segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

DOS PECADOS - A LUXÚRIA I


                     
A   LUXÚRIA  ( HIERONYMUS  BOSCH , 1450 - 1516 )
              
Etimologicamente, luxúria vem de luxus, latim, palavra que significa excesso, abundância, magnificência, extravagância, exibicionismo, dela fazendo parte ideias de anormalidade, de que algo está fora do lugar. Associa-se luxus ao verbo luctari, deslocar, dele saindo, por exemplo, a palavra luxação. A palavra foi muito
ISIDORO , C.560 - 636
empregada na Roma antiga e séculos posteriores sobretudo com conotação sexual. Com o tempo, seu universo semântico foi se ampliando passando ela a designar, de um modo geral, não só abusos quanto à sexualidade, ao apego aos prazeres dos sentidos, como à corrupção dos costumes, à lascívia, à intemperança. O entendimento que os primeiros padres da Igreja, como Isidoro de Sevilha, davam à luxúria ligavam-na aos prazeres sexuais. Luxurioso era para ele o “dissolvido em prazeres”. 

S. TOMÁS (  FRA
ANGÉLICO, 1395-1455)
Para entender melhor o que a luxúria é como pecado, sob o ponto de vista religioso, católico, temos que ir a Santo Tomás. Afirmava ele que o pecado nos atos humanos é o que contraria a ordem da razão, ordem esta que requer que tudo se dirija convenientemente para um determinado fim. Acrescentava então não haver pecado se o homem guiado pela razão se valia de modo conveniente das coisas e se o fim para que elas existiam fosse bom. As consequências desta maneira de pensar ficavam então óbvias: quanto maior a necessidade que experimentasse o homem com relação a alguma coisa tanto maior a necessidade de se observar a regra da razão. Daí, seria tanto mais viciosa uma coisa, isto é, pecaminosa, quanto mais ela se afastasse da razão. 

Quanto à sexualidade, não há o que discutir: Sem os atos sexuais a humanidade não prosperaria, o universo não se povoaria. Sem os atos sexuais os seres humanos não se multiplicariam, o gênero humano desapareceria. Tudo o que, quanto à sexualidade e à sua finalidade, não observasse a ordem da razão seria, pois, pecaminoso, seria luxúria, insistiam os padres da Igreja com base em Santo Tomás. Além do mais, há que se lembrar que os chamados pecados capitais levam sempre o homem a cometer muitos outros, a eles ligados. Ao praticar atos de luxúria, o homem, com facilidade, se entregará inevitavelmente a outros pecados.

Os vícios que foram chamados de capitais têm, como é fácil perceber, grande afinidade com o prazer dos sentidos. O mais intenso prazer corporal que o homem pode experimentar é o sexual. É por essa razão que a luxúria gera muitas “filhas”, no dizer do papa Gregório Magno. Temos a cegueira da mente, a irreflexão, a inconstância, a precipitação, o amor de si, o ódio de Deus, o apego às coisas materiais e o desespero em relação ao mundo futuro.

É importante lembrar que na antiguidade, bem antes do cristianismo, já era possível encontrar uma certa gradação estabelecida quanto a atos pecaminosos praticados por alguns seres humanos contra outros seres humanos e os deuses; algo semelhante, em alguns pontos, à matéria definida mais tarde por teólogos cristãos. Pode-se mesmo admitir que estes teólogos muito se valeram do que encontram no mundo anterior ao aparecimento do cristianismo para a formulação de sua doutrina sobre os pecados. Um exemplo do que aqui se diz está no poeta latino Horácio, que viveu no século anterior ao do nascimento de Cristo.


HORÁCIO
A seguir alguma frases de Horácio que, entendo, servem para ilustrar o que acima se disse: Quem não souber viver com pouco será sempre um escravo. A pálida morte bate com pé igual nos casebres dos pobres e nos palácios dos ricos. Não é pobre aquele que se contenta com o que possui. O avarento vive sempre na pobreza. Quem deseja muito muita falta sente.

EVAGRIUS  PONTICUS
No século IV dC, o monge grego Evagrius Ponticus (345-399) definiu as oito atitudes que os cristãos poderiam assumir como pecados mais graves: gula, fornicação, avareza, descrença, ira, desencorajamento, vanglória e soberba. No ano 590, a tese do monge foi incorporada ao Direito Canônico da Igreja Católica por iniciativa do papa Gregório I (540-604), ocasião em foi  dada a designação de pecados capitais (de caput, cabeça, em latim) às oito referidas atitudes. 

Toda vez que o homem pratica um ato inferior, pecaminoso, suas faculdades superiores se debilitam, se anulam mesmo, ficando ele desorientado no seu agir. Não será preciso fazer muito esforço para se notar as muitas conexões que a luxúria pode fazer; com a prostituição, a sodomia, a pornografia, o aborto (gravidez indesejada), as doenças sexualmente transmissíveis, o incesto, o sadomasoquismo, a pedofilia, a zoofilia, o bestialismo, o voyeurismo, o fetichismo e outras mais. 


