segunda-feira, 19 de setembro de 2011

OS CELTAS



Parece estar hoje suficientemente provado que os celtas são oriundos daquele mundo que se convencionou chamar de indo-europeu. Esse mundo ficava ao sul da Rússia, estendendo-se por entre os montes Urais, o mar Cáspio e o Mar Negro. Pesquisas de ordem linguística feitas a partir da língua sânscrita no século XIX levaram à conclusão que na referida região haveria uma língua-mãe, a que denominaram indo-europeu, da qual teriam saído 12 grupos linguísticos, sendo um deles o celta.

Por volta do ano 2000 aC, tribos provenientes desse mundo, em vagas sucessivas, se dirigiram à Europa central e ocidental, atingindo a Alemanha, os Balcãs, o norte da Itália, a Gália, a península ibérica e as ilhas britânicas. Outras migrações, na direção oriental, chegaram à Ásia Menor e ao rio Indus.
Podemos distinguir cinco grandes períodos na história da civilização celta: 1) entre 1800-1200 aC, grupos que haviam chegado à Alemanha do sul alcançam, a partir dela, uma parte da Europa central e ocidental; 2) de 1200-750 aC, sucessivas invasões caracterizam a chamada "civilização dos campos de urnas" (urnfield), na qual encontramos como traços marcantes práticas de incineração e de inumação em túmulos rasos; as influências deste período se estendem, principalmente, à Gália e à Espanha. 

É neste período que se desenvolvem as povoações fortificadas dos celtas, denominadas pela palavra latina oppida; 3) entre 750-480 aC, temos a civilização céltica da primeira idade do ferro, também chamada civilização Hallstat, que na Europa ocidental tem seus territórios na Alemanha do sul, na Boêmia, na Áustria, no leste da Gália, na Itália do norte e na Grã-Bretanha. É neste período que se organiza a sociedade gaulesa, criando-se linhas comerciais entre os celtas e os povos do Mediterrâneo; é também neste período que, por influências gregas e etruscas, a arte celta ganha uma expressão maior, desenvolvendo-se bastante; 4) entre os séculos V e II aC, temos a segunda idade do ferro ou civilização de La Tène, que compreende os Balcãs, a Grécia (tomada de Delfos em 270 aC), a Gália inteira e na direção oriental a Ásia Menor (Galácia). No período que vai de 250 a 120 aC, o da segunda civilização La Tène, a arte atinge o seu máximo esplendor, aparecendo, no sul da Gália, a grande escultura monumental celta. 5) A partir do século II aC, período da civilização La Tène III, os romanos submetem sucessivamente a Gália cisalpina e transalpina, a Espanha, a península balcânica e a Grã-Bretanha. O elemento celta só se manterá na Bretanha (Gália), na Cornualha, no País de Gales, no noroeste da Escócia e na Irlanda.

Os celtas (keltoi para os gregos) jamais chegaram a formar uma nação, misturando-se com rapidez aos povos que já estavam fixados nas regiões que invadiam. Na Espanha, tivemos os celtíberos, na Ásia os galogrecos (gálatas) etc. A união entre os povos celtas estava assentada numa mesma língua e em crenças religiosas mais ou menos comuns. De um modo geral, sua sociedade estava dividida em três grandes classes: a nobreza guerreira, o povo e os druidas. A arte se voltava mais para os aspectos utilitários da vida (uso doméstico) do que para os religiosos. Muito de sua arte se caracteriza também por uma forte tendência esquemática linear, chegando mesmo a uma abstração ornamental que alguns chamam de "surrealista". A ornamentação, em geral, extraía seus motivos do mundo vegetal e animal, expressos por desenhos geométricos, espirais, curvas e contracurvas. Grande destaque para os trabalhos em metal, especialmente em bronze e ouro, menos a prata. Quanto às pedras, trabalhos em âmbar amarelo (resina fóssil) e coral.

