sábado, 13 de agosto de 2011

BACHELARD E SARTRE

Ao lançar os fundamentos da sua psicanálise existencial em L'Être et le Néant, Sartre dedica uma parte do livro ao estudo da qualidade como reveladora do ser ou, como diz abaixo, de uma psicanálise das coisas. Em linhas gerais, Sartre retomava os ensinamentos de Gaston Bache1ard, principal mente os contidos em L'eau et les rêves e Psychanalyse du feu, para aplicá-los no desenvolvimento da sua teoria.

Assim é que para a psicanálise existencial, de acordo com idéias originais formuladas por Bachelard, a quali­dade material do objeto que queremos possuir são maneiras dis­tintas de representar o ser. O que pretendemos nesses objetos é um certo modo pelo qual o ser se revela a si mesmo e pode ser possuído. O vermelho, o azul, o sabor do tomate, o amarelo li­mão, por exemplo, não são considerados pela psicanálise existencia1 como fatos irredutíveis, nem, tampouco, o são as nossas preferências e aversões com respeito a essas qualidades. Antes de tudo, é preciso buscar o "significado" dessas qualidades para, então, se poder entender as preferências ou aversões. Somente desta maneira, diz Sartre, e não por considerações sobre a sexualidade (Freud) ou sobre a vontade do poder (Adler), conseguiremos explicar o gosto de certas pessoas. ­



O mesmo se poderá concluir das preferências de determinados escritores por certas metáforas. A fluidez da água em Poe, as imagens geológicas em Rimbaud, a "animalidade" de Lautréamont são preferências que simbolizam um modo de escolha do ser. Aliás, é bastante significativo o fato de Bachelard ter escrito, para ilustrar a sua teoria, ma excelente interpreta­ção da obra do autor de Chants de Maldoror, onde insiste particularmente no que chama de bestiário do poeta, e de Sartre ter pensado em escrever um lapidaire de Rimbaud.

A psicanálise existencial, pois, não considera apenas como irredutíveis as preferências pelas qualidades, coisas doces, amargas, viscosas etc., mas também surpreende nelas certos aspectos do ser, decorrendo daí que as preferências por uma ou outra podem ser vistas como escolhas fundamentais do ser, que caracterizam determinadas pessoas. Isto porque o homem é aquilo que prefere. Sartre completa: Vimos que a realidade humana bem antes de ser descrita como libido ou vontade do poder é escolha do ser, seja diretamente, seja por apropriação do mundo. E vimos que, quando a escolha se sustenta sobre a apropriação, cada coisa é escolhida, em última análise não por seu potencial sexual, mas pela maneira pela qual ela exprime o ser, pela maneira conforme aflora à sua superfície.

Catedrático da Sorbonne, membro do Instituto, a vida de Bachelard é uma das mais sérias demonstrações da ins­tabilidade e insatisfação que marcam a curiosidade dos espíritos verdadeiramente criadores. Ocupando-se inicialmente, a par da sua atividade de professor, da filosofia das ciências, mestre de matemática, física e química, Bachelard é um continuador da tradição de Leon Brunschivg e um renovador. Colocando­-nos diante de um emaranhado de relações, de transformações, de descontinuidades e de assimetrias, a ciência não é nem poderia ser para Bachelard uma procura de estabilidades. E como tal era radicalmente contrário a qualquer concepção simplista no método científico, pois ciência, dizia, é essencialmente relação, cadeia infinita de relações múltiplas e sutis.

Suas idéias, expostas inicialmente no livro Le Nouvel Esprit Scientifique, foram desenvolvidas mais tarde e sucessivamente em Le Rationalisme Appliqué, La Philosophie du non, L'Experiénce de l'espace dans la Philosophie con­temporaine, La Dialéctique de la durée e outras obras. Ra­cionalismo aplicado, ou, como ensinava, terminal e dialético, esclarecido, empirismo tecnológico, dialético também, ou materialismo racional ou ainda co-raciona1ismo, tais são os nomes pelos quais designou seu próprio método.Por volta dos 60 anos, em 1940, Bachelard come­çou a se preocupar pelos fenômenos poéticos e, desde então, munido de sólidos conhecimentos científicos, aos quais se aliavam um rigoroso espírito científico e um sentido estético extraordinário, passa a escrever importantíssimos ensaios so­bre o assunto: La Psychanalyse du feu, L'Eau et les rêves, L'Eau et les songes, La Terre et les revêries de la volonté, La Terre et les revêries du répos.

Maurice Canguilhem resumiu em três axiomas as linhas maiores do pensamento de Bachelard: o primeiro é relativo ao primado teórico do erro, "a verdade não é obtida total­mente senão ao fim de uma polêmica; não há verdade primeira; não há senão erros primeiros". O segundo diz respeito à de­preciação especulativa da intuição, "as intuições devem ser destruídas; o imediato deve dar lugar sempre ao concreto". O terceiro decorre dos antecedentes, "O objeto não existe senão na perspectiva de ideias múltiplas". Por aí se vê que Bachelard vai caracterizar a atividade mental por uma dupla ação de abstração e concretização. Cada noção precisa é uma noção que foi precisa. E porque é dialética a ciência é eterno diálogo, formando, no seu "corracionalismo", interconceitos que são os acontecimentos da razão. Assim, a viscosidade simbolizaria o ser em uma certa maneira. E não seria por analogia ou por projeção de nossos sentimentos em direção a essa qualidade que ela viria a adquirir um caráter simbólico. 