A última moda neste terreno é a do amor ("carnal", inclusive) entre humanos, robôs e máquinas, que já chegou ao cinema comercial. Blade Runner, de 1982, por exemplo, descreve, dentre outros tópicos, uma relação amorosa entre um policial caçador de androides e uma replicante. Mais delicado, outro exemplo, é o recente, 2013, filme Ela, que narra a paixão de um tecnocrata (Joachin Phoenix) por um programa informático chamado Samantha.    


VOYEURISME  ( GRAVURA  CHINESA )

O amor libidinoso tem características de primariedade, é afoito, inconsequente, precipitado, elide qualquer possibilidade de reflexão, é inconstante, esgotando-se no próprio instante. Aponta
LIBIDO
( PICASSO , 1881 - 1973 )
ele para uma satisfação inteiramente ególatra, que, na realidade, é uma negação da transcendência, de algo que poderia ou deveria se realizar no tempo, inclusive através de ajustes mútuos das partes envolvidas. Libido é palavra que vem do latim, onde tem o sentido de paixão, de desejo violento. É procura instintiva do prazer sexual. Na Psicanálise, é a energia que está na base das transformações da pulsão sexual e, como tal, é a energia vital.

A luxúria caminha ao lado da paixão, palavra que tem uma história muito antiga. Entre os gregos, pathos, paixão, era tudo o que afetava o corpo e a alma tanto de modo benéfico como maléfico. Era algo experimentado, sempre uma ideia de algo sofrido, passivo. Vitimada pela paixão, a pessoa ficava à mercê dela. 


GLÂNDULA TIMO
O filósofo Platão usava a palavra epithymia para designar os sentimentos que subjugavam o ser humano, desejos, por exemplo. Este termo que Platão usa tem por base uma outra palavra, thymos, um órgão (glândula timo), situado no centro do peito,  que, no ser humano, tem a ver com a vida afetiva, com sentimentos. Os antigos confundiam esta glândula com o coração. Por essa razão, falamos que uma pessoa quando não tem sentimentos não tem coração. Por essa razão também, na arte religiosa, a imagem de Cristo com o coração exposto no meio do peito aberto significa o amor divino pela humanidade. Ainda mais: na Índia, no Yoga, é nessa região do peito que se situa o chamado chakra cardíaco (anahata, não percutido), governado, na Astrologia, pelo planeta Vênus, que, como sabemos, é o astro da vida afetiva.


CÍCERO
(KARL STERRER, 1885-1972)
Para o escritor latino Cícero, paixões são sempre perturbações da alma. Santo Agostinho verá como sinônimos paixão e libido. Aristóteles, outro filósofo grego, dizia que paixão é tudo aquilo que nos afeta. Por isso, afetados pela paixão tornamo-nos pacientes, padecemos; agente é aquele ou aquilo que nos provoca a paixão. Qualquer que seja o entendimento, a paixão se inscreve sempre no campo dos fenômenos passivos da alma dos quais a luxúria é uma expressão. Afetados, sentimos prazer ou dor. Se prazer, tendemos a nos aproximar do estímulo, a buscá-lo. Se dor, afastamo-nos. Todavia, este dois campos nem sempre podem ser definidos deste modo. Muitas vezes, um estímulo poderá nos causar, ao mesmo tempo, prazer e dor. 

Na Psicologia, a paixão é uma tendência de maior ou menor duração, acompanhada de estados afetivos e intelectuais, imagens muito poderosas que acabam por se impor, dominando a vida de uma pessoa pela sua intensidade e permanência. Uma inclinação que, instalada, torna-se o centro de tudo, tudo a ela se subordinando. Por isso, a paixão lembra cegueira. Nada vemos senão ela. Mesmo no caso de paixões ratificadas pela razão, somos tomados por elas. A paixão pode paralisar a ação normal da razão sobre a nossa conduta, impedindo a determinação da vontade. 

O passional se define por uma oposição ao racional, ao lógico. Neste sentido, é como a loucura. A razão, o racional, liga-se à ordem, à harmonia, à clareza. A paixão lembra irracionalidade, desarmonia, desordem, doença, caos. Desde a antiguidade, a mesma recomendação, na Filosofia, na Religião, na Medicina, na Psicologia, vigiar as paixões, pois sempre ameaçam a alma e o corpo de desordem, doenças, destruição.

