terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A QUESTÃO HOMÉRICA E A ILÍADA (1)

                            
 
GRÉCIA    ANTIGA ( PERÍODO  HOMÉRICO )
     
Grande parte do que apresento neste artigo é um resumo das ideias que há muito, muito tempo, num projeto pessoal, venho reunindo sobre a mitologia grega, desde que,  a meu pedido, em 1.949, terminado o meu curso ginasial, ganhei de presente de minha mãe, nas festas de Natal, os dois poemas de Homero, na tradução de Carlos Alberto Nunes. Com o correr dos anos, vieram depois outras traduções, outras leituras, o estudos das línguas, as viagens, o interesse por outras tradições mitológicas (a hindu principalmente), as relações delas com a literatura, o teatro, as artes plásticas, o cinema e, sobretudo, a astrologia, eis que tudo, como venho aprendendo, se ilumina mutuamente. A cada dia uma relação nova, uma descoberta. A viagem continua...   


A primeira referência que temos sobre Homero está escondida na Teogonia, no verso 39. Nesse verso, Hesíodo descreve o canto das musas. Para falar dele, cria um verbo, homereusai, homenageando o poeta. Esse verbo faz referência à harmonia que há no canto das musas, como ele soa agradavelmente. Outro que assinala a presença de Homero é o poeta Callinos de Éfeso, de meados do séc. VII aC. Por essa época, Tirteu de Esparta e Mimnemene de Collophon também se referem diretamente à Ilíada. Alceu de Lesbos, contemporâneo de Sapho (fim do séc. VII aC) retoma a cena entre Zeus e Tétis do começo da Ilíada para nos falar de Homero. Mais ou menos em 600 aC, Clístenes, tirano de Siracusa, proibiu nos agones poéticos da cidade menções a poemas homéricos, declarando-os muito favoráveis aos argivos (de Argos). Um pouco antes de 520 aC, Hiparco, filho mais velho de Psístrato, tirano de Atenas, introduziu a recitação dos poemas homéricos na grande festa das Panateneias. 


PÍNDARO
No V séc. aC, aparecem sobre Homero dados mais consistentes. Além de menções, temos já muitas transcrições sobre sua poesia, algumas discutindo seus conteúdos, estilo e linguagem. Píndaro (520-445 aC), o grande poeta lírico, fala dos homéridas como cantores de palavras, rapsodos,  isto é, de versos "costurados juntos". A palavra rapsodo já circulava bastantes nos meios poéticos para designar o “costureiro de versos”. A palavra rapsodo é retirada do verbo grego rhapteinv (costurar). Já o aedo, (aoídos), cantor, era sinônimo do outro. Ambos cantavam os versos dos poemas épicos. 

HOMERO
Mas quem, na realidade, foi Homero? Um neto de Ulisses?  Um velho poeta cego e lúbrico? Um ser semi-divino? Uma mulher? Onde nasceu? Na Grécia, no Egito, na Anatólia, em Roma? Teria ele existido realmente? As hipóteses são muitas. Será que os poemas que temos como sendo de sua autoria não teriam sido produzidos coletivamente, por uma corporação de poetas?   

O que temos sobre a vida de Homero está reunido, de um modo geral, em muitos textos que podemos chamar de Vidas de Homero. Se vamos aos textos mais próximos, da época romana ou bizantina, por exemplo, percebe-se que todos eles fazem referência a textos bem mais antigos, do século VII aC. e de antes. 

Para compor os seus poemas, Homero, está hoje provado, valeu-se de um dialeto literário nunca falado na Grécia. Criou praticamente uma linguagem própria, única, na história da literatura, de grande riqueza vocabular, que sempre encantou e perturbou tanto os tradutores, os especialistas, como o leitor comum, seduzindo enfim, de um modo ou de outro,  todos aqueles que de seus poemas se aproximam.



A fim de encontrar o verdadeiro Homero, ainda na antiguidade, levantou-se a hipótese de que ele poderia ter se escondido em algum personagem de seus poemas, num aedo, o mais provável.  Adotada essa linha de busca, não será preciso fazer muito esforço para “descobri-lo” na Ilíada. Agamemnon, antes de se dirigir a Troia, como  comandante dos exércitos gregos, deixou um poeta de sua corte chamado Demódoco para proteger e ajudar sua esposa, a rainha Clitemnestra, no que ela precisasse. Sabe-se que embora o poeta a tivesse aconselhado ela não resistiu ao jogo sedutor de Egisto. Enquanto Agamemnon e Menelau, seu irmão, estavam em Troia, Egisto conseguiu conquistar Clitemnestra e, com ela, tramou um plano para assassinar o seu marido, o que de fato aconteceu. 


