segunda-feira, 18 de julho de 2011

CALUNDU & SPLEEN


Calundu é palavra usada para caracterizar estados de ânimo em que se alternam irritação, mau humor, agastamentos breves, amuos e caprichos inexplicáveis. O comportamento de uma pessoa vitimada pelo calundu, se não chega abertamente ao antissocial, torna sempre muito difícil a sua convivência com outras pessoas. Tais estados de ânimo, embora nem sempre equivalentes, costumavam ser descritos popularmente por expressões como “estar com o miolo ralado , “estar com o diabo no corpo”, “acordar de ovo virado”, “estar de Lua” e várias outras.


Pelos depoimentos literários que nos deixaram escritores do Brasil colonial, os ataques de calundu punham as pessoas malcriadas, respondonas, quando não totalmente imprevisíveis, desagradáveis no trato. Quanto a crianças, difícil aturá-las. Era preciso muita paciência, como se dizia, para não perder a paciência com elas. Esse comportamento infantil era considerado por muitos tão só como “falta de educação”, malcriadez, algo que umas boas palmadas poderiam resolver logo. A palavra calundu fazia então parte do vocabulário de um mundo familiar quotidiano, mais no nordeste, hoje desaparecido. Em certas áreas do território brasileiro onde a influência africana foi mais forte, do Rio de Janeiro para cima, ainda é possível encontrar pessoas usando a palavra.

As maiores vítimas do calundu sempre foram as crianças e as mulheres. Uma explicação:
desde a antiguidade, em muitas outras civilizações, esse comportamento cheio de caprichos sempre foi atribuído a influências lunares. Capricho, como se sabe, é vontade repentina sem justificativa, mudança súbita de comportamento, algo visto do lado da extravagância, da cisma, da veleidade, da birra. Além do mais, lembre-se que a palavra capricho vem da palavra latina capra, reconhecidamente um animal lunar, inquieto, sempre em movimento, e, como tal, ligado ao signo astrológico de Câncer, governado pela Lua.

A Lua, desde tempos imemoriais, sempre apareceu associada à umidade, ao crescimento orgânico da natureza, agindo, segundo as suas fases, sobre a vegetação, a vida animal e o movimento das marés. Possuindo o ser humano, proporcionalmente, tanta água em seu corpo quanto o planeta Terra, cerca de 72%, constataram os antigos, com facilidade, pela lei da correspondência, o quanto a Lua age sobre a saúde humana e as emoções.

A influência da Lua sobre os ritmos biológicos é um fato, embora a chamada ciência oficial do Ocidente considere a tese sob grande reserva. Esta prevenção pode ser explicada pela observação de que toda a ciência ocidental foi e continua sendo construída sobre a ideia da temporalidade solar. Com efeito, nosso calendário é gregoriano, solar. Além disso, não é por acaso que o Sol é o símbolo maior das religiões patriarcais. Lembre-se que os antigos gregos tinham um verbo, seleniadzein para designar a ação da Lua sobre pessoas mais sensíveis (os chamados lunáticos), ação que, em muitos casos, podia levar a comportamentos incoerentes, extravagantes, doentios.

O termo calundu, na origem, quando da vinda dos africanos para o Brasil, designava apenas certas cerimônias de caráter religioso, acompanhadas de canto, dança e batuque. Essas cerimônias eram frequentadas por negros escravos que nelas procuravam orientação sobre a sua vida, sobre o seu destino nas novas terras em que haviam passado a viver. Quem lhes dava as informações era uma espécie de medium, às vezes chamado de feiticeiro. Possuído por entidades sobrenaturais, espíritos, o medium mergulhava num transe, chegando às vezes ao desmaio. Ao voltar, recuperando a consciência, respondia então às perguntas que lhe haviam sido feitas..

