domingo, 11 de março de 2012

ORFEU OU O FRACASSO DE UM PROFETA


Filho da mais importante das Musas, Calíope (fig.dir.), a de bela voz, e do deus-rio Eagro, Orfeu aparece na mitologia grega ligado ao canto, à música, como a principal figura de uma família mítica de inventores de gêneros musicais e de instrumentistas excepcionais. Pelo lado materno, era neto de Mnemósina (fig.esq.), a deusa da memória, e de Zeus, que com ela teve as nove irmãs, as Musas, nome que significa tanto instruir como fixar. As Musas nasceram para celebrar condignamente a vitória dos olímpicos sobre os titãs. Pelo lado paterno, Orfeu era neto do deus Oceano e de Tétis (fig.dir.), ambos da família dos titãs. O primeiro era o grande rio-serpente que circundava o globo terrestre. A segunda, sua irmã, personificava a fecundidade feminina do mar.

MUSAS

Servidoras dos artistas, participando às vezes do séquito de Apolo, vivendo no monte Helicon, junto da fonte Hipocrene, cujas águas favoreciam a inspiração poética, as Musas eram nove: Calíope presidia a Poesia Épica, Clio a História, Érato a Lírica Coral, Euterpe a Música, Melpômene a Tragédia, Polímnia a Retórica, Talia a Comédia, Terpsícore a Dança e Urânia a Astronomia.

Pela importância que os gregos davam à poesia épica, Calíope era considerada como a mais importante das Musas. Segundo o maior número de versões, Calíope era mãe de Orfeu, de Iálemo, de Himeneu e de Lino, os três últimos nascidos de sua união com Apolo. Algumas variantes a consideram também como a mãe das Sereias, as cruéis cantoras. Da sua biografia consta também que arbitrou, juntamente com Zeus, a disputa que Perséfone e Afrodite travaram pela posse belíssimo Adonis (fig.esq.), deus da vegetação.

Pelo lado paterno, Orfeu era, como está acima, filho de um deus-rio. Os rios, na Grécia antiga e em muitas outras tradições, lembremos, pela sua correnteza são uma imagem do fluir universal e, como tal, da impermanência de todas as coisas, da sua incessante mudança. Num sentido positivo, os rios simbolizam a fertilidade (a irrigação das terras) e a renovação (o fluir das águas). Negativamente, porém, podem representar a morte (inundação, afogamento, absorção).


Os gregos veneravam os rios como filhos do deus Oceano e pais das ninfas potâmidas. Em tempos muitos remotos eram oferecidos a eles sacrifícios de animais (touros e cavalos, sobretudo). Venerados, respeitados e temidos, os rios só podiam ser atravessados por aqueles que previamente se tivessem purificado. Hesíodo dizia que quem atravessasse um rio sem esse cuidado atrairia sobre si a cólera divina. Etimologicamente, o nome Eagro é uma combinação de duas palavras: ovelha (ois) e perseguir (agreuein), ou seja, o que oferece perigo às ovelhas, o que ameaça o rebanho.

Iálemo (fig.dir.), etimologicamente lamento fúnebre, era irmão de Orfeu por parte de mãe apenas, sendo o pai, como se disse, o deus Apolo, na condição de deus da harmonia. O canto fúnebre, chamado threno pelos gregos, entoado sobretudo nas exéquias daqueles que morriam jovens era uma criação de Iálemo. Sua finalidade era a de orientar a alma (psikhe) na sua catábase para o Hades. Era uma melopeia acompanhada das lágrimas dos que o contavam, tendo um tríplice objetivo: consolar os vivos, celebrar as virtudes do morto e garantir que ele seria eternamente lembrado enquanto um parente próximo seu existisse. Iálemo foi o inventor desse gênero poético e a primeira peça que compôs foi dedicada a Lino, seu desditoso irmão.

Lino é nome que lembra etimologicamente canção triste e melancólica, interjeição dolorosa pela morte de alguém. Nos mitos beócios (interior da Grécia, região de camponeses), Lino passa por ter sido o inventor do ritmo e da melodia, além de ter fixado o alfabeto fenício e de ter dado a cada letra o seu nome. No período clássico, foram atribuídos a ele tratados filosóficos, ocultistas e místicos. A versão mais aceita sobre a sua morte é a de que Hércules, num assomo de raiva, quando por ele advertido numa aula de música, o teria assassinado.

HIMENEU

Quanto a Himeneu, seu nome parece provir de uma aglutinação de palavras gregas que significam película, membrana, união, laço e grito. Ou seja, o rompimento de uma membrana no dia do casamento e os gritos para a invocação do deus. Neste sentido é a divindade do cortejo nupcial e, como tal, a personificação da canção entoada nessa cerimônia.