ODISSEIA
Na Odisseia, aparece também um poeta-cantor de mesmo nome, Demódoco, considerado um “aedo divino”. Como está no poema, os deuses fizeram dele um ser que a todos seduzia com o seu canto. Demódoco alegrou os feácios, que haviam acolhido Ulisses, na corte do seu rei Alcinoo. As musas privaram-no da visão, mas lhe haviam concedido o dom de cantar divinamente. O nome Demódoco vem de duas palavras gregas: demos (povo) e dekhesthai (o que ajuda ao cantar, o que torna as coisas melhores quando canta).

Buscando um pouco mais, é possível, seguindo a suposição acima levantada (Homero teria se escondido em algum personagem), descobrir que,  na Odisseia, Ulisses, como rei de Ítaca, mantinha também um poeta-cantor, de nome Phemios, que aparece na Ilíada. O nome Phemios, etimologicamente, se liga a ideias de normalidade, de lei divina ou lei moral, costume, vontade dos deuses. Era Phemios um poeta lírico que alegrava os banquetes. Na Odisseia, sua audiência era formada, em grande parte, pelos pretendentes de Penélope, quase todos oriundos da aristocracia de Ítaca e de reinos próximos. 


PRETENDENTES   DE   PENÉLOPE
( JOHN  WILLIAM  WATERHOUSE  ,  1849 - 1917

No poema, quando Phemios distraía a sua plateia, Penélope o interrompeu, achando o seu canto muito triste. Telêmaco interveio, tomando a defesa do poeta, repreendendo a mãe, dizendo-lhe que os presentes não poderiam querer mal ao poeta-cantor, que a todos encantava com a sua arte, ainda que a história narrasse o triste destino dos heróis gregos.


ULISSES   ATACA   PRETENDENTES   DE   PENÉLOPE

Quando Ulisses e seu filho Telêmaco começaram a atacar os pretendentes de Penélope e os maus servidores de seu palácio, Phemios e o arauto Medon foram livrados da morte, pedindo Ulisses que o primeiro, Phemios, entoasse cantigas de noivado para dissimular os gritos dos que ele e o filho matavam. Medon, esclareça-se, era o arauto dos pretendentes de Penélope, que tentaram  armar uma cilada para matar Telêmaco. Quando do regresso do jovem à ilha, Medon revelou o plano deles a Penélope, fracassando eles assim no seu intento. 

Por causa do destaque bastante positivo recebido pelos poetas nos dois poemas, a Ilíada e a Odisseia, ainda no mundo arcaico foi montada uma versão segundo a qual  Homero seria filho de Telêmaco e de Policasta, filha do sábio Nestor, que tantos bons conselhos prodigalizou ao filho de Ulisses. É provavelmente como um desdobramento desta versão que sai a história que faz de Homero, além de aedo, um  professor. 


HESÍODO
 Com base na “simpática” defesa que Homero fez dos poetas em suas obras, levantaram-se já na antiguidade outras hipóteses sobre a sua origem. O mais importante, porém, como se notou, é que Homero abriu um caminho para que os poetas falassem um pouco de si mesmos e dos acontecimentos do tempo em que viveram. Se em Homero ainda havia um certo pudor quanto a isto, de Hesíodo em diante, com ele, Safo, Píndaro e outros, as declarações pessoais tornaram-se bem mais abertas.
OS   TRABALHOS   E   OS   DIAS
Mencione-se, por exemplo, o caso de Hesíodo, tido às vezes como cronologicamente um pouco mais jovem que Homero. Hesíodo, em Os Trabalhos e os Dias, poema dedicado a seu irmão Perses, com quem teve problemas por causa da herança familiar, insta-o a observar as virtudes do trabalho, dá-lhe conselhos morais, recomendando que ele procure sempre trilhar o caminho do bem. 


HERÓDOTO
Em algumas versões, como a de Heródoto, conhecido como o Pai da História, encontramos relatos de que Homero e Hesíodo foram contemporâneos e até aparentados, tendo ambos participado, como poetas, de agones (competições) fúnebres realizados na Eubeia, em homenagem ao seu rei, morto numa batalha, por volta de 700 aC. O próprio Hesíodo, aliás, numa passagem de Os Trabalhos e os Dias, faz referência a uma viagem que fizera à Eubeia para participar dos referidos jogos. Adianta mais Hesíodo que venceu os agones com um hino que compusera em homenagem às Musas, que alguns acreditam fazer parte do proêmio da sua Teogonia. Um depoimento de Aristófanes, encontrado na sua comédia As Rãs, faz alusão ao fato de que as competições seriam muito comuns entres poetas famosos e que aquela na qual se envolveram Homero e Hesíodo seria uma dentre muitas realizadas.

