quinta-feira, 21 de outubro de 2021

INFORMAÇÃO OU TRANFORMAÇÃO ? III

                


                     BRAHMA         VISHNU         SHIVA                              

Enquanto para os cristãos a prática do bem é um meio de salvação, para os hindus ela é uma espécie de sujeição,  uma possibilidade de prestação de serviços. Isto porque a maneira pela qual um hindu considera o seu próximo é muito diferente daquela a que no ocidente estamos acostumados a adotar por influências judaico-cristãs. Para entender isto é preciso, como já se disse,  que levemos em conta as teses metafísicas do Hinduísmo, enquanto elas nos afirmam que a natureza, o homem e os próprios deuses, se os admitirmos, são produtos da diferenciação cíclica do Brahman, do Absoluto, todos relacionados entre si, em maior ou menor grau. O homem, partindo-se dessa afirmação, não tem a impressão de que para viver terá que lutar num mundo hostil e competitivo. 

Só a ignorância, isto é, a consciência da dualidade, dizem os hindus, nos afasta dos outros homens e da própria natureza. Por isso, na cultura hinduísta, quando pensamos em religião, cada ser humano não é uma parcela do divino, mas cada ser tem si um aspecto do divino. Assim, a melhor maneira de sentir a presença do Brahman  é a de reconhecê-lo em todas criaturas e no mundo natural, em toda a criação, enfim, e procurar tratá-los amigavelmente. Nessa perspectiva, o próximo será para o hindu um outro e ele mesmo ou um outro aspecto dele mesmo. 


Quando os hindus fazem um exame de consciência para avaliar como procederam com relação a si mesmos, aos outros e ao mundo eles, provavelmente, considerarão os seus pecados, crimes, erros ou faltas como nós os fazemos no ocidente. Todavia, eles os classificarão de modo bem diferente. Enquanto, por exemplo, no ocidente, a lista de pecados, erros, crimes ou faltas cometidos contra o próximo é muito grande, detalhada, o hindu pouca ou mesmo nenhuma ênfase coloca nessa questão. Este entendimento se deve sobretudo ao fato de que quando um hindu está agindo faltosamente, cometendo “pecados” etc., ele está agindo erradamente contra si mesmo. 

São ideias como a acima exposta que, para espanto nosso quando na Índia, não só  os mestres hindus nos explicam, mas o homem comum também. Refiro-me a um caso concreto, quando, certa vez, uma família hindu me hospedou. Ao final da minha estada, de poucos dias, agradeci, com grande reconhecimento,  o trato, a hospitalidade, as atenções que havia recebido de todos. 

NAMASTÊ
O chefe da família olhou-me entre surpreso e curioso, dizendo-me que ele e a família não haviam feito nada por mim pessoalmente. Foi o Brahman (Deus) em nós que teve a oportunidade de servir o Brahman que está em V. É só isso, arrematou ele. Para o hinduísta há sempre um Deus que dá e um Deus que recebe. A hospitalidade na Índia, como entendi, é sempre um serviço, um eterno sacrifício, oferecido pelo dono da casa ao Brahman (Deus) que está no hóspede. É o célebre namastê, cumprimento dos hindus, que pode ser assim traduzido: Deus (Brahman) que está em mim saúda o Deus (Brahman) que está em ti. 

O Hinduísmo define a noção de dever da seguinte forma: toda ação que nos aproxima do Brahman é uma boa ação e corresponde ao nosso dever. Um dos principais objetivos  deste dever está o de atenuar o eu inferior (manas) para que o eu superior (buddhi), real, possa se manifestar, brilhar, como eles dizem. Chegamos a isto, concluem, afastando continuamente os nossos baixos desejos. 

Os hinduístas sempre procuram examinar cuidadosamente cada ação, cada ato que devem praticar. Os resultados destas análises são surpreendentes. Segundo os mestres hinduístas, assim agindo, com cuidado, nós percebemos que uma ação que podemos praticar segundo o nosso sentimento de dever, está sendo realizada muitas vezes apenas pelo nosso desejo de evitar aborrecimentos, contrariedades, de obter recompensas materiais, de evitar que façam comentários desabonadores sobre nós, de adquirir reconhecimento, renome etc.

