Etimologicamente, luxúria vem de luxus, latim, palavra que significa excesso, abundância, magnificência, extravagância, exibicionismo, dela fazendo parte ideias de anormalidade, de que algo está fora do lugar. Associa-se luxus ao verbo luctari, deslocar, dele saindo, por exemplo, a palavra luxação. A palavra foi muito
empregada na Roma antiga e séculos posteriores sobretudo com conotação sexual. Com o tempo, seu universo semântico foi se ampliando passando ela a designar, de um modo geral, não só abusos quanto à sexualidade, ao apego aos prazeres dos sentidos, como à corrupção dos costumes, à lascívia, à intemperança. O entendimento que os primeiros padres da Igreja, como Isidoro de Sevilha, davam à luxúria ligavam-na aos prazeres sexuais. Luxurioso era para ele o “dissolvido em prazeres”.
ISIDORO , C.560 - 636 |
S. TOMÁS ( FRA ANGÉLICO, 1395-1455) |
Quanto à sexualidade, não há o que discutir: Sem os atos sexuais a humanidade não prosperaria, o universo não se povoaria. Sem os atos sexuais os seres humanos não se multiplicariam, o gênero humano desapareceria. Tudo o que, quanto à sexualidade e à sua finalidade, não observasse a ordem da razão seria, pois, pecaminoso, seria luxúria, insistiam os padres da Igreja com base em Santo Tomás. Além do mais, há que se lembrar que os chamados pecados capitais levam sempre o homem a cometer muitos outros, a eles ligados. Ao praticar atos de luxúria, o homem, com facilidade, se entregará inevitavelmente a outros pecados.
Os vícios que foram chamados de capitais têm, como é fácil perceber, grande afinidade com o prazer dos sentidos. O mais intenso prazer corporal que o homem pode experimentar é o sexual. É por essa razão que a luxúria gera muitas “filhas”, no dizer do papa Gregório Magno. Temos a cegueira da mente, a irreflexão, a inconstância, a precipitação, o amor de si, o ódio de Deus, o apego às coisas materiais e o desespero em relação ao mundo futuro.
É importante lembrar que na antiguidade, bem antes do cristianismo, já era possível encontrar uma certa gradação estabelecida quanto a atos pecaminosos praticados por alguns seres humanos contra outros seres humanos e os deuses; algo semelhante, em alguns pontos, à matéria definida mais tarde por teólogos cristãos. Pode-se mesmo admitir que estes teólogos muito se valeram do que encontram no mundo anterior ao aparecimento do cristianismo para a formulação de sua doutrina sobre os pecados. Um exemplo do que aqui se diz está no poeta latino Horácio, que viveu no século anterior ao do nascimento de Cristo.
HORÁCIO |
EVAGRIUS PONTICUS |
Toda vez que o homem pratica um ato inferior, pecaminoso, suas faculdades superiores se debilitam, se anulam mesmo, ficando ele desorientado no seu agir. Não será preciso fazer muito esforço para se notar as muitas conexões que a luxúria pode fazer; com a prostituição, a sodomia, a pornografia, o aborto (gravidez indesejada), as doenças sexualmente transmissíveis, o incesto, o sadomasoquismo, a pedofilia, a zoofilia, o bestialismo, o voyeurismo, o fetichismo e outras mais.
A última moda neste terreno é a do amor ("carnal", inclusive) entre humanos, robôs e máquinas, que já chegou ao cinema comercial. Blade Runner, de 1982, por exemplo, descreve, dentre outros tópicos, uma relação amorosa entre um policial caçador de androides e uma replicante. Mais delicado, outro exemplo, é o recente, 2013, filme Ela, que narra a paixão de um tecnocrata (Joachin Phoenix) por um programa informático chamado Samantha.
VOYEURISME ( GRAVURA CHINESA ) |
O amor libidinoso tem características de primariedade, é afoito, inconsequente, precipitado, elide qualquer possibilidade de reflexão, é inconstante, esgotando-se no próprio instante. Aponta
ele para uma satisfação inteiramente ególatra, que, na realidade, é uma negação da transcendência, de algo que poderia ou deveria se realizar no tempo, inclusive através de ajustes mútuos das partes envolvidas. Libido é palavra que vem do latim, onde tem o sentido de paixão, de desejo violento. É procura instintiva do prazer sexual. Na Psicanálise, é a energia que está na base das transformações da pulsão sexual e, como tal, é a energia vital.