O período mais notável da história dos celtas está compreendido entre o século V, quando saquearam Roma no ano de 390, e o século III, quando tomaram o santuário de Delfos, na Grécia, no ano de 279 aC. Nos anos seguintes, sob pressão das tribos germânicas e dos exércitos romanos, a influência celta declina, integrando-se eles, como se colocou, nas culturas preexistentes, mas conservando muitos traços religiosos, culturais e artísticos que até hoje sobrevivem. Um exemplo disto pode ser encontrado nos famosos festivais intercélticos que se realizam em alguns centros europeus, principalmente na Bretanha (França) e na Cornualha (Inglaterra), e também no status de língua nacional que o gaélico, o córnico e o manquês ou manx têm, respectivamente, na Irlanda, na Cornualha e na ilha de Man.

FESTIVAL NA ESCÓCIA

Podemos ainda acrescentar, na Espanha, a ênfase que é dada às expressões culturais galegas de origem celta, na região Norte, habitada desde o século VI aC por um povo celta, os kallaïkoi.



CASTROS DE BAROÑA

O MUNDO RELIGIOSO

Como aconteceu em todas as civilizações, inclusive com os antigos povos da Europa, as primeiras experiências religiosas dos celtas têm relação com a magia e com certas práticas rituais. Neste sentido, as primitivas crenças dos celtas se pareciam bastante com as de camponeses do mundo todo, muito simples, como as que encontramos em várias partes do mundo. As forças que atuavam no cosmos tinham para eles um caráter mágico, invadindo todos os aspectos de sua vida e o ambiente em que viviam.

As primeiras práticas religiosas possuíam a finalidade de conjurar tais forças, controlá-las, para que pudessem de algum modo ser utilizadas em benefício próprio. Para tal, os recursos de sempre: sacrifícios, rituais, algumas histórias e lendas. Não havia um sistema religioso organizado como o tinham gregos ou romanos. O que se encontrou, isso sim, entre os povos celtas, foram traços, vestígios, tanto nos termos religiosos que usavam como em certas práticas, cujas raízes vinham de um fundo indo-europeu comum, fato que, por exemplo, os unia aos árias que haviam invadido a Índia e aos italiotas de antes da dominação romana.

Ao chegar à Europa ocidental, os celtas já encontraram, em vários lugares, numerosas representações religiosas, cuja autoria lhes chegou a ser atribuída. Provou-se depois que tais representações, estudadas sob a rubrica de mitologia pré-céltica, haviam sido erigidas por povos do neolítico. Eram os dólmens e menirs; quando dispostos circularmente, estes últimos receberam o nome de cromlecs. Os dólmens eram formados por dois (bilítico) ou mais megálitos (trilítico, tetralítico etc.). Os menirs eram formados por grandes pedras alongadas, fixadas verticalmente no solo, usados ao que parece como marcos astronômicos e apresentando traços figurativos (totens).


CARLOS MAGNO

Estes monumentos religiosos foram usados pelos celtas desde tempos muito remotos. Uma prova irrefutável disto está num édito baixado pelo imperador Carlos Magno em 789, em obediência a várias determinações conciliares, que proibia o culto de árvores, de pedras e de fontes, de tradição celta. Estes cultos ligados à natureza vinham de longe, cerca de um milênio ou mais da chegada dos celtas, que aproveitaram estes monumentos neolíticos. Na alta Idade Média europeia, proveniente da antiga Gália celta, ainda sobreviviam os famosos cultos dessas pedras enormes, denominadas "Pedras das Fadas" ou "Pedras do Diabo".

As fontes para se obter uma visão do mundo religioso celta, em que pesem os expurgos feitos pela religião católica, permitem que um panorama seja razoavelmente traçado. As pesquisas arqueológicas completam esse panorama. Parte desse material nos vem da antiga literatura, principalmente a irlandesa. Trata-se de material que contém informações mitológicas que aparecem em meio a histórias, nomes de divindades, festividades, atividades sacerdotais etc. De um modo geral, fontes gregas e romanas, estas muito mais, completam as informações. O material de natureza insular apresenta muita semelhança com aquele que encontramos nas fontes continentais.

No continente, aquilo que de mais consistente temos como exemplos das relações com o sobrenatural data do tempo em que povos celtas viveram em áreas anexadas ao império romano. São inscrições em latim, quase sempre se referindo a uma divindade romana que tivesse relação com alguma divindade celta. Outras informações sobre as crenças religiosas celtas podem ser obtidas daquilo que vários autores deixaram sobre eles, especialmente Júlio César. Outra área que pode contribuir bastante é a da Filologia comparada, além, evidentemente, de todo o material arqueológico reunido.