A palavra calundu é de origem africana, kulundu, nome que se dá aos espíritos ou entes que, invadindo o corpo de alguém, mergulhando-o num transe, o tornava ora sorumbático, ora nostálgico, triste ou irritado, neurastênico, cheio de arrufos. Era durante essa “invasão” que o medium fazia uma viagem à África, trazendo de lá as respostas que daria aos que o consultavam. Desse contexto saiu a palavra para ser aplicada a pessoas que pareciam ter sido possuídas por esses espíritos ou entes que baixavam nessas cerimônias.

Desde o século XVII, temos registros dessas cerimônias no Brasil entre os escravos africanos. Esses registros estão nos autos do Santo Ofício da Inquisição, o tribunal eclesiástico instituído pela Igreja católica desde o século XIII (até o inicio do século XVIII) com a finalidade de averiguar e julgar sumariamente os pretensos hereges e feiticeiros acusados de crimes contra a fé católica. A Inquisição, como se sabe, combateu e perseguiu de modo especial em todo o mundo católico três grupos raciais: judeus, negros e ciganos. No Brasil, não tivemos propriamente a instalação desses tribunais, mas a ação de seus emissários, representantes, que aqui começaram a aportar desde fins dos anos de 1.500. Os visitadores, como eram chamados, formavam um grupo de três: o visitador propriamente dito, o notário (amanuense, escrevente) e o meirinho (funcionário da Justiça). Eles podiam usar o segredo e a tortura no seu trabalho.
O BOCA DO INFERNO

Outros documentos que comprovam a existência das cerimônias do calundu entre os escravos são os registros das visitas que os bispos faziam então (durante o período colonial), a várias cidades brasileiras, em parceria com o poder policial, para averiguar a fé popular. Uma terceira fonte que nos indica que as práticas do calundu eram comuns está em alguns textos literários como, por exemplo, na obra do baiano Gregório de Matos (1633 – 1696), o famoso Boca do Inferno, historicamente o primeiro e um dos maiores poetas brasileiros do período colonial.

OS MISTÉRIOS DE ELÊUSIS (ORGIA)

Chamavam-se calunduzeiros os negros que se entregavam às práticas mencionadas. Com o tempo, porém, passaram as cerimônias a ser frequentadas também por brancos, que queriam “saber” de suas vidas. Faziam parte dos rituais o cozimento de certas ervas, usadas em beberagens neles servidas; havia música, batuques e danças, sendo exigido o uso de roupas especiais, de preferência brancas. A música e a dança tinham um caráter orgiástico, dionisíaco, levando os participantes e, principalmente, a figura mais importante do grupo, o medium, a uma espécie de êxtase que lembrava muito o que ocorria nos mistérios de Elêusis da antiga Grécia.

Recobrando os sentidos, o feiticeiro era capaz de responder às perguntas que lhe haviam sido feitas. Dizia-se que durante o transe e perdidos os sentidos ele era capaz de visitar a sua terra natal, a África, de onde traria as desejadas respostas. Ao final da cerimônia, o calunduzeiro também aliviava os que o haviam procurado, deles retirando o mal que os afligisse, o feitiço, lançando-o depois na água corrente. Todo terreiro de calundu estava situado perto de um rio ou riacho. Afasta-me da água corrente e da língua de má gente, dizia um ditado popular. As cerimônias do calundu, assim realizadas, seriam, numa perspectiva histórica, anteriores ao candomblé, originando-se este, para alguns estudiosos, daquelas.