No livro II da História de Heródoto, encontramos informações de que Homero e Hesíodo haviam vivido quatrocentos anos antes dele (Heródoto) e que foram os primeiros a descrever em versos a teogonia (a origem dos deuses), a registrar a aparência
SÍTIO   ARQUEOLÓGICO   DE   DODONA
dos deuses, seus sobrenomes, as funções que exerciam, os seus cultos. Informa-nos mais Heródoto nesse item que, na sua opinião, os dois poetas foram os primeiros a abordar a história dos deuses. Parte do que relatava no referido item ele colhera quando de seus contatos com as sacerdotisas de Dodona. Quanto ao que afirmava sobre os dois poetas, nada mais fazia do que emitir a sua opinião pessoal.


Em que pesem os registros acima feitos, sobre o embate poético entre Homero e Hesíodo, o que fica de mais aceitável dessas afirmações é que desde a antiguidade procuram os estudiosos da literatura grega  destacar, opondo-os, dois grandes exemplos pelos quais a tradição poética daqueles primeiros tempos procurou os seus caminhos. Uma oposição até violenta entre dois mundos. De um lado, os príncipes guerreiros, a Grécia colonialista, invasora,  e, de outro, o mundo arcaico, agrário, fixado nos valores da terra. De um lado, com Homero, a poesia épica e, de outro, com Hesíodo, a poesia didática, gnômica. 

Com a primeira, as aventuras, os valorosos reis, a vocação marítima, a colonização, de outro, os patriarcas, a economia da terra. Economia é palavra que vem do mundo de Hesíodo, de oikos, a família, a casa, as terras, os animais e os servos, e de nomos, a lei, a ordem, o respeito, a disciplina. É por essa razão que Hesíodo denuncia os governantes, notáveis, todos, no seu entender, “comedores de propina”, corruptos e prevaricadores.  Vivendo na Beócia, região agrícola, também de criadores de animais,  na Grécia central, Hesíodo, como os seus demais habitantes era um sólido e taciturno camponês. 


HORÁCIO
Os habitantes da Beócia tinham a fama de usar mais a força física do que a inteligência. Beócio, aos poucos, tornou-se sinônimo de ignorante, simplório, boçal, ingênuo e também de pessoa pouco cultivada, indiferente às letras. O poeta latino Horácio espalhou o sentido pejorativo da palavra. Do grego, ela passou para o latim (boeotius) e chegou ao português. Os franceses, por uma questão homofônica, associaram beócio a bosse (bócio) e, daí, a crétin (cretino). O cretinismo é uma patologia (rara), causada pela diminuição da atividade tireoidiana que, ao atingir certas pessoas, afeta o seu desenvolvimento físico e intelectual.     

Para participar da questão homérica não podemos ignorar a intervenção de um outro historiador, muito importante, mas pouco citado: Éforo (405-330 aC). Ele nasceu em Cime, cidade da Eólida, Ásia Menor, e escreveu uma extensa obra histórica. Num de seus livros, Epichorium Logos, declarou-se conterrâneo de Homero. Estrabão, que não gostava de Éforo, sempre reclamou por ele gostar de citar favoravelmente em seus escritos seus conterrâneos. Estrabão considerava-o, por isso, um simples logógrafo.   

Evidentemente, ninguém duvidava da existência de Homero na antiguidade grega. Suas obras faziam parte da Paideia, do sistema de educação e de formação dos estudantes gregos, do qual faziam parte a Gramática, a Retórica, a Ginástica, a Música, a Matemática, a Geografia, a História, inclusive a Natural, e a Filosofia. Esse sistema pedagógico começou a ser montado nos tempos homéricos, atingindo a sua plenitude no período clássico da história grega. Chegaram até nós, por exemplo, para confirmar a existência desse sistema muitas imagens (relevos) nos quais se vê um jovem, numa récita de poesia, acompanhado de um músico, uma das formas então utilizadas para a transmissão da cultura. 

BIBLIOTECA   DE   ALEXANDRIA
As primeiras questões levantadas com relação à existência de Homero apareceram de modo mais consistente nos círculos literários que se juntavam em torno da Biblioteca de Alexandria, por volta do século III aC. Criada durante o período helenístico da história grega, na zona portuária de Alexandria, no Egito, a Biblioteca tinha por objetivo reunir tudo o que se fazia culturalmente na época, além de patrocinar um decidido apoio para a difusão do saber clássico grego.  

