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ESMOLA , JEJUM , ABSTINÊNCIA , FLAGELAÇÃO |
Desde
a nossa mais recuada História, em várias civilizações, em períodos e épocas
diversos, encontramos alguns indivíduos que decidiram viver à margem da
sociedade, sem qualquer ambição, renunciando aos bens do mundo e às suas
satisfações.
Qual
o motivo fundamental desta decisão? Desenganos, decepções e desilusões com as
coisas mundanas, geralmente, são as motivações principais. Contudo, há, também,
aqueles que não passando por nada disto simplesmente acharam que o verdadeiro
caminho era o da renúncia. Em todos os que partem para esta opção, qualquer que
seja a motivação, uma tônica parece ser a dominante, a busca de Deus, traduzida
sempre por uma imersão no Todo, um rompimento dos limites do eu, uma entrega
que envolve a totalidade do ser, o corpo e a alma, como dizem, experimentada
tanto interiormente como exteriormente.
No
que é mais evidente para nós, sempre, falamos de despojamento, de abandono da
pátria, da família, da casa, dos amigos, da vida profissional, tudo roda quando
a decisão se impõe. Para o mundo, no geral, para o homem comum, esse
comportamento é incompreensível, absurdo, uma espécie de suicídio. Para o ocidental,
muito mais do que para o oriental, uma decisão dessas é sempre algo
escandaloso, extravagante, caso de patologia médica, de psiquiatria, quando não
de ordem pública, a exigir a intervenção do poder policial ou judicial.
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SÃO JOÃO BATISTA ( HIERONIMUS BOSCH, C.1450 - 1516 ) |
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ANACORETA |
Estes
seres, hoje muito raros no ocidente, são (eram) chamados de ascetas (do grego,
exercício), penitentes (do latim, arrependimento, pesar), nômades (do grego,
pastor), seres que abandonaram tudo para ir em direção de algo maior. Outros se
fixam num lugar isolado, em grutas, cavernas, são os eremitas (do grego,
isolado), os anacoretas (do grego, retirar-se, afastar-se). Essa paixão que os
consome os torna perigosos sob o ponto de vista social. A sociedade deve ser
fruto da vida moral, que, como sabemos, pede convivência, reciprocidade,
ajustes, trocas. Esses seres de que falamos não querem nada disto. São cegos a
tudo o mais o que não seja sua entrega total, sua salvação, o da adoração e da
efusão com o Todo, uma diluição no Inefável, no Absoluto.
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EREMITA |
Para
as sociedades organizadas, quaisquer que sejam os seus regimes políticos, econômicos
ou religiosos, a impressão que fica é a de que esses seres são personalidades psicopatas
ou, na melhor das hipóteses, neuróticas, fixadas apenas numa ideia, masoquistas
inclusive, presos a uma atitude improdutiva, perniciosa. São parasitas, ervas
daninhas, que não só ameaçam a ordem pública, que sobrevivem à custa dos outros,
como dão um péssimo exemplo.
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MADALENA PENITENTE (TINTORETTO, 1518 - 1594 ) |
Se
entendermos que a vida pede produtividade, eficiência, sucesso econômico,
ascensão social, esses seres realmente não servem para nada. Num mundo onde se
investe tanto no ego, inflado de mil maneiras, esses seres são incômodos,
causam mal-estar. Num mundo como o nosso, com tanta tecnologia à nossa volta, a
grande utopia, o grande sonho da maior parte da humanidade é sem dúvida o
consumismo nas suas mais variadas expressões, através do qual se cultuam todas
as formas de poder. Seres como estes a que nos referimos são incômodos, não nos
causam nenhum prazer. Não fazem eles parte do nosso mundo, um mundo no qual a
mensagem evangélica publicitária diz insistentemente que para sermos alguém
será preciso possuir sempre mais, pois a felicidade é daqueles que acumulam,
sempre glutões, grandes consumidores de bens materiais, inclusive dos produtos
culturais de massa oferecidos pelos meios de comunicação.
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PENITENTES - BRASIL (NE) |
Além
da renúncia física, material, os seres a que nos referimos renunciam também a
qualquer opinião ou saber. Esta radicalização os faz voltar a um estado
semelhante ao da inocência e da nudez originais. Para tanto, livram-se também
do passado, da memória, de qualquer projeto futuro, perdendo até o seu nome e a
sua pátria. Seu tempo é o presente, eternamente real.
Na
civilização ocidental, no início do cristianismo, podemos encontrar, não com o
radicalismo como os encontramos no oriente, muitos exemplos desses seres, menos
isoladamente e muito mais em grupos. Os exemplos, entre nós, podem ser buscados
também da baixa Idade Média até o século XIX. As propostas que no cristianismo
mais se aproximaram daquelas formas encontradas no oriente, principalmente na
Índia, estão sem dúvida no cristianismo primitivo.
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SADDHU |
Aos
poucos, porém, o cristianismo procurou conter de todas as maneiras essas
experiências, chegando mesmo em muitos casos a exterminar os que as tentassem.