De fins do século XVIII em diante, o primitivo sentido de calundu (cerimônias secretas de escravos em que se evocavam espíritos e se faziam adivinhações, tudo em meio a muita dança e música) foi se perdendo, muito contribuindo para isto a perseguição religiosa e policial. A palavra calundu foi tomando então o sentido que apontamos no início deste trabalho. A maior responsabilidade por esta mudança deve ser creditada, porém, a uma fantástica figura da história do Brasil, pouco citada, não muito entendida, a chamada “escrava concubina” por alguns historiadores. Era ela uma mucama, nome dado no Brasil e na África portuguesa, à escrava ou criada negra, geralmente jovem, que vivia mais próxima dos senhores, ajudando nos serviços caseiros, tomando conta de crianças, inclusive como ama-de-leite, e acompanhando a dona da casa em passeios. Foi ela, sem dúvida, no nosso período colonial, a grande responsável por essa alteração semântica

Foi nas casas grandes, nas sedes dos engenhos, nos grandes sobrados coloniais que o primitivo sentido de calundu se perdeu, passando aos poucos, assim alterado, para a linguagem coloquial do povo brasileiro. O quadro era conhecido: a criança que não queria dormir ou que tivesse o famoso mau olhado, cheia de manhas, birrenta, que vomitasse inexplicavelmente, estava com calundu, era o “diagnóstico” entendido da escrava concubina. Quem era ela? Era a escrava que inclusive dormia com o senhor da casa; jovem e bonita, escolhida com muito cuidado: cuidava das crianças e tinha lugar no leito do senhor da casa, muitas vezes à frente da esposa oficial.

Além das crianças, as maiores vítimas do calundu eram as mulheres casadas. Submissas, desprezadas, indispostas sempre, presas geralmente a um casamento infeliz, elas “ficavam” facilmente com calundu. Ressaltemos que o calundu nas mulheres tem muito a ver com aquele período que antecede o fluxo menstrual. Um antigo nome da menstruação, aliás, era catamênio, etimologicamente descida da Lua Da meia idade em diante, porém, raros os registros desse comportamento em mulheres. Se as encontrássemos nesse estado, seriam elas invariavelmente as mal humoradas solteironas. Quanto ao mundo masculino, o calundu não faz parte dele. Os nossos trezentos anos de história colonial o comprovam. Por que? O calundu é sobretudo infantil, feminino, lunar, já que as crianças e mulheres sempre foram consideradas, como se disse, as mais afetadas pela ação da Dindinha Lua. Os estados de ânimo descritos pelo calundu não encontram uma justificativa plausível, racional. Ele lembra instabilidade, oscilação, imaginação, caprichos, impulsos ocasionais, repentinos, sem justificativa, acessos súbitos, coisas lunares... Não é por acaso que a moderna psicologia (Jung) dá o nome de anima ao aspecto lunar, feminino, do inconsciente masculino, onde se aloja tudo o que, do lado dos sentimentos e emoções, é vago, impreciso, quimérico, intuitivo. Tudo isto não faz mais do que confirmar um antigo adágio astrológico:  A Lua não se “explica”, é algo que apenas se sente.

Os estados afetivos penosos que o ser humano experimenta, de difícil ou impossível definição ou entendimento, que o colocam numa situação expectante, diante da qual ele se julga indefeso, têm três estágios. O primeiro deles é a inquietação, o segundo é a ansiedade e o terceiro é a angústia. Enquanto a ansiedade é pessoal, tem um objeto, fixa-se em algo (a pessoa ouve falar ou lê algo que a “incomoda” realmente; outros que ouvem a mesma coisa nada “sentem”), a inquietação vive à procura de um pretexto, de uma justificação para se apresentar. O calundu é da esfera da inquietação, tudo é pretexto para que um caso seja criado. É, por isso, vago, indistinto, incerto.

O calundu costuma se manifestar em pessoas cujas estruturas de comportamento e defesas habituais se tornam inadequados para responder a mudanças no seu quotidiano, como a alteração de certos hábitos, mudanças de horário, introdução de alguma disciplina nova, contacto com pessoas diferentes, estranhas etc. O calundu é imprevisível, ficamos desnorteados diante dele, tudo é pretexto para que ele seja manifestado; já a ansiedade não, ela tem sempre um objeto determinado.