OS CELTAS INSULARES

Tudo indica que os celtas se estabeleceram na Grã-Bretanha no séc. VIII aC e dali chegaram à Irlanda. Temos dois grupos insulares celtas: o ramo gaélico ou goidélico, irlandês, e o ramo bretão ou britano. Nestes dois ramos encontramos muitos registros, inscrições, manuscritos (irlandeses, gaélicos, escoceses), literários (crônicas, lendas evemerizadas), hagiológicos, poéticos (bardos) etc. É de se ressaltar que o druidismo manteve-se bem mais preservado no mundo celta insular que no continental por vários séculos. Isto  se deve ao fato de os druidas, perseguidos pelos romanos, terem se refugiado na Grã-Bretanha e na Irlanda. O grande golpe contra a classe sacerdotal celta viria cerca de quatro séculos mais tarde, no final do século VI, com as pressões e perseguições do Cristianismo, o que praticamente liquidou o druidismo.


O ano celta, tanto na Irlanda como na Gália, estava dividido em quatro fases, marcadas por festas de transição. Na Irlanda, a maior festa tinha do nome de "Samain", celebrada, no calendário atual, entre 31 de outubro e 1º de novembro. Marcava o fim das atividades pastoris. De inspiração imemorial, do neolítico, esta cerimônia tinha por objetivo maior o de garantir a renovação e a prosperidade da terra e dos êxitos tribais, a boa sorte para a primavera e para o verão que viriam mais adiante. Animais eram abatidos, reuniam-se os rebanhos, poupando-se alguns que se destinariam à procriação.

O que se procurava com esta grande festa era a renovação da fecundidade da terra e dos seus habitantes, tudo representado pela união do deus tribal com a deusa da natureza, personificada por um rio ou outro acidente natural escolhido. Como exemplos, temos a união do deus Dagda (Bom Deus) com a deusa Morrigan.



                                                                       O primeiro era o  pai  da  tribo,  seu  protetor,  arquétipo  de  todas as atividades masculinas, inclusive fora da região insular. Dagda possuía um caldeirão de onde saía a comida que a todos alimentava. Dagda é apresentado como uma figura meio grotesca, de poder e apetites desmedidos, vestes curtas, uma clava, sempre com o seu caldeirão, símbolo de inesgotabilidade, rejuvenescimento e inspiração. Além disso, tinha o poder de convocar as quatro estações do ano ao tocar a sua harpa mágica. É de se observar que não havia, entre os celtas, uma "especialização" divina como a encontramos em deuses de outros panteões. As "especializações" (guerra, metalurgia, sabedoria, luz solar etc.) se concentravam na figura do deus tribal. O celta priorizava sempre as divindades tribais, locais, o que explica a grande variedade de nomes entre os vários povos celtas. O mundo sobrenatural, paralelo ao real, era evitado, observadas, contudo, datas e ritos específicos para homenagear as suas potências e divindades.



Uma deusa da natureza se unia ao "Bom Deus". Seus nomes: Morrigan, rainha dos demônios; Nemain, deusa do Pânico; Badb Catha, deusa representada pelo corvo da batalha. Outros nomes de divindades femininas se ligavam ao mundo animal, éguas, por exemplo, a indicar que elas diziam muito mais respeito à terra, à agricultura, que ao âmbito social-tribal. Havia, de qualquer modo, que aplacá-las, dominá-las, subjugá-las, um pagamento, um sacrifício, pela ocupação da terra. Seus aspectos lembravam, por isso, tanto a fertilidade como a destruição. Podiam também ser representadas por outras formas zoomórficas ou por acidentes naturais. As forças mágicas baixavam na noite de 31 de outubro, saídas de grutas, montes, enquanto monstros, pelo fogo, pelo veneno, levavam o perigo aos centros de poder, às fortificações.