Só entre as camadas mais baixas da população na Europa é que essas experiências
encontraram, como na Índia, acolhida e compreensão. Receber um desses eremitas
ou caminhantes era não só um dever, mas um privilégio, uma bênção, pois
representavam uma esperança e também um exemplo, o de que, como eles, talvez
pudessem aqueles que deles se aproximassem aprender a se libertar do desejo,
das suas garras, do medo, do egoísmo. Importante, por isso, tocá-los,
falar-lhes.
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GURU |
Este modo de assim considerar esses seres, homens-santos, sannyasins, saddhus, ou mestres (gurus)
é ainda comum na Índia, principalmente no interior do país. Nas grandes cidades
indianas suas aparições são hoje sempre insólitas, extravagantes, rebaixados
que ficam os modelos ao exotismo para turistas, transformados invariavelmente
em modelos fotográficos.
Uma
das principais características do comportamento desses seres, em todas as
épocas, com maior ou menor intensidade, é (foi) a mortificação. Ou seja, a
adoção de determinadas práticas corporais de flagelação através de penitências,
como jejuns e castigos corporais, com a finalidade de inibir desejos, de
refreá-los ou de lhes dar a morte, através da autoflagelação, da tortura, da
repressão de determinados sentimentos.
A
mortificação, nos diz a Alquimia, é a mais radical e violenta operação que
podemos aplicar à matéria no sentido de transformá-la. Indo mais longe, é
também a operação que, no âmbito religioso, pode aniquilar a mente, a maior
autoridade na hierarquia da nossa vida consciente. Simbolicamente, a mortificação
assim entendida equivale a um regicídio, pois é acompanhada por uma dissolução
regressiva do comando da personalidade. O que sempre se busca então é a
sujeição das paixões e dos apetites por meio de rigores dolorosos infligidos ao
corpo. São símbolos ligados à mortificação, exemplificando, o fogo, a foice, o
esqueleto, o chicote, o porrete, o lobo, o rei, a caveira etc. A cor da
mortificação é o negro, cor que lembra a tortura, a derrota, o pântano, a
queda, a supressão da luz, o apodrecimento. A mortificação procura, assim,
tornar a vida difícil, miserável. Enfrentada, leva à luz, ao renascimento, à
ressurreição, a uma nova forma de vida.
A
espiritualidade hindu propõe uma grande diversidade de caminhos para que
possamos chegar ao Todo, voltar ao Brahman, partindo sempre do conceito básico,
fundamental, de que não existem realidades divinas privilegiadas, superiores,
de um lado, e o mundo material, profano, grosseiro, inferior, de outro. Tudo é
sagrado. Em nenhuma outra religião encontramos tantas vias de acesso ao Todo. É
lá que encontramos, como em nenhum outro lugar, os mais estranhos exemplos
desses solitários seres, andarilhos metafísicos, que se entregam à miséria e ao
sofrimento prazerosamente, com uma expressão de tranquilidade no rosto como
raramente a encontramos em pessoas entregues a essa experiência.
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BRÂMANE |
Na
Índia, aquele que se dispõe a entrar nesse caminho deve buscar a melhor maneira
de fazê-lo conforme a sua personalidade, segundo nela predomine a atividade
intelectual e racional, a física, a emocional, os sentimentos, a aspiração
devocional, o dom de si mesmo e mesmo a sexualidade. Qualquer que seja a via
escolhida, a meta final é a mesma, o buscador deve tornar-se um jivan-mukta, um liberto em vida, alguém
não mais submetido ao mecanismo dos desejos e do medo. Aquele que chega a esse
estado, coloca-se acima de toda limitação psicológica e reconhecidamente
situa-se acima, fora de toda regra social. Libertou-se dos três corpos (físico,
emocional e mental), entrou na quarta etapa, a de moksha, a do liberto em vida.
Nos
primeiros momentos do Cristianismo, uma das experiências mais interessantes que
encontramos no sentido do que acima se expôs foi a da chamada Igreja Oriental.
Os religiosos do Cristianismo Oriental sempre se mantiveram mais próximos de
uma vivência que buscasse a humildade e o ascetismo, ao contrário do
Cristianismo oficial, que sempre se ligou muito mais às elites e ao poder
político-econômico, sacramentando-os.
É dos monges cristãos orientais a doutrina da
chamada "oração do coração", a hésychia,
ou seja, uma volta ao reino interior. Propõe essa doutrina um método que começa
por certas conquistas (desprendimento, lembrança da morte, humildade etc).
Depois, o domínio de certas práticas respiratórias, cujo objetivo é o de fixar
a mente, a atenção, e unificar as faculdades corporais. Com isto, que lembra
muito certas técnicas do Hatha Yoga, seria possível, segundo os monges, reconduzir o espírito ao coração de modo a
uni-lo à alma. Isto seria obtido assim: sincronizando a entrada do espírito
no coração com a inspiração do ar; a inspiração seria ralentada e espaçada, de
modo a se conseguir comandá-la inteiramente. Tudo isto deveria ser praticado
num lugar tranquilo, solitário, na posição sentada, assento baixo, olhos
fechados, o queixo sobre o peito, os olhos fixados no umbigo. O que se
procurava era a chamada exploração das entranhas, algo que lembra certos
métodos sufistas.