Duas figuras, Zenão e Helânico, eruditos ligados à Biblioteca, começaram a pesquisar a biografia de Homero, a partir de sua obra, levantando tudo, dentro da obra do poeta ou não, como lendas ou tradições diversas, que lhes parecessem úteis para o fim pretendido. Nesse trabalho, foram reunidas inclusive muitas biografias “regionais” de Homero encontradas em muitas cidades ou lugares que disputavam a glória de ser a terra natal do poeta: Rodes, Cólofon, Salamina, Chios, Argos, Esmirna, Cime etc. Já ao tempo desses eruditos alexandrinos, por exemplo, uma tese apresentada com boa argumentação, defendia que os dois poemas haviam sido escritos por poetas diferentes e que entre ambos haveria uma distância de mais ou menos dois séculos, tendo sido a Ilíada composta antes. Os defensores desta tese foram chamados de “separatistas”.

 Nas cidades acima mencionadas, os que as visitavam em busca do “mistério” Homero, eram recebidos por membros de famílias que se autodenominavam homéridas, descendentes diretos do poeta, que monopolizavam, por direito de sucessão, segundo afirmavam, tanto a recitação de suas obras como o ensino da arte poética na forma por ele criada. As cidades que parecem reunir as melhores possibilidades de se apresentarem com a cidade natal do poeta são Chios e Esmirna. Na primeira destacava-se a ação dos homéridas
PÍNDARO
que sempre procuraram manter os poemas na sua tradição oral. Já Esmirna se destacou por ser um importante centro cultural e linguístico com condições de dar amplo suporte a uma formação tão rica como parece ter sido a de Homero.  Os defensores de Esmirna se valeram mais tarde, para defender melhor a sua posição, do fato de nela ter nascido também Píndaro, poeta que viveu em Atenas entre 518-442 aC. 

Como não poderia deixar de acontecer, versões evemeristas também foram coletadas. O evemerismo, sabe-se, é a transformação de um fato histórico, com os seus personagens, em mito. Algumas destas versões atribuíam a Homero uma natureza semi-divina, ora dando-o como filho de um deus e de uma mortal, ora dando-o como filho de uma deusa e de um mortal. Uma das versões mais “tentadoras” era aquela que o considerava como filho da mais importante das musas, Calíope (etimologicamente, a de bela voz), que tutelava a poesia, tanto a épica como a lírica. Calíope, no mito, é  mãe de Orfeu, de Iálemo, de Himeneu e de Lino. Consta que também gerou as Sereias, as “cruéis cantoras”, e que teria sido professora de canto de Aquiles. 


ULISSES  E  AS  SEREIAS , 1891 ( JOHN WILSON WATERHOUSE )

Dentre as muitas biografias de Homero, uma das mais citadas é a atribuída a um autor desconhecido, que recebeu o nome de Pseudo-Heródoto. Por ela e pelos textos que nela se mencionam, ficamos sabendo que Homero teria nascido 168 anos antes da guerra de Troia, o que permitiu fixar a data do seu nascimento em 1.102 aC. Embora considerada como pura ficção por muitos, um verdadeiro pasticcio, esta vida de Homero menciona alguns personagens importantes de Ítaca, como o poeta-cantor Phemios, Mentor e outros.

A grande notoriedade da biografia de Homero atribuída ao anônimo Pseudo-Heródoto se deve principalmente ao fato de nela se declarar que os fatos narrados sobre o poeta teriam sido compilados pelo historiador. Por contradições encontrada nos textos coletados, muitos historiadores desqualificam as afirmações nele contidas e declaram que o que conhecemos como obra desse Pseudo-Heródoto teria sido escrita entre os séculos III e IV dC, no período alexandrino, período em que havia um público para esse tipo de literatura.  

É nesses textos que encontramos referências sobre a viagem que Homero teria feito a Ítaca e que teria sido hóspede de Mentor, depois incluído como personagem na Odisseia. Registra-se também que, por informações desses textos, por essa época Homero já enfrentava problemas com os seus olhos. Ao deixar Ítaca, ao passar por Colophon, é que teria perdido totalmente a visão. Em Phocacea, depois de passar por Cime, foi acolhido por um pedagogo, Thestorides, em troca de recitais nos quais apresentou a Ilíada e a Odisseia. 

Os registros prosseguem e por eles ficamos sabendo que Thestorides foi para Chios e lá assumiu a autoria dos poemas homéricos. Tomando conhecimento desses fatos, Homero viajou para Chios e declarou  que o verdadeiro autor dos poemas era ele. Foi nessa ilha, continuando, que Homero teria composto a sua Batrachiomaquia (A Batalha entre as Rãs e Os Ratos), então considerado como um poema destinado às crianças. A seguir, nosso poeta teria viajado para Samos e dali, ao passar por Ios, falecera, a caminho de Atenas.

Lembre-se que na biografia do Pseudo-Heródoto estão os 17 epigramas atribuídos a Homero, também encontrados nos seus Hinos Homéricos
Para os mais interessados, registre-se que temos entre nós uma excelente edição bilíngue destes hinos, organizada por Wilson Alves Ribeiro Jr. (Fundação Editora da Unesp)