De fato, prosseguem os hindus, muitas das ações que praticamos por dever, muito poucas, são praticadas desinteressadamente. Segundo o Hinduísmo, a ação que devemos praticar por dever não deve conter, na sua motivação, nenhuma expectativa de recompensa. Os hinduístas vão mais fundo: para eles, mesmo as ações que podemos praticar com a esperança de receber de Deus alguma recompensa material não são ações desinteressadas. 

O problema do determinismo e do livre-arbítrio se coloca para os hinduístas de um modo diferente daquele em que o colocamos aqui. Para eles, as respostas a estas questões devem ser obtidas segundo o plano em que consideramos o ser humano. Se nele consideramos que atma se situa além da lei da causalidade, porque idêntica ao Brahman, o homem será então evidentemente livre. Se, ao contrário, nele vemos o corpo físico, seus afetos e mesmo sua inteligência submetidos a inúmeras pressões e que eles a elas cedem, a tese determinista então se imporá. É desta pressão e das nossas derrotas que vêm as nossas hesitações, a nossa angústia, o nosso fracasso. 

A maior parte dos moralistas hindus coloca em primeiro lugar, quando abordamos estas questões, duas virtudes que podem nos ajudar, viveka, o discernimento, e vairagya, a renúncia. São, como eles as consideram, duas virtudes purificadoras da alma. São mesmo interdependentes, quando as vemos mais de perto. É através de viveka que podemos distinguir entre o real e o irreal, ou seja, entre Brahman e Maya, pois temos que nos afastar desta e nos aproximar daquele. 

Vairagya pode ser entendida, tout court, como desapego, ausência de paixão. Cultivando-a não mais seremos atirados de um lado para outro no mundo. Com o auxílio de buddhi, o mental superior, deixaremos, por exemplo, de consumir o lixo que a comunicação de massas nos oferece, embalado como produto cultural. Quando nos aprofundamos mais no item da moral hinduísta, não podemos esquecer dos yamas (restrições) e niyamas (observâncias) presentes em todas as escolas filosóficas do Hinduísmo, considerados como preliminares essenciais a todo discípulo que procure realmente o seu desenvolvimento espiritual.

O que se procura, no Hinduísmo, no que diz respeito à vida e à moral, é que haja uma identificação entre Filosofia e modo de vida. Quando o discípulo recebe o seu ensinamento, o que se procura é uma espécie de crescimento gradual, segundo o modelo passado pelos mestres. Ou seja, adotar e ir praticando. A filosofia, no Hinduísmo, é sempre acompanhada e auxiliada pela prática de uma forma de vida. Boa parte do que é passado aos discípulos tem formas simbólicas das divindades e de outras entidades sobre-humanas, cuja função é direcionar o pensamento, amarrando-o melhor 

Estas concepções do Hinduísmo, de identidade da personalidade, conduta e prática nos mostram que a aquisição de um conhecimento, por parte do discípulo, ou de um mestre, só se torna verdadeira se confirmada pela vida de ambos. Ou seja, o valor dos escritos, das teses e das propostas de alguém, de um mestre, no caso, só se confirma se ele a demonstra através da sua própria vida. 

O estudante preparado (adhikarin) é aquele que tendo estudado os Vedas e seus membros (vedangas) vai entrando gradualmente na chamada “esfera da verdade” (satya loka) para aprender a se desapegar do resultado de suas ações, mesmo as virtuosas, isto é,   entender que vida é sacrifício, o “alimento dos deuses”. Entender também que deve aprender a discriminar entre o que é permanente e o que é transitório. Entender que só o Brahman é permanente e que embora as coisas do mundo possam ser agradáveis aos sentidos elas são transitórias. Lembrar que as coisas do mundo nos chegam através das nossas ações (karma), geradoras sempre de efeitos, com os quais teremos que nos haver um dia. O discípulo, estudante do Hinduísmo, deve, por isso, rejeitar, desprezar, qualquer ilusão, desde que a tenha reconhecido como tal. 

Dentre os recursos colocados à disposição do discípulo, para enfrentar os problemas acima, destacamos: 1) Sama, quietude mental, apaziguamento das paixões; livrar a mente de provocações e perturbações criadas pelos objetos do mundo. 2) Dama, autodomínio, controle dos sentidos. 

Segundo a psicologia clássica hinduísta, temos cinco faculdades de percepção (audição, tato, olfato, visão e paladar), cinco faculdades de ação (fala, apreensão, locomoção, evacuação e procriação) e um órgão interno de controle (antakharana), que se manifesta como ego (ahankara), memória (cittam), compreensão (buddhi) e pensamento (manas). 