Outra festa, a segunda em importância, era a de 1º de maio, começo da estação quente, e tinha o nome de Beltine ou Cétshamain, quando o gado podia voltar aos campos. Acendiam-se grandes fogueiras. A palavra Beltine lembra a palavra celta para designar o fogo. Belenus, divindade muito conhecida no norte da Itália e no sul da Gália, aparece associado, por isso, ao mundo pastoril e ao fogo. Esta data de 1º de maio está associada na Alemanha à figura de Santa Walpurgis, religiosa beneditina inglesa, convocada por São Bonifácio para ir à Alemanha, para se tornar a abadessa de Heindenheim. Morrendo a abadessa, sobre seu túmulo, numa igreja, brotava milagrosamente, um líquido (óleo de Santa Walpurgis). Na noite que precedia a festa da santa, 1º de maio, acontecia a "Noite de Walpurgis", muito semelhante ao Sabá, assembleia noturna de feiticeiros e feiticeiras que se reuniam, à meia-noite, num sábado, lua cheia, sob a direção de Satanás.

O Sabá (Schabbat, descanso, hebreu), entre os judeus, lembremos, se liga ao simbolismo da semana. É uma celebração associada ao sábado, consagrado a Yahvé. É entre os judeus um dia de repouso total, a reprodução do sétimo dia da criação. Na origem, porém, o Sabá tinha relação com os ciclos lunares, com os ritos de fertilidade e de fecundidade e com o simbolismo da noite. Essas festas, segundo os primeiros padres da Igreja católica, tinham estreita relação com a demonologia e a feitiçaria. Aliás, isto já havia acontecido com os judeus; profetas como Isaías e Oseias se levantaram contra estas celebrações e festas ligadas aos ciclos lunares, reminiscências de uma antiga cultura nômade. Com o tempo, Sabá entrou nos dicionários como sinônimo de algazarra, gritaria, de bruxas à solta, reunidas em clareiras ou no alto das montanhas, fazendo sempre um grande tumulto.


As outras duas festas são o Imbolc, a 1º de fevereiro, e Lugnasad, a 1º de agosto. A primeira tinha a ver com a lactação das ovelhas, correspondendo à festa de Santa Brígida no calendário cristão. Por trás destas representações está uma feiticeira, filha de Dagda, divindade da fertilidade, com atributos de ensinar e de curar. O nome Brígida tem relação com "Brhati" (exaltação), em sânscrito. A outra festa se liga ao deus Lug, tendo um caráter agrário. Seus objetivos: garantir o amadurecimento das searas e a colheita. Não entra aqui a ideia de agradecimento, incompatível com a magia. Executado corretamente o cerimonial, a consequência natural seria o bom resultado. Lug, o de "longa mão", era um deus tribal, senhor de todas as habilidades. Nenhum mortal podia vê-lo. Possuía uma lança mágica que sempre encontrava o meio de atingir quem o ameaçasse. Seu arco era o arco-íris, sendo a Via Láctea, na Irlanda, chamada de a "cadeia de Lug". A cidade de Lyon, na França, chamava-se, antes, Lugudunum, em homenagem ao deus. O bem-estar da tribo dependia também do êxito ritual do rei. Más colheitas, epizootias e outras calamidades eram muitas vezes debitadas a um mau desempenho ritualístico real. O rei era o esposo mortal da deusa territorial da natureza.

Lug era chamado também de “O Brilhante”, pois seu grande festival se realizava no verão. O deus aparece ligado ao corvo (lugos é corvo, em gaélico). Esta ave está presente em muitas histórias celtas, parecendo também de modo destacado na mitologia escandinavo-germânica. Odin (Wotan dos germânicos), o maior dos deuses, tinha por companheiros dois corvos que lhe traziam todas as informações do universo, chamando-se um deles Hugin (pensamento) e outro Munin (memória).


MACHAS

Outro aspecto interessante da religião dos celtas era o do chamado tripleto ou triplicidade, isto é, uma mesma deusa ou deus apresentar-se sob uma forma trina, com três nomes diferentes (Morrigan, Babd e Nemain). Três Brígidas, três Machas e assim por diante. Estas deusas triplas são associadas às Matres ou Matronae romanas, portadoras de fecundidade. Entre as divindades masculinas, a tríade toma também várias formas. O número três era o símbolo do poder extremo de toda divindade. Entre os celtas, era o número sagrado, auspicioso, apontando-se aqui muitas analogias que poderiam ser feitas com o mundo védico.

DANA

No panteão insular céltico a figura da grande mãe tinha o nome de Dana, na Irlanda e de Don, na Grã-Bretanha. Ela acompanha Bile, que representa o grande pai, o Deus Pai. Os celtas se consideravam, assim, criaturas de Dana.