A  LUXÚRIA
( HIERONYMUS BOSCH, 1450-1516)
De um modo geral, o pecado da luxúria sempre foi considerado como uma perversão, um desvio, daquilo que o sexo pode proporcionar como prazer sensual. Muitas religiões afirmam não condenar o sexo se praticado com moderação, sendo sempre difícil, porém, estabelecer limites entre o que é “normal” e os seus desvios. Quando a Igreja católica condena o sexo, vendo-o como pecado capital, segundo alguns teóricos, é porque ele assume um caráter luxurioso, ou seja, quando um dos parceiros não leva em conta o outro, tornando-o um objeto, quando o parceiro que assim procede leva somente em conta a gratificação dos seus sentidos. 



É neste caso que a luxúria se torna sinônimo de fornicação, de prostituição e de outras formas condenáveis. Fornicar é ter relações sexuais fora do casamento, ir às prostitutas, cometer o chamado pecado da carne. Fornicar vem de fornice ou fornix, arco de grandes portas, sob os quais, na antiga Roma, as prostitutas se exibiam para atrair clientes. Este arco não devia ser ultrapassado por elas, pois marcava o limite da área, do bairro, onde viviam e atuavam profissionalmente, sempre sob a proteção de um homem (pai, irmão, marido ou amigo nas funções de proxeneta (etimologicamente, corretor de mercadorias), gigolô (etimologicamente, do francês, o que explora a gigolette, mulher de rua), cafetão (de cáften, no lunfardo), o que vive do dinheiro das meretrizes. 



O lunfardo é uma forma dialetal do espanhol falado nos arredores de Buenos Aires. Talvez daí, para nós, venha a palavra cafajeste. No Brasil, cafajeste é o homem que trata a mulher como objeto. Nos anos 1950, a palavra foi usada, no Rio de Janeiro, para dar nome a um clube masculino, o Clube dos Cafajestes, cujo primeiro presidente foi o milionário e industrial paulista Baby Pignatari).

Aos poucos, criou-se o verbo fornicare, frequentar determinada zona, outro nome para os redutos do meretrício. A palavra zona chegou à língua portuguesa vinda da antiga Judeia, através do latim. Zonah era o nome que os judeus davam a um matrimônio invalidado por impedimento jurídico. No tempo da dominação romana, a mulher, nessa situação, não mais pura, virgem, acabava se prostituindo, indo para um lugar chamado zonah, lá sendo chamada pelos romanos de meretriz, palavra que vem de merces, preço, e de merere, ganhar uma recompensa. 

A fornicação, como as várias tradições religiosas entendem, tradições criadas pelo mundo masculino, ressalte-se, reduz o ser humano, o homem, no caso, a uma condição puramente animal, biológica. Assim sendo, ficam esquecidos outros aspectos, até muito positivos, que deveriam fazer parte do ato sexual, como afetividade, afinidades intelectuais, psicológicas e mesmo um ideal de transcendência.

É aqui que a luxúria e o erótico se aproximam, tomando esta última palavra o sentido de provocação do desejo sexual. Quem nos explica melhor esta relação é a mitologia grega. Entidade nascida do Caos, juntamente com Geia, Tártaro, Érebo, Nix e Urano, Eros tinha a função de provocar o acasalamento, de juntar os seres que apareciam no universo criado. Nada escapava do seu poder, que se estendia aos próprios deuses, aos humanos e à natureza como um todo. Tradicionalmente, era representado por um adolescente, mal entrado na puberdade, muito jovem. Perigoso e irresistível, carregava nas mãos um globo terrestre, símbolo de sua universalidade. Era o desejo unilateral que misturava, que acasalava, uma força atrativa cega que provocava a continuidade do universo, indiferente à vontade daqueles que unia. 

TEMPLO  DE  AFRODITE , GRÉCIA
Quando Afrodite chegou ao Olimpo grego para assumir o controle da vida afetiva, de modo a colocar o desejo numa perspectiva de reciprocidade, Eros se integrou ao seu séquito. Todavia, vezes sem conta ele escapou e continua a escapar do controle da deusa, como força inquieta que é, sempre em busca de uma nova experiência. Sua perversão é a luxúria, que Afrodite procura conter; perversão que consiste em não considerar o outro como parceiro, mas, sim, como algo a ser utilizado e desprezado, não se levando em consideração o seu valor.

O cristianismo vitorioso, obviamente, nunca se esforçou para entender as religiões que o antecederam. Sumariamente, como religião vencedora, as satanizou. Quanto ao mundo grego, no âmbito da sexualidade, além de Eros, duas divindades gregas foram
EPÍSTOLAS  AOS  CORÍNTIOS
particularmente atacadas, Afrodite e Dioniso. Foi na cidade de Corinto, na qual Afrodite pontificava, onde alguns cultos cristãos já haviam sido implantados, que São Paulo, nas suas visitas missionárias se demorou um certo tempo. Escandalizado com o que viu na cidade, deixou para os cristãos que dele se aproximaram quatro epístolas com conselhos pastorais sobre a questão, as conhecidas Epístolas aos Coríntios, duas delas integradas ao cânon bíblico.