Além dos recursos acima, temos outros, uparati, titiksha, e samadhana. O primeiro diz respeito ao controle, da percepção e das atividades sensórias. O segundo nos fala de resistência e paciência, quanto à ação dos sentidos. O terceiro propõe práticas para a concentração constante da mente; manutenção da atenção fixa. A palavra significa juntar, unir, compor.


Nesse contexto, a Filosofia é um, dentre muitos outros saberes, todos levando a um fim prático. Dentre um fim prático muito importante foi aquele que os mestres hinduístas, com a realeza e os membros das demais castas, kshatryas e vaishyas, desenvolveram quando tiveram que se relacionar com os seus vizinhos, sobretudo política ou militarmente. O principal texto criado para esse fim tem o nome de Niti (conduta adequada).

O realismo e a objetividade desse e de outros textos semelhantes são ainda hoje espantosos. De início, cada rei devia considerar seu reino como uma espécie de alvo, rodeado de anéis, que podem simbolizar amigos ou inimigos naturais. Os inimigos estão naturalmente representados pelos reinos que se encontrem no primeiro círculo, os vizinhos imediatos, dos quais é possível esperar algum ataque. O segundo círculo é o dos amigos naturais, mas sempre a verificar. O vizinho que está atrás ou nas laterais do nosso inimigo tem condições de ser um amigo natural. Aliavam assim, e também, os estrategistas militares daquele tempo, nas suas formulações,  num jogo de mandalas (círculos), política, geometria,  considerações morais (inveja), questões ideológicas etc.

Niti, em sânscrito, quer dizer conduta adequada. O termo era especialmente usado, como disse, para a formulação de estratégias político-militares. Faziam parte desse mundo naturalmente os reis, os príncipes, as rainhas, os ministros, os generais e os administradores, todos, conforme as circunstâncias, em variados graus, honestos,  colaboradores confiáveis, desonestos, ambiciosos, intrigantes, traidores etc. Nesse mundo, sempre prevaleceu matsya-nyaya, ou a lei do peixe (peixe grande come peixe pequeno. Acrescente-se: sem aviso prévio).




No geral, o tom para se discutir os assuntos de Niti era pessimista, já em última instância sempre vinham ao primeiro plano questões como a da sobrevivência, dos recursos disponíveis, da quantidade e qualidade das tropas disponíveis etc. No geral, havia quatro meios (upaya) mais usados para uma correta condução do assunto: 1) Saman (conciliação ou negociação), recurso do qual podiam fazer parte discursos, saudações, troca de embaixadas, simulações, encantamento etc. 2) Danda, o contrário de Sanda. Danda é vara de castigo. Ou seja, punir, castigar, destruir, assaltar. 3) Dana, doações, dádivas, presentes, desse recurso fazendo parte também suborno, partilha camarada de butim de guerra, condecorações, honras etc. 4) Bheda, palavra que significa fenda, ruptura, brecha. Na prática, semear discórdia na política interna do inimigo, perfídia. 5) Maya, produção de uma ilusão, uso de máscaras de probidade, simulação de virtudes, de poder etc. 6) Upeksha, olhar, mas fazendo que não se vê. Fingimento. 7) Indrajala (trapaça, truque de guerra, criar uma aparência do que não existe, simulação com bonecos etc.).

ANTIGO  TEXTO  DO  MAHABHARATA

Em qualquer circunstância, a figura máxima do país deve sempre dispor dos dois tipos de sabedoria, a da direita e a tortuosa. Princípio inesquecível em guerra e política: jamais confiar. Outras máximas, extraídas do Mahabharata: O inimigo de hoje pode se tornar o amigo amanhã. Não temas os efeitos do karma, confia na tua força. Aspiremos à força, que sempre esteve acima do Direito. As coisas pertencem ao homem forte. O Direito, por si só, carece de força. Tudo que procede do forte é puro.  Sê como a garça ao calcular tuas vantagens; como o leão ao atacares; como o lobo ao depredares, como a lebre ao fugires. Quando te encontrares em uma situação humilde, procura elevar-te recorrendo a atos piedosos e a atos cruéis. Antes de praticares a moralidade, espera até seres forte. Se não estiveres preparado para ser cruel e matar homens como o pescador mata peixes, abandona toda esperança de grande êxito, etc. etc....