Numa outra versão, a história de Himeneu é fruto de um processo de evemerização (fato histórico que se transforma em mito), como a seguir se conta. De feições muito delicadas, Himeneu às vezes tomado por uma bela jovem, muito feminino, teria sido um pobre adolescente que se apaixonou por uma jovem eupátrida. Não conseguindo torná-la sua esposa, seguia-a para onde quer que ela fosse, como sua sombra. Para ficar perto dela, certa vez, adotou um disfarce feminino, juntando-se a um grupo de nobres donzelas que saíram de Atenas em direção de Eleusis para participar dos Mistérios que lá se realizavam. Atacados por um bando de malfeitores, foram todos raptados, inclusive Himeneu. A finalidade do rapto era a de vender as jovens como escravas. No meio do caminho, porém, numa praia, todos cansados, raptores e raptadas dormiram. Com muita coragem, então, Himeneu disso se aproveitou para matar todos os bandidos. Ao voltar para Atenas com as jovens, conseguiu se unir àquela que amava.

AFRODITE


Por causa deste feito, que exigiu uma longa travessia de barco para o devido retorno a Atenas, Himeneu passou depois a ser conhecido também pelo nome de Thalassios, sendo aos poucos divinizado como o protetor dos direitos do casamento. Nesta condição, foi levado a se tornar companheiro de Eros e de Afrodite, passando a ser honrado especialmente no monte Helikon, onde viviam as Musas, na Beócia. Há uma versão do mito que nos conta que ele perdeu a sua voz e mesmo a sua vida quando participou do casamento de Dioniso com Ariadne.

Orfeu, nome que lembra privação, falta, carência, orfandade, conforme seu mito nos conta, teria nascido na Trácia. Além de poeta, músico e cantor, era considerado como o inventor da cítara e da lira, instrumentos que têm relação com a harmonia cósmica através dos números sete, número da ordem e da organização do espaço, e do número nove, que, no Orfismo, define os aspectos simbólicos do universo, divididos em três tríades: 1) A Noite, o Céu e o Tempo; 2) O Éter, a Luz e os Astros; 3) O Sol, a Lua e a Natureza.

De voz excepcional, Orfeu a todos e a tudo encantava, os humanos, os seres do mundo vegetal e animal, as rochas, inclusive os deuses. As árvores se inclinavam para ouvi-lo, as bestas selvagens se acalmavam, os humanos se enterneciam, os deuses o admiravam, mesmo as rochas eram sensíveis ao seu canto.

CIBELE

Educador dos belicosos trácios, percorreu todo o mundo antigo, iniciando-se nos mistérios das mais antigas tradições, de Ísis (fig.dir.), de Cibele, dos Cabiros, da Samotrácia e de Eleusis. Da sua história, consta que participou da expedição dos argonautas com o objetivo de ajudar os heróis que nela se engajaram, dando-lhes não só o ritmo dos remos como encobrindo com a sua maravilhosa música o canto das suas sedutoras primas (filhas de Melpômene), as Sereias, que levavam quem as ouvisse à perdição.


Ao voltar da expedição dos argonautas, Orfeu divulgou na Grécia a ideia de que os crimes e as faltas que os homens cometessem poderiam ser expiados. Para isso, os humanos deveriam participar dos mistérios por ele criados, sob o nome de Orfismo, sendo prometida inclusive a imortalidade a quem nele se iniciasse. Foi nessa oportunidade que se uniu à dríada Eurídice (a de grande justiça), a quem considerava como a sua alma.

Himeneu foi convocado para abençoar com a sua presença a união de Orfeu com Eurídice. Não levou contudo bons augúrios, pois a tocha que usava para consagrar as uniões que presidia fumegou, fazendo com que todos os presentes à cerimônia lacrimejassem.

EURÍDICE ATACADA POR ARISTEU

Quem nos conta esta história é Virgílio, poeta latino do séc. I aC, em As Geórgicas. Ao tentar escapar da perseguição do deus apicultor Aristeu, que a queria violentar, Eurídice foi picada por uma serpente e morreu. Sua alma desceu então ao Hades, “cobrindo-se de trevas”. Inconformado com a sua perda, Orfeu se dispôs a trazê-la de volta. Conseguindo penetrar no reino infernal através de uma gruta situada ao lado do cabo Tenaro, ele se apresentou a Plutão e a Perséfone, encantando-os com a sua música.