A ansiedade, ao contrário do calundu, percebe o seu objeto. O ansioso a capta nos fatos, nos acontecimentos, na realidade em que vive, esta muitas vezes deformada, aumentada, e falsamente interpretada. A ansiedade se liga a objetos, apóia-se em motivos, encontrando neles a sua justificativa. Cada ansioso tem os seus temas prediletos. Já a inquietação, ou seja, o calundu, faz com que a sua vítima se aproveite de qualquer motivo para justificá-la. O calundu é flutuante, tremendamente lunar.

Embora certos traços da saudade ou da nostalgia (solidão, melancolia) possam aparecer também no calundu, nela não encontramos um dos seus grandes componentes, a irritação, o mau humor explícito. A saudade e a nostalgia, se as examinamos mais de perto, notamos que elas têm um objetivo, fixam-se em algo definido. A saudade (solitas, atis, do latim, solidão, desamparo) se prende a um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de alguém, de um lugar. A palavra saudade nos remete a uma ideia de uma unidade separada do resto, de isolamento. A saudade se aplica mais a pessoas do que a lugares.

A melancolia (do grego, bile negra) atua no plano da tristeza, da prostração. Seu nome vem de um mal físico, ocasionado pelo excesso da bile, substância amarga e escura secretada pelo fígado, que gera esses estados, tornando a pessoa sorumbática, macambúzia (etimologicamente, pastor que fica isolado no alto da montanha), geniosa. Se a saudade se define pelo sentimento de ausência de certas experiências ou pela impossibilidade de reviver certos prazeres, a nostalgia (do grego, nostos, regresso, retorno, e algia, dor, palavra criada em fins do século XVIII pelo médico suíço Harder) é comumente entendida como uma forma de melancolia profunda, tristeza, causada pelo afastamento da terra natal ou do ambiente familiar (mal du pays, como dizem os franceses). Saudade, portanto, mais para pessoas; nostalgia mais para países, cidades ou lugares. Ambas podem ser acompanhadas de distúrbios de comportamento e de somatizações. De um modo geral, saudade aplica-se mais para o sentimento de incompletude com relação a pessoas e nostalgia para o mesmo sentimento, mas com relação a lugares, ambientes, como a aldeia, a cidade natal, a pátria. Dentre os grandes livros que tratam da nostalgia talvez nenhum como o , de Antonio Nobre.

Uma das formas extremas da nostalgia, o banzo, nós a encontramos entre os africanos escravizados. O banzo (mbanzu, em línguas africanas, é pensamento, no sentido de ideia fixa), um processo psicológico causado pela desculturação, que levava os negros, vivendo longe de seu mundo, a um estado onde simultaneamente se notavam excitação, impulsos destrutivos e, depois, aos poucos, tendências à apatia, à inanição e, em certos casos, à loucura e à morte. O negro vitimado pelo banzo não pensava noutra coisa senão na pátria, na terra natal.

O entendimento do nosso calundu se fixará melhor se o aproximarmos da palavra spleen da língua inglesa, lexicografada pelos franceses, para descrever estados de ânimo muito semelhantes. Spleen vem de splen palavra que os gregos usavam para designar o baço, glândula esponjosa que se situa na região abdominal, abaixo do diafragma, atrás do estômago, cuja função é a de exercer um papel regulador na circulação sanguínea, desintegrando os glóbulos vermelhos velhos, sendo por isso chamada de cemitério das hemácias inúteis.  No baço se dá uma troca; desfazemo-nos das hemácias inúteis e obtemos as novas. Astrologicamente, o baço é de Marte. O baço era para os antigos a sede dos humores negros, geradores de uma melancolia sem causa aparente, caracterizada, no século XIX, por uma espécie de desgosto por qualquer coisa, na expressão do poeta francês Alfred de Vigny, um mal estar, uma irritação, uma coisa que se sentia mas que não se sabia o que era.....