GOIBNIU OU GONAVAN

Goibniu ou Gonavan é uma espécie de Vulcano ou Hefesto, arquiteto de torres e construtor. Lud, filho de Don, tem semelhança com o Júpiter romano e dará nome à cidade em que foi mais honrado, Londres, na colina de Ludgate. Consta que a catedral de S.Paulo, em Londres, foi levantada sobre as bases de um antigo templo deste deus. Amaethon, outro irmão, era a divindade da agricultura. O deus civilizador é Gwydion, propagador das artes.


ARIANROD


Ogmios ou Ogme, deus civilizador e da eloquência, é considerado o inventor de um alfabeto que leva seu nome, "ogâmico". A única filha de Don é Arianrod (roda de prata), divindade tutelar da constelação da Corona Borealis. Arianrod lembra Ariadne da mitologia grega tanto por homofonia como pela relação que ambas têm com a referida constelação. Ariadne, como se sabe, abandonada por Teseu na ilha de Naxos, foi encontrada pelo deus Dioniso, que lhe deu um diadema, como presente de núpcias. Tal diadema foi depois colocado nos céus com o nome de Corona Borealis.


OGME OU OGMIOS

Luciano, retórico grego, do séc. II, consagrou um pequeno estudo a Ogme, por ele chamado de Ogmios. Aparece representado sob os traços de um velho enrugado, quase calvo, trazendo uma pele de leão e uma clava, o que lembra muito Hércules. Mas o poder deste Hermes céltico não estava no seu corpo físico. Correntes saíam de sua língua e se ligavam às orelhas dos que o escutavam, dando-nos esta imagem uma ideia de seu poder como deus da eloquência do discurso persuasivo. Os romanos davam o nome de argute loqui à grande capacidade que os celtas tinham de discursar.

Quase todos os personagens, deuses e heróis do mundo religioso celta foram evemerizados nos romances do ciclo medieval do rei Arthur, que forma o conteúdo principal da chamada matéria Bretã. Arthur é um chefe militar dos bretões que lutou contra o invasor saxão, por volta do século VI (500). Torna-se personagem lendário, representando o rei ideal que virá restabelecer o poderio bretão e reunir as tribos divididas. Celebrado por diversos bardos e poetas, o tema foi desenvolvido na França por Chrétien de Troyes, que criou uma versão menos "espetacular" da lenda. O ciclo romanesco, a que se dá o nome de A Conquista do Graal ou Lancelot-Graal, termina com A Morte do Rei Arthur (1215-1235), contribuindo para difundir a imagem do rei e de seus cavaleiros da Távola Redonda.


REI ARTUR E LANCELOTE


OS CELTAS CONTINENTAIS

A visão religiosa dos celtas continentais se concentra no mundo gaulês. As primeiras formulações gaulesas não passaram de um certo animismo, nem houve a rigor uma religião nacional na Gália. Por outro lado, uma dificuldade maior: a literatura religiosa era eminentemente oral. Os versos e cantos em que os sacerdotes druidas (os que vêem, os muito sábios) transmitiam as crenças religiosas praticamente se perderam todos, o que já não aconteceu com a matéria insular. O que é possível depreender do que restou, considerados os documentos que chegaram até nós, além de inscrições votivas e funerárias, permitem a conclusão de que os celtas continentais (Gália) partiram de um animismo primitivo e chegaram à antropomorfização de seus deuses.

Foram os romanos que deram o nome de “Gallia” a duas regiões ocupadas pelos celtas, a Gália cisalpina, aquém dos Alpes, e a Gália transalpina, ou Gália propriamente dita, situada além dos Alpes. Esta última compreendia as regiões situadas entre os Alpes, os Pirineus, o oceano Atlântico e o rio Reno, isto é, não somente a França atual como a Bélgica, a Suíça e a margem esquerda do Reno.

De início, há que se ressaltar o politeísmo regional, divindades ligadas a territórios, como no caso insular. Neste particular, destaque para a divinização das águas e dos lugares elevados, picos. Quanto às águas, o culto se estendia aos rios, fontes e nascentes. Os rios tinham nomes como Diva, Devona, Deva.