Assim cantou Orfeu, segundo o poeta: “Ó divindades do mundo inferior, para o qual todos nós que vivemos teremos que vir, ouvi minhas palavras, que são verdadeiras. Não venho aqui para espionar os segredos do Tártaro, nem para tentar experimentar a minha força contra Cérbero, o cão tricéfalo que guarda a entrada. Venho à procura de minha esposa, a cuja mocidade o dente de uma venenosa víbora pôs fim prematuro. O Amor (Eros) aqui me trouxe, Eros um deus todo-poderoso entre nós, que mora na Terra e, se as velhas tradições dizem a verdade, também mora aqui. Imploro-vos: uni de novo os fios da vida de Eurídice. Nós todos somos destinados a vós, por essas abóbadas cheias de terror, por estes reinos de silêncio, e, mais cedo ou mais tarde, passaremos ao vosso domínio. Também ela, quando tiver cumprido o termo de sua vida, será devidamente vossa. Até então, porém, deixai-a comigo, eu vos imploro. Se recusardes, não poderei voltar sozinho; triunfareis com a morte de nós dois.”

À medida que o canto de Orfeu fluía, as almas que viviam no reino do Hades, fantasmagóricas e sofridas, soluçavam e choravam. Tântalo, por um momento, abandonou a sua torturante e eterna busca de água e alimento; a roda de Ixion imobilizou-se; as filhas de Danao deixaram de tentar encher com água os tonéis sem fundo; Sísifo sentou-se ao lado de sua enorme pedra, não mais a empurrando montanha acima, como o fazia diariamente; o monstruoso Abutre, filho de Tifon, não foi destruir o fígado de Prometeu nesse dia. Os olhos das Erínias, pela primeira e única vez, em toda a história do Hades, ficaram úmidos. Perséfone não pode resistir e intercedeu junto de seu amado esposo no sentido da libertação do casal, obtendo dele o devido assentimento.

Recebida por Orfeu a permissão para reconduzir Eurídice ao mundo dos vivos, uma condição foi imposta: ele iria à frente e ela atrás, não podendo ele, em hipótese alguma, voltar-se para vê-la. Só poderiam se ver quando tivessem ambos ultrapassado os limites do reino infernal.


Quando já estava muito próximo da superfície da terra, Orfeu, tomado por invencível pothos, provocada por terrível dúvida, voltou-se para ver a sua amada. Rompido o acordo, perdeu-a. Ao longe, uma sombra que lembrava vagamente a sua amada, deslizava na direção do Hades. Tentou alcançá-la, mas foi em vão.


Desesperado, perdida Eurídice para sempre, Orfeu, desde a sua saída do Hades se desinteressou pelas mulheres. Repelia-as, nenhuma lhe interessava, preferindo as companhias masculinas. As donzelas trácias fizeram de tudo para seduzi-lo e ele absolutamente insensível. Entregou-se Orfeu inteiramente aos mistérios que criara, proibindo que dele participassem as mulheres. Fixou-se assim só no polo masculino, elegendo-o como única via para chegar ao mundo espiritual. Ao assim agir, transgredia um dos preceitos fundamentais da existência, o do gênero. Negava assim Orfeu o dualismo, que comanda toda a dialética universal, todo o movimento do devenir.


Tal procedimento, como se sabe, ao negar a alternância, atraiu a ação de Dioniso, a grande divindade que destrói as formas que se coagulam; como força irresistível ele provoca o rompimento de todos os limites que se queiram impor à energia universal.


Orfeu foi atacado pelas sacerdotisas do deus, as mênades, sendo seu corpo despedaçado (sparagmos), lançados os seus pedaços ao rio Hebro.


A história de Orfeu terminaria aqui. Contudo, segundo uma inspiração apolínea, de tendência espiritualizante, aristocrática, obviamente masculina, o crime cometido deveria ser punido. Uma peste assolou o país. Para apaziguar os deuses, conforme sentença oracular (Delfos), era preciso recuperar a cabeça de Orfeu (fig.dir., tela de G.Moreau) para que lhe fossem prestadas as honras fúnebres. Assim foi feito e tudo se resolveu. A cabeça do poeta transformou-se num oráculo, sua lira foi para Lesbos, centro da poesia lírica grega, e depois para os céus, sendo transformada numa constelação. Conduzido à Ilha dos Bem-Aventurados, lá, Orfeu, metido numa túnica imaculadamente branca, solitário e dolente, passa seu tempo tangendo a sua lira, com os olhos postos na eternidade.

A lira de Orfeu foi fabricada pelo deus Hermes com o casco de uma tartaruga e as cordas feitas com as tripas de animais por ele sacrificados. Cedida a Apolo, o instrumento acabou nas mãos de Orfeu. Nada há que se estranhar quanto a isto: como patrono de uma poderosa seita religiosa, não ficaria bem que Orfeu tivesse como pai um simples deus-rio. Uma versão tardia “melhorou” a sua paternidade, assumindo-a o Senhor de Delfos. 




