como a usam os franceses como título do primogênito do rei da França.
É nesta perspectiva que esse mamífero aquático, o delfim, é o mais difundido símbolo da salvação, da transformação e do amor. É por essa razão, segundo os gregos, que o deus Poseidon colocou o delfim nos céus como constelação, junto das constelações de Aquário e da Águia. Amigável, brincalhão e inteligente, o delfim se integrou a várias expressões mitológicas e religiosas. Os etruscos, gregos e cretenses diziam que o golfinho salvava os náufragos de afogamento ou levava as almas dos que morriam para as ilhas dos Abençoados. O aproveitamento das histórias do delfim pelo Cristianismo encontra certamente justificativa pelo fundo mítico que já estava pronto, conforme se explica acima. Como emblema do Cristo sacrificial, o delfim pode aparecer perfurado por um tridente ou com o símbolo secreto da cruz veiculado pela âncora. Quando entrelaçado com a âncora, o delfim se torna um símbolo da prudência (velocidade controlada).
Voltando às serpentes, registremos que no folclore brasileiro, popularmente, há dois tipos delas, a de sangue quente, não peçonhenta, e a de sangue frio, venenosa. Quando a de sangue frio vai beber água num rio, diz a tradição popular, deixa seu veneno escondido numa folha. Ainda segundo a tradição possivelmente herdada de Portugal, as cobras costumam procurar mulheres que amamentam, para sugar-lhes o peito, dando o seu rabo à criança. Uma simpatia eficaz para prender cobra: a mulher deve virar o cós de uma saia branca; se estiver menstruada, basta tocar numa cobra para matá-la.
A lenda da cobra-norato é muito popular no norte brasileiro. Diz-se que engravidada pela boiuna (como Boto), numa região próxima ao município de Óbidos, entre os rios Amazonas e Trombetas, uma cunhã pariu duas crianças. Pressionada pelo pajé, atirou-as no rio, onde se criaram como cobras-d’água. O menino chamava-se Honorato (Norato) era de boa índole; sua irmã, porém, chamada Maria Caninana, perseguia animais, virava embarcações, matava os náufragos. Tantas fez Maria Caninana que seu irmão Norato para poder viver em paz a matou. Norato gostava muito de dançar. À noite, ele se transformava em rapaz elegante e frequentava as festas. Na margem dos rios, quando isso acontecia, deixava o seu couro imenso. Para se quebrar esse encanto, dizia-se que seria preciso que alguém com coragem se aproximasse dele como boto e deitasse leite em sua boca; na cabeça de Norato como boto seria preciso também dar uma cutilada de sair sangue. Se isso fosse feito, ele voltaria a ser inteiramente humano. Diz a lenda que foi um soldado que vivia em Cametá, no Pará, que realizou esta proeza, libertando Norato para sempre, mas isso nunca foi inteiramente confirmado.
A ideia de que a serpente expresse ao mesmo tempo a polaridade feminina e masculina é encontrada em muitas tradições. É a serpente neste sentido um ser cosmogônico, das origens, dos momentos da formação inicial do cosmos, dos tempos primordiais, quando as polaridades ainda não estavam bem definidas. Por isso, em muitos mitos ela oscila entre o macho e a fêmea. Como fêmea, ela se enrosca, envolve, estreita, abafa, engole, devora, digere. Noutros momentos, ela assume um papel masculino, se apropria, é poder, conquista. A fêmea é portadora da vida, é princípio anterior e, como tal, ela é quem dá origem ao masculino, como está aliás em todas as mitologias. O mito da boiuna, como tantos outros de mesma elaboração, não é mais que uma reminiscência dos momentos originais, quando os sexos ainda não estavam totalmente separados ou definidos.