O deus Nemausus, por exemplo, tutelar da cidade de Nîmes, era a divindade de uma nascente. Bormanus, o borbulhante, era divindade das fontes termais. Muito significativa nesse mundo era a deusa Epona, sempre acompanhada de um cavalo; tem por atributos a cornucópia, uma taça de sacrifícios (pátera), e frutos diversos. Era a deusa da abundância agrícola e também do elemento líquido, correspondendo, num outro plano, à fonte do cavalo (Hipocrene) dos gregos. Ganhando presença, seu culto alastra-se pelo mundo romano, mas na forma de deusa protetora dos cavalos, colocando-se sua imagem nas estrebarias.

O culto das árvores tem muita importância como o atestam os nomes de várias divindades: Vosges, deus tutelar dos Vosges, cadeia montanhosa no nordeste francês, onde está a vertente ocidental da Floresta Negra; Ardvina, a deusa da região montanhosa das Ardennes (carvalhos); Ardnoba, deusa da Floresta Negra etc. No mundo vegetal, a árvore que sobrepujava a todas era o carvalho, a árvore das maiores divindades. Inúmeros ritos se realizavam tendo o carvalho como centro, sendo sua folhagem obrigatória em qualquer cerimônia religiosa. Outro destaque do mundo vegetal era o chamado gui, agárico, visco, parasita , símbolo da imortalidade, da regeneração e da sabedoria, colhido solenemente. Nessa cerimônia, depois do sacrifício de touros, o sacerdote colhia o  gui com uma pequena foice de ouro. Ainda hoje na Europa essa planta é muito procurada como amuleto.


COLHEITA DO GUI

O gui, entre os celtas, era considerado como remédio universal. Eles acreditavam que essa planta era semeada junto ao carvalho por mão divina. Daí atribuírem a ela a união entre a árvore dos deuses, e as verdades eternas, simbolizadas pelo dogma e pela imortalidade. O gui era colhido no inverno, quando o vegetal se tornava mais visível. Esse era o período em que seus ramos, suas folhas e os tufos amarelos de suas flores se enlaçavam com os galhos, apresentando uma imagem de vida eterna (verde) em meio a uma natureza morta e estéril.

A planta sempre simbolizou a imortalidade porque mantém o seu verdor eternamente, ao contrário dos vegetais com os quais se liga. É uma planta parasita, que pode aparecer junto de macieiras, de álamos ou de salgueiros. Mais raramente, excepcionalmente mesmo (ocasião sempre celebrada), o gui é encontrado junto de um carvalho chamado robur, rei dos vegetais, árvore dos oráculos, da força e da sabedoria.

No reino animal, as preferências iam para o cavalo, o corvo, o touro e o javali, considerados sagrados. Moedas, medalhas, nomes de cidades e inscrições comprovam a importância desses animais entre os celtas. Lugundum, cidade do deus Lug, estava ligada ao corvo (lugos, corvo). Havia a deusa Artio (artos, urso) entre os helvécios de Berna e um monstro que na forma de um urso, sentado sobre a cabeça de um homem, devorava-o pelo braço. Há figuras híbridas como a de uma serpente com cabeça de javali ou com chifres (Ogmios). O touro parece ter sido a divindade animal mais importante, como símbolo da força e do poder gerador. Entre os celtas sua imagem era às vezes apresentada de modo extravagante: dois grous sobre o seu dorso e outro sobre sua cabeça. É o chamado Tarvos trigaranus ( touro dos três grous), uma espécie de deus tricéfalo, provavelmente ligado ao deus Cernunnos.


CERNUNNUS


Ao lado das divindades regionais, territoriais, aparecem entre os celtas, talvez devido a uma "inspiração" romana, divindades como Teutatés (touta, povo), uma espécie de "pai do povo", Esus (senhor, ferocidade), Taran, deus das tempestades, dos raios, lembrando o "Júpiter Pluvius". No fundo, muitas dessas divindades incorporam traços de Marte, Apolo, Júpiter e Mercúrio. Este último tem seu duplo celta, o Mercúrio gaulês, em Ogmios, cuja parceira chamava-se Rosmerta.

ROSMERTA

Ogmios assimilou, inclusive, como se disse, traços de Hércules (pele de leão e clava). Correntes ligam simbolicamente sua língua às orelhas dos que o escutam. É o deus da eloquência, o que se harmonizava com a divisa gaulesa nacional, argute loqui.