LIBIDO ( PICASSO , 1881 - 1973 ) |
A luxúria caminha ao lado da paixão, palavra que tem uma história muito antiga. Entre os gregos, pathos, paixão, era tudo o que afetava o corpo e a alma tanto de modo benéfico como maléfico. Era algo experimentado, sempre uma ideia de algo sofrido, passivo. Vitimada pela paixão, a pessoa ficava à mercê dela.
GLÂNDULA TIMO |
CÍCERO (KARL STERRER, 1885-1972) |
Na Psicologia, a paixão é uma tendência de maior ou menor duração, acompanhada de estados afetivos e intelectuais, imagens muito poderosas que acabam por se impor, dominando a vida de uma pessoa pela sua intensidade e permanência. Uma inclinação que, instalada, torna-se o centro de tudo, tudo a ela se subordinando. Por isso, a paixão lembra cegueira. Nada vemos senão ela. Mesmo no caso de paixões ratificadas pela razão, somos tomados por elas. A paixão pode paralisar a ação normal da razão sobre a nossa conduta, impedindo a determinação da vontade.
O passional se define por uma oposição ao racional, ao lógico. Neste sentido, é como a loucura. A razão, o racional, liga-se à ordem, à harmonia, à clareza. A paixão lembra irracionalidade, desarmonia, desordem, doença, caos. Desde a antiguidade, a mesma recomendação, na Filosofia, na Religião, na Medicina, na Psicologia, vigiar as paixões, pois sempre ameaçam a alma e o corpo de desordem, doenças, destruição.
A LUXÚRIA ( HIERONYMUS BOSCH, 1450-1516) |
Aos poucos, criou-se o verbo fornicare, frequentar determinada zona, outro nome para os redutos do meretrício. A palavra zona chegou à língua portuguesa vinda da antiga Judeia, através do latim. Zonah era o nome que os judeus davam a um matrimônio invalidado por impedimento jurídico. No tempo da dominação romana, a mulher, nessa situação, não mais pura, virgem, acabava se prostituindo, indo para um lugar chamado zonah, lá sendo chamada pelos romanos de meretriz, palavra que vem de merces, preço, e de merere, ganhar uma recompensa.
A fornicação, como as várias tradições religiosas entendem, tradições criadas pelo mundo masculino, ressalte-se, reduz o ser humano, o homem, no caso, a uma condição puramente animal, biológica. Assim sendo, ficam esquecidos outros aspectos, até muito positivos, que deveriam fazer parte do ato sexual, como afetividade, afinidades intelectuais, psicológicas e mesmo um ideal de transcendência.
É aqui que a luxúria e o erótico se aproximam, tomando esta última palavra o sentido de provocação do desejo sexual. Quem nos explica melhor esta relação é a mitologia grega. Entidade nascida do Caos, juntamente com Geia, Tártaro, Érebo, Nix e Urano, Eros tinha a função de provocar o acasalamento, de juntar os seres que apareciam no universo criado. Nada escapava do seu poder, que se estendia aos próprios deuses, aos humanos e à natureza como um todo. Tradicionalmente, era representado por um adolescente, mal entrado na puberdade, muito jovem. Perigoso e irresistível, carregava nas mãos um globo terrestre, símbolo de sua universalidade. Era o desejo unilateral que misturava, que acasalava, uma força atrativa cega que provocava a continuidade do universo, indiferente à vontade daqueles que unia.
TEMPLO DE AFRODITE , GRÉCIA |
O cristianismo vitorioso, obviamente, nunca se esforçou para entender as religiões que o antecederam. Sumariamente, como religião vencedora, as satanizou. Quanto ao mundo grego, no âmbito da sexualidade, além de Eros, duas divindades gregas foram
particularmente atacadas, Afrodite e Dioniso. Foi na cidade de Corinto, na qual Afrodite pontificava, onde alguns cultos cristãos já haviam sido implantados, que São Paulo, nas suas visitas missionárias se demorou um certo tempo. Escandalizado com o que viu na cidade, deixou para os cristãos que dele se aproximaram quatro epístolas com conselhos pastorais sobre a questão, as conhecidas Epístolas aos Coríntios, duas delas integradas ao cânon bíblico.
EPÍSTOLAS AOS CORÍNTIOS |