Nas primeiras elaborações cosmogônicas, o ser é andrógino. A chamada arte primitiva, dos povos africanos ou indígenas, ou a oriental, principalmente a da Índia (Shiva), escandalizam ainda hoje muitos ocidentais ignorantes e/ou desinformados pela sua simbologia erótica. Não chegou e nunca chegará talvez ao grande público que no plano da sexualidade ninguém é totalmente masculino ou feminino. O mito da boiuna não é mais do que uma tradução desta dualidade num nível mais elevado e extensivo, no contexto dos povos ameríndios. O fenômeno da androginia aparece no início e ao final dos tempos. A mitologia, de um modo geral, sempre participou dessa compreensão, antecipando-se não só às conquistas da Biologia como da Psicologia. Na mitologia grega, por exemplo, inúmeros e fortes traços andróginos são encontrados em deuses e heróis como Dioniso, Adônis, Aquiles, Palas Atena, Tirésias, Castor e Polux, Ártemis etc. A rigor, toda divindade grega é bissexual. Por isso, as tendências ao transformismo ou travestismo que muitas delas apresentam.
Os mitos primitivos deixam claro que a dualidade em que o ser humano vive é falsa, mentirosa. As oposições fundamentais do céu e da terra, do dia e da noite, do calor e do frio, do masculino e do feminino nunca se resolvem totalmente. A plenitude do ser só se resolve momentânea e precariamente pela fusão das partes numa integração sempre buscada, conquistada e perdida. O masculino e o feminino não são mais que dois aspectos de uma multiplicidade de opostos que sempre se interpenetram.
Não é por outra razão que o mito da boiuna aparece dentro de um ciclo indígena maior sobre a origem da noite. Nesse mito, a boiuna casa a filha e manda-lhe a noite presa num caroço de tucumã. Os emissários da boiuna, no meio do caminho, muito curiosos, abrem o caroço e libertam a noite. A tucumã é uma palmeira que tem um caroço escuro. Como o ovo, o caroço simboliza a germinação, o princípio da manifestação a partir do qual aparecerá a dualidade e se desenvolverá a multiplicidade. Esta ideia está presente em todas as mitologias. Ovos e caroços nos mitos contêm em potencial a diferenciação progressiva dos seres.
Raul Bopp (1898-1984), descendente de alemães, nasceu no Rio Grande do Sul. Desejando conhecer o mundo, saiu pelo Brasil afora. Nesse meio tempo fez o curso de Direito, completado em três capitais (Recife, Belém e Rio de Janeiro). Na Amazônia, não demorou muito, como disse, para começar a acreditar nos seres fantásticos da floresta: o Minhocão, o Curupira, o Caapora, o Mapinguari. Ouviu muitos “causos” dos canoeiros. Poeta, participou do chamado grupo Verde e Amarelo do Modernismo brasileiro. Publicou, em 1931, o livro-poema Cobra Norato, em versos brancos, por ele mesmo definido como “obra de audácias extragramaticais e uma movimentação da matéria de camada popular”. Prendendo-se a esse grande tema das melhores tradições indígenas do norte do Brasil, o da boiuna, o poeta realizou uma fusão da linguagem poética e dialetal com a visão fantástica de uma Amazônia em que os cipós e as raízes se entrelaçam com as evocações de animais fabulosos. Em 1932, ingressou na carreira diplomática. 
Dentro do movimento modernista deflagrado em 1922, a literatura teve um papel muito importante, nela se destacando principalmente a produção poética. Uma das vertentes da produção poética foi a nacionalista, enfatizando-se especialmente o folclore e os mitos históricos brasileiros. Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Menotti Dei Picchia, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Jorge de Lima, Raul Bopp, Augusto Meyer e outros, todos se voltaram para os temas brasileiros. Oswald de Andrade, em 1924, lança o Manifesto Pau-Brasil e Menotti DeI Picchia o Manifesto Verde-Amarelo. O objetivo de ambos era o de levantar e usar um ternário artístico exclusivamente brasileiro.
É no quadro sumariamente acima apresentado que o livro-poema de Raul Bopp se situa. Cobra-Norato e outras produções como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, constituem as três principais obras poéticas sobre a mítica brasileira segundo a proposta modernista.