Belisana (semelhante à chama) era a "Minerva" gaulesa, uma espécie de vestal protetora das artes e dos ofícios, funções que a aproximavam das deusas Sirona, o lado feminino de Borvo ou Belenus (esplêndido), o Apolo celta, e de Rosmerta, ligada a Ogmios. Chamava-se Sucellus um deus cabeludo e barbudo, que tinha por atributo o martelo e sempre junto dele uma taça para beber. Pelo nome que este deus tinha em outras regiões, Silvanus, chegou-se à conclusão de se trataria de uma divindade ligada às florestas, protetor das colheitas e dos animais, uma espécie de trabalhador da agricultura.

As matres, matronae, tríplices também como entre os celtas insulares, tomavam o nome principalmente das fontes locais. Como tal, simbolizavam a fertilidade, Geralmente eram figuras femininas robustas, coroadas, com os símbolos naturais da abundância, cornucópias, frutos etc. Ao lado delas, ninfas nas suas várias "especialidades", fontes, rios, árvores etc.; gênios protetores; Junones, divindades que não perdiam de vista seus fiéis; Proxumes, espécie de anjos da guarda; Tuteles, fadas, "damas brancas" etc., provavelmente sobrevivência do período neolítico. O que se nota é que o chamado paganismo primitivo deixou marcas profundas no mundo celta, fenômeno que ocorreria com o Cristianismo ao incorporar muitos traços celtas, como se pode notar em muitos dos centros de peregrinação, santuários e fontes milagrosas cristãos.

Referências especiais merecem as chamadas “damas brancas”, aparições vestidas de branco, pertencentes à categoria das fadas, entidades benfazejas ou maliciosas, arteiras. Estas entidades ainda hoje são mencionadas por terem se mostrado em certas regiões do interior dos países que saíram do antigo mundo celta. Há muitas histórias colecionadas sobre elas, principalmente na França. Segundo uma lenda muito divulgada, uma “dama branca” aparecia durante o Natal, no momento em que soavam as doze badaladas da meia-noite, nas ruínas do castelo de la Boursilière, perto de Châtenay-Malabry (Hauts-de-Seine). Contava-se que ela guardava um tesouro e que, nesse, momento ele poderia ser conquistado. Conta-se mais que essa “dama” se mostrava para que Blanche de Castille (rainha de França, séc. XIII; neta de Alienor da Aquitânia e mãe do rei São Luis) não fosse esquecida.

É de se mencionar ainda, quanto ao tema acima, que em 1825 foi apresentada La Dame Blanche, celébre ópera de François Adrien Boieldieu (curiosamente, nome de um personagem do famoso filme La Grand Ilusion, de Jean Renoir), inspirada em texto de Walter Scott, que tem por cenário o castelo de Avenel, na Escócia, onde a história se desenrola em torno de uma jovem órfã, que sabe onde, antes de morrer, a condessa de Avenel escondeu um tesouro.

OS DRUIDAS

Eram os druidas (os videntes, os do carvalho), que exerciam as funções de sacerdotes e juízes, oficiantes da magia e do ritual. Apresentavam, como classe, algumas semelhanças com a instituição bramânica da Índia védica. Os druidas eram recrutados entre as crianças da aristocracia guerreira. Antes dos romanos, que tinham os seus flamines e pontífices, a instituição druida apresentava alguma semelhança também com a classe sacerdotal dos povos italiotas.




Ao lado da atividade dos sacerdotes, quanto às ligações com o mundo sobrenatural, é preciso mencionar a dos poetas, os bardos, poetas cantores, e os vates, palavra que lembra inspiração, êxtase, atuando estes últimos como poetas e profetas ao mesmo tempo. Havia ainda uma corporação entre os celtas, de muito relevo nos primeiros tempos do Cristianismo. Eram os chamados filid (videntes), que tinham a capacidade de ver o invisível; o vate era aquele que sabia antes, o que tinha o maior poder da magia. O conhecimento era, pois, um modo de ver, visão que se conseguia através de transes, arrebatamentos. Uma forma deste arrebatamento estava associada ao sacrifício do touro, cuja carne consumida pelo druida levava-o a vaticinar. Este ritual era conhecido como o "sonho do touro". Tudo isto aproxima, sem dúvida, o druida do xamã da região nórdica euro-asiática.