ALFRED DE VIGNY

                                           O baço é simbolicamente o início e o fim da força vital. Os antigos gregos atribuíam às suas disfunções a origem do mau humor, da raiva, da insatisfação, do temperamento irritadiço,
a disposição para a provocação de atritos e de querelas por nada. Gente que tem o baço ruim cria caso por nada. O baço é um lugar de energia; por isso, na luta de boxe é o órgão mais visado; bater no baço para minar a energia do outro. Entre os chineses, por exemplo, o baço está relacionado com a energia yin com o equinócio da primavera (Áries), simbolizando a versatilidade, a mobilidade, como a dos humores que não se fixam jamais, causadores de comportamentos que oscilam entre a excitação, a exasperação, a indiferença e a depressão.

Na Astrologia, em todas as tradições, o baço sempre esteve relacionado com os princípios lunar e marciano, já que neles se concentram a morte e o renascimento dos glóbulos vermelhos. Desde a antiguidade, o baço esteve ligado às paixões, inclusive às do sexo. O riso, mais a gargalhada, é da esfera do baço. Plínio, o Velho (23-79), naturalista romano, autor da famosa História Natural, vasta enciclopédia do conhecimento de seu tempo, já apontava essa relação: pessoas que tinham problemas no baço (grande, inchado) costumavam rir escandalosamente. Fazem parte do baço também, na visão dos antigos, a malícia, a impetuosidade, o temperamento orgulhoso e os caprichos, astrologicamente uma relação muito próxima entre a Lua e Marte.

Entre o fim do século XVIII e meados do século XIX, período marcado pela descoberta de dois planetas transaturninos, Urano e Netuno, grandes transformações sociais, políticas e econômicas geraram novas formas de viver. Na arte, essas novas formas de ver e viver o mundo tomam o nome de Romantismo, que se caracterizava pelo abandono da razão clássica, da atitude racional diante da vida e por um componente fortemente feminino quanto à sensibilidade. No seu lugar, agora, a imaginação e a emoção, a exaltação inquieta e orgulhosa do eu pessoal, mergulhado na vaga das paixões. Ao mesmo tempo, o abandono da ordem, da regularidade monótona, do regrado e do fixo. No fundo, era algo muito semelhante ao nosso calundu, tratado à européia, agora com status literário, com o nome de spleen que o Romantismo punha em circulação como literatura.

No século XIX, um dos “males” abordados pelo Romantismo foi o chamado mal du siécle uma mudança da sensibilidade no campo das artes como apontamos, que, no fundo, era uma tradução “superior” daquilo que o homem comum sentia num plano muito pessoal e imediato. O artista romântico não se dava bem em lugar nenhum, achava tudo desinteressante, irritava-se com frequência. Essa nova maneira de sentir o mundo era uma inquietação inexplicável, feminina, que escapava de qualquer administração masculina, solar, não entendida racionalmente. Ela tornava o herói romântico um ser inadaptado, solitário, contraditório, atormentado por uma culpa cuja causa lhe era desconhecida, prendendo-o a um grande desgosto de viver.

Uma das melhores descrições desse mal nós a encontramos numa grande figura da literatura francesa na passagem do século XVIII para o XIX. Referimo-nos a Mme. De Staël (Germaine Necker), que viveu entre 1766 e 1817 e aos textos que fazem parte da sua obra De l’Allemagne. Napoleão a queria com ele, fazendo parte da sua entourage; ela, porém, não o suportava, indo, por isso, se refugiar na Alemanha, de onde passou a escrever regularmente para os seus amigos franceses, dando-lhes notícia sobre a nova sensibilidade do tempo, uma profunda análise do que então pioneiramente produzia o romantismo alemão.