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IMAGENS BIZANTINAS |
Em
1782, foi publicado com o nome de Filocalia
(amor à beleza), em Veneza, um grande texto onde se reunia a produção de vários
autores, desde os chamados Padres do Deserto até os religiosos bizantinos do
século XIV. Dentre alguns apotegmas (palavra memorável, lapidar) desse grande
texto, citamos:
O monge (do
grego, solitário, que vive só) deve, como
os querubins e os serafins, ser apenas olhos.
Suprime as relações numerosas, se não
queres que teu espírito divague e perturbe tua solidão (hésychia).
Que a alma pratique a sobriedade,
afaste-se da distração e renuncie às próprias vontades; então, o Espírito de
Deus se aproximará dela.
A apatheia é o estado pacífico da alma
racional que resulta da humildade e da temperança, os respectivos antídotos das
paixões e da cólera.
A
perspectiva de sofrer por Cristo nos primeiros séculos do Cristianismo
enfatizava o abandono das riquezas, da família, dos amigos, da saúde, da
própria vida. Um aspecto interessante desse martírio era o da virgindade, ideal
definido por São Paulo no capítulo sétimo da sua primeira Epístola aos
Coríntios, povo da cidade de Afrodite, que o escandalizou, com as suas
hierodulas, prostitutas sagradas, sacerdotisas da deusa.
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PROSTITUTAS SAGRADAS ( HENRY HOLIDAY, 1839-1927 ) |
O
primeiro tratado cristão sobre a virgindade só aparece no século III, O Banquete, de Metódio de Olímpia. Nesse
texto ele afirma que as virgens são os verdadeiros mártires do Cristianismo, já que sustentam até o fim, sem esmorecer,
durante toda a sua vida, o verdadeiro combate olímpico que é a luta pela
castidade. Textos da época afirmavam que pela prática da castidade era
possível às virgens porem-se em contacto com Céu ainda que na Terra. As virgens
elevavam-se assim acima das sensações de prazer e de dor graças às asas da alma (tema da sublimação
alquímica que foi parar na Psicologia). Guardavam elas seus cinco sentidos
intactos para Cristo, que elas encontrariam como esposo no dia da ressurreição.
Esse era o casamento místico. O
refrão dos hinos que as virgens cantavam dizia: Por Ti eu me conservo pura! Com meu archote radiante firme na mão,
Esposo, venho a Teu encontro. Por Ti me conservo pura!
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METÓDIO DE OLÍMPIA |
No
século XI, na Europa, aparece uma seita religiosa cujos ensinamentos se propagaram
pela Itália (Lombardia até o centro), pela Renania, pela Catalunha e pelo Midi
francês (Albi, Toulouse, Carcassone). Era o Catarismo (do grego, katharos, puro). Tem a doutrina cátara
inspiração bogomilista, principalmente, e suas propostas de austeridade
contrastavam fortemente com a opulência do Cristianismo oficial.
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CATARISMO |
O Catarismo
foi muito reprimido não só pela pregação (São Bernardo, Pedro, o Venerável e
São Domingos) como pelas armas (cruzada albigense e Inquisição). O movimento
cátaro parece ter recebido forte influência de uma seita herética cristã que
pregava a austeridade, surgida na Bulgária no século XII e, depois, difundida
pela Europa ocidental. O fundador da seita chamava-se Bogomil (Bog, Deus, e mil, amado), um pope búlgaro. Para outros, Bogomil era,
em búlgaro, a tradução do nome grego Teófilo. A cosmologia bogomilista era
dualista e segundo ela o mundo material teria sido criado por Lúcifer, filho
rebelde de Deus. Jesus, o outro filho, teria vindo ao mundo para lutar contra o
reino do irmão.
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BOGOMILISMO |
A
busca mística proposta pelo Judaísmo, pelo Cristianismo e pelo Islamismo
oficiais torna-se muito mais difícil que no Oriente, já que neles a
transcendência está atrelada a dogmas que negam toda possibilidade de
interpretações contraditórias da questão religiosa, como é permitido no
Hinduísmo, por exemplo. E, pior, negam qualquer escolha segundo a diversidade
da sensibilidade religiosa de cada um. O que podemos deixar aqui, como mensagem
final, é uma pequena história que ouvi na Índia: Certo dia, um jovem, muito entusiasmado, decidiu tornar-se um sannyasin
(o que busca a vida monástica da renúncia). Comprou uma roupa de tecido
grosseiro, foi para o ashram e dirigiu-se ao mestre, dizendo que sua vida
anterior tinha acabado, que daquele momento em diante seria um monge. O mestre
(Ramana), vendo-o, disse que, de fato, o corpo parecia o de um monge, mas,
observou, será que o coração também fizera o mesmo?
Lição:
não podemos simplesmente substituir um ego profano por um ego religioso, eis a
primeira falácia da renúncia...