Para que fosse possível o estabelecimento de uma relação simbólica entre a viscosidade e a mesquinhez pegajosa tornou-se necessário, segundo Sartre, que já tivéssemos apreendido a mesquinhez na viscosidade e a viscosidade em certas formas da mesquinhez. Há para a psicanálise existencial uma espécie de vínculo entre a qualidade física da viscosidade a qualidade moral da mesquinhez, um vínculo que descobrimos, mas que não criamos. É como se surgíssemos num mundo onde os sentimentos e os atos estivessem dotados de materialidade e de certas qualidades, como viscoso, brando etc., bem como todas as substâncias materiais fossem dotadas de significações psíquicas que as fizessem repugnantes, hor­ríveis, atraentes etc.Às influências que Sartre sofrera de Heidegger e de Husserl junta-se a de Bachelard. 

Em seu livro L'Eau et les Rêves, Bachelard propõe uma distinção entre imaginação for­mal e imaginação material, constituindo-se esta última numa espécie de física e química de nossos sonhos (inclusive a fantasia dos poetas) que os compele a extrair suas metáforas de certos reinos da natureza. Para Bachelard, em todas essas imagens a matéria governa a forma. As coisas materiais teriam em si uma significação, um simbolismo que deve ser explicado em relação com a personalidade daquele que escolhe. 



Ao conside­rar, suponhamos, a poesia de Edgar Allan Poe, Bachelard con­clui que em suas metáforas há síntese de beleza, morte e água.Ainda que Sartre recuse o emprego do termo "imaginação" material, proposto por Bachelard, porque a psicanálise existencial não está interessada nas imagens ou metáforas,­ mas na explicação das coisas, vemos que o autor de L'Eau et les Rêves também se preocupa por uma significação material: as vozes da água são apenas metafóricas; a linguagem da água é uma realidade poética direta; os riachos e rios sonorizam, com estranha fidelidade, as mudas paisagens; a água sussurrante ensina aos pássaros e aos homens a cantar, a falar, a repetir; e há uma continuidade entre a palavra da água e a palavra do homem. Reciprocamente, insistimos no fato de que, originariamente, a linguagem humana tem uma liquidez...água nas consoantesAs divergências, se é que existem, são mais terminológicas. E é partindo de Bachelard que Sartre preconiza com vigor a necessidade de se aplicar a psicanálise não só às pessoas como também às coisas, ou seja, criar uma "psicanáli­se das coisas" com a finalidade de determinar a maneira pela qual cada qualidade, cada coisa e cada matéria é um símbolo objetivo do ser e a relação que ela mantém com o homem.


Quando dizemos, por exemplo, que o aperto de mão de um homem é "viscoso", ou quando falamos de um sorriso "viscoso, poderá parecer que estamos usando uma metáfora. Sartre responde que, muito ao contrário, a viscosidade, como qual­quer outra qualidade, é uma natureza objetiva, “que não é nem material (e física) nem psíquica, mas que transcende a oposi­ção do psíquico e do físico ao revelar-se como a expressão ontológica do mundo em sua totalidade".Assim, a viscosidade simbolizaria o ser em uma certa maneira. E não seria por analogia ou por projeção de nossos sentimentos em direção a essa qualidade que ela viria a adquirir um caráter simbólico. 

Para que fosse possível o estabelecimento de uma relação simbólica entre a viscosidade e a mesquinhez pegajosa tornou-se necessário, segundo Sartre, que já tivéssemos apreendido a mesquinhez na viscosidade e a viscosidade em certas formas da mesquinhez. Há para a psicanálise existencial uma espécie de vínculo entre a qualidade física da viscosidade a qualidade moral da mesquinhez, um vínculo que descobrimos, mas que não criamos. É como se surgíssemos num mundo onde os sentimentos e os atos estivessem dotados de materialidade e de certas qualidades, como viscoso, brando etc., bem como todas as substâncias materiais fossem dotadas de significações psíquicas que as fizessem repugnantes, hor­ríveis, atraentes etc. 

Estamos diante de um simbolismo universal ilimitado, que se expressa em nossas preferências e repulsões por estes ou aqueles objetos, cuja materialidade é significativa em si. Se decidimos que um sentimento é viscoso ou amargo, diz Sartre, não se trata de uma imagem, de uma metáfora, e sim de une connaissance, um conhecimento. Depreendemos facilmente de tais considerações o profundo simbolismo do viscoso na filosofia e na obra sartreana. Se Sartre escolheu o viscoso para demonstrar sua psicanálise existencial, é porque o viscoso simboliza a náusea e por que a fluidez da água é o símbolo de nossa consciência, de nossa liberdade. Ainda mais: porque qualquer diminuição desta fluidez, seu estancamento e crescente solidificação no pegajoso da viscosidade é símbolo de nossa prostração na "coisificação" perda de nossa liberdade e de nossa condição humana. Por outro lado, a "coisificação" não encontraria melhor símbolo do que na solidez e dureza da pedra. É o que expressam os personagens de Sartre toda vez que demonstram desejo de quietude, de estagnação, que envolve os objetos inanimados. Desejam sempre tornarem-se duros como pedras; Mathieu, em Le Sursis, queria fundir-se com a pedra da balaustrada do Sena e Daniel sonhava em converter-se numa figura de pedra, numa estátua de olhos brancos, incapaz de som, cega e surda.


Publicado em A Tribuna (pág. Literatura, Artes, Cultura), 31/3/1963.