Em 1869, aparecia na França um livro estranho, cujo tema escapava de todas as classificações literárias até então usualmente admitidas. Esse livro chamava-se Spleen de Paris, de Charles Baudelaire, pequenos poemas em prosa, “uma tentativa de adaptar a uma prosa musical, sem ritmo e sem rima, os movimentos líricos da alma”. Ele captou esses “estados lunares” e os transformou em poemas, onde não havia nem ritmo, nem prosa. Baudelaire, com esse livro, trazia para o primeiro plano da literatura questões novas: a das misteriosas correspondências entre o mundo das sensações e o universo suprasensível. Preparava-se o clima para o aparecimento de Freud. Com o poeta, a poesia deixava de ser descritiva, grandiloquente, para se tornar musical, encantatória, irracional, simbólica, lunar. Não é por outra razão que o primeiro “poema” de Spleen de Paris é L’Étranger. Nele, o poeta renega tudo, a família, a pátria, a beleza, o ouro, para amar “as nuvens, as nuvens que passam ao longe, longe, longe, as maravilhosas nuvens.” Lembremos (para os astrólogos) que o planeta Netuno acabara de ser descoberto (1846), e, vindo, com ele, o impressionismo na pintura, o socialismo na política e o simbolismo na poesia e na música. Netuno é, como se sabe, o arquétipo da dissolução universal, do apagamento de fronteiras, da adesão sem medidas, da confusão do eu como o não-eu.


Dizia Baudelaire sobre a sua obra: Descontente de todos e descontente de mim mesmo, desejaria me resgatar e me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite... Senhor, meu Deus! Dai-me a graça de produzir alguns belos versos que provem a mim mesmo que não sou o último dos homens, que não sou inferior àqueles que desprezo. Depois de Spleen de Paris, a literatura francesa mudou. Tudo o que se fez de bom na poesia tem um débito, maior ou menor, com o Spleen baudelairiano. Do poeta, para os que puderem conferir, aqui vai (em francês para para que não se perca a sua musicalidade) o poema Les Bienfaits de la Lune:

La Lune, qui est le caprice même, regarda par la fenêtre pendant que tu dormais dans ton berceau, et se dit: «Cette enfant me plaît. Et elle descendit moelleusement son escalier de nuages et passa sans bruit à travers les vitres. Puis elle s'étendit sur toi avec la tendresse souple d'une mère, et elle déposa ses couleurs sur ta face. Tes prunelles en sont restées vertes, et tes joues extraordinairement pâles. C'est en contemplant cette visiteuse que tes yeux se sont si bizarrement agrandis; et elle t'a si tendrement serrée à la gorge que tu en as gardé pour toujours l'envie de pleurer.

Cependant, dans l'expansion de sa joie, la Lune remplissait toute la chambre comme une atmosphère phosphorique, comme un poison lumineux; et toute cette lumière vivante pensait et disait: «Tu subiras éternellement l'influence de mon baiser. Tu seras belle à ma manière. Tu aimeras ce que j'aime et ce qui m'aime: l'eau, les nuages, le silence et la nuit; la mer immense et verte; l'eau informe et multiforme; le lieu où tu ne seras pas; l'amant que tu ne connaîtras pas; les fleurs monstrueuses; les parfums qui font délirer; les chats qui se pâment sur les pianos, et qui gémissent comme les femmes, d'une voix rauque et douce!

Et tu seras aimée de mes amants, courtisée par mes courtisans. Tu seras la reine des hommes aux yeux verts dont j'ai serré aussi la gorge dans mes caresses nocturnes; de ceux-là qui aiment la mer, la mer immense, tumultueuse et verte, l'eau informe et multiforme, le lieu où ils ne sont pas, la femme qu'ils ne connaissent pas, les fleurs sinistres qui ressemblent aux encensoirs d'une religion inconnue, les parfums qui troublent la volonté, et animaux sauvages et voluptueux qui sont les emblèmes de leur folie.

Et c'est pour cela, maudite chère enfant gâtée, que je suis maintenant couché à tes pieds, cherchant dans toute ta personne le reflet de la redoutable Divinité, de la fatidique marraine, de la nourrice empoisonneuse de tous les lunatiques.