Ao que parece, os druidas não se interessavam pelo pensamento especulativo de natureza filosófica, como o entendiam os pensadores gregos e romanos, nem administravam a ética tribal, limitando-se eles a velar por um comportamento ritual correto. Algumas exceções quanto a estes pontos que mencionamos podem ser contadas na ponta dos dedos, como é o caso do ilustrado Divicíaco, o druida amigo de Júlio Cesar e de Cícero. As ideias que os druidas tinham sobre a vida pós-terrena estão bem comprovadas por inúmeras provas arqueológicas: armas, ornamentos e comida para a viagem para o Além, inclusive para a festa celebrada quando da chegada da alma. A posição do druida na ordem jurídica tribal é demonstrada pela tradição de que mesmo o rei não poderia falar numa assembleia antes de ter o seu druida se pronunciado.

Por fim, há que se ressaltar a grande importância que nesse mundo tinha o conhecimento transmitido oralmente, de geração a geração. Essa prática era muito comum entre os povos indo-europeus, distantes da urbanização. O mecanismo da tradição oral se baseia na recitação de versos ritmados ou formas aliteradas de prosa. O ritmo predispõe certamente a estados que se aproximam do êxtase, mencionando-se, além disso, que com a prática, grande volume de conhecimentos poderia ser absorvido. Ainda mais: a voz é o instrumento natural da mensagem religiosa e a memória a sua mais fiel depositária. Pela tradição oral pode-se manter o sigilo do conhecimento, sempre de natureza esotérica. Aproximações entre a transmissão oral dos brâmanes na Índia e a dos druidas celtas podem ser feitas, pois em ambas a escrita não teve aceitação ritual. Com o Cristianismo, com os copistas dos mosteiros, a tradição oral celta perdeu o seu prestígio. Os exemplos que muitas vezes acompanhavam a transmissão oral foram esquecidos, já que o suporte da escrita, o texto, acabou por substituir o mestre, perdendo-se a presença humana do emissor, a sua visão, a sua autoridade.

Dentre as informações mais precisas que temos sobre os druidas cabe destacar aquelas que nos deixou Posidônio, séc. II AC, grego, estoico, que viveu em Rodes, em Roma, na África do Norte, na Gália e na Espanha. Erudito, teve como ouvintes Pompeu e Cícero. César, com base em Posidônio e em outras fontes, completou e ampliou tais informações. É de Cesar a notícia de que os druidas procuravam proteger a tradição oral do seu ensinamento, não permitindo o seu registro por escrito. Com isto, valorizavam não só a memória como meio de transmissão privilegiado como também não favoreciam a sua difusão, evitando que pessoas despreparadas se apoderassem dele.



César, nos seus comentários sobre as campanhas da Gália, com a propriedade de grande historiador, nos informa também que a doutrina ensinada pelos druidas afastava o temor da morte ao afirmarem eles que a alma era imortal (metempsicose). É também César que nos esclarece sobre os interesses científicos dos druidas: pesquisadores atentos dos astros e dos seus movimentos, seus conhecimentos astronômicos pareciam ser muito avançados; tinham calendários muito bem elaborados. Do mesmo modo, ao lado das crenças religiosas, dos mitos, dos encantamentos e das lendas, e do interesse científico, seu grande saber jurídico, veiculado oralmente, cabendo aos druidas ministrá-lo. À sua grande compilação jurídica davam os celtas o nome de Senchas Mar, isto é, a "memória acumulada dos antigos", também transmitida oralmente.


TRISTÃO E ISOLDA

A herança da literatura celta, que ainda sobrevive em alguns centros da Irlanda, do País de Gales e da França, principalmente, é a mais velha da Europa, logo depois da grega e da latina. Ela constitui uma espécie de fundo comum dos costumes daqueles tempos, daquela vida rural da antiga Europa, onde mergulham as raízes de vários países do velho continente. Daí, pois, a sua enorme importância para uma melhor apreciação da cultura europeia como um todo e, por isso, devendo merecer uma maior atenção do que aquela que até hoje lhe tem sido prestada.