Colocada nos céus como constelação boreal (10º a 29º de Capricórnio), a lira (Lyra) tem como a sua mais brilhante estrela Wega, alfa, de 1ª magnitude, hoje a 14º37´de Capricórnio. Esta estrela, mais ou menos entre 12.000 e 10.000 aC, era a estrela polar da Terra, sendo chamada pelos egípcios de Maat, nome de sua deusa da justiça, que participava da psicostasia.

Entre os árabes, o nome desta estrela era Al Waki, a Cadente; na Idade Média, foi conhecida pelo nome de Vultur Cadens. Ptolomeu atribuía a ela influências semelhantes às de Vênus e Mercúrio. Sempre associada pelos gregos à constelação da Lyra e ao mito de Orfeu, Wega é uma das estrelas mais brilhantes do céu, sempre considerada por todos os povos da antiguidade como a estrela da música.

Orfeu apareceu como um guia e educador da humanidade para a sociedade grega entre os sécs. VI-V aC., uma sociedade que se sentia ameaçada pela crescente influência dos cultos dionisíacos. A teologia órfica opunha-se frontalmente aos cultos de Dioniso.

DIONISO (CARAVAGGIO)

Uma das teses do orfismo era, por exemplo, a de que a prática vegetariana aproximava o homem do divino. O orfismo também se opunha ao coletivismo extasiado ou sensorialmente alterado dos ritos do deus do vinho, enfatizando a ida em direção do divino através de um princípio individual e consciente, sempre inalterado.


Dá-se o nome de Orfismo a uma corrente religiosa que desde o período arcaico da história grega, anterior ao aparecimento de Homero, estava instalada no país. Sabe-se que já no séc.VI aC os cultos órficos estavam espalhados por toda a Hélade, com um grande número de adeptos. O Orfismo compreendia uma cosmogonia e uma teogonia que apresentavam uma certa semelhança com aquilo que Hesíodo fixará.

ESQUARTEJAMENTO DE ZAGREUS

O tema central do Orfismo nos fala do esquartejamento de Zagreus, filho de Zeus e de Perséfone, por parte dos Titãs, que não o aceitavam como divindade tutelar do universo por desígnio do pai. Revoltados, os Titãs atacaram o menino-deus que, para fugir dos seus perseguidores, tomou a forma de um bode (fig.abaixo). Assassinado e devorado pelos Titãs, sobrou apenas do seu corpo o coração, recolhido por Palas Atena.



Zeus usará esse coração para dar nascimento a um novo Zagreus, que tomará o nome de Dioniso, o que nasceu duas vezes. Os Titãs serão fulminados pelo Senhor do Olimpo e de suas cinzas nascerão os humanos, formados por dois elementos, um terrestre (as cinzas titânicas) e o outro divino e eterno (o corpo de Zagreus devorado como bode, que estava no corpo dos Titãs). É desse núcleo que sairá, como se sabe, a tragédia (canto do bode) como gênero teatral: representações que reproduziam a vida, a paixão e a morte do menino-deus, encenadas pelas populações camponesas do interior da Grécia.


Quanto à cosmogonia órfica, fala-se de um ovo cósmico, nascido do Caos. Da divisão desse ovo teriam nascido a Terra e o Céu e mais todos os seres. Quanto à escatologia (tratado das coisas finais) órfica, estabelece-se no Orfismo que o homem tinha uma alma imortal. Esta alma, em virtude de um pecado original, entrava no plano da matéria, decaía. Sucessivas reencarnações e processos de iniciação órfica poderiam purificá-la para que voltasse ao Bem, para junto de Zeus Todo-Poderoso. É neste sentido que o Orfismo se tornou uma religião da salvação, soteriológica, principalmente das elites gregas. Abandonando o cárcere do corpo, a alma voltava à luz, desde que observados todos os ritos que a doutrina órfica estabelecia.


Quando morriam, os adeptos ou iniciados baixavam às sepulturas levando consigo umas pequenas lâminas (lamelas) nas quais se liam pequenas frases rituais, palavras de esperança, declarando-se nelas que aquele corpo que a carregava era de alguém que pertencia à raça dos mortais, sendo sua alma filha do céu estrelado. Na prática, o Orfismo foi pregado por um colégio sacerdotal; exigia-se castidade dos adeptos, jejuns, mortificações, regimes alimentares (proibição de carne animal, abstenção de ovos etc.), práticas ascéticas, vestes brancas, o que muito o aproximava das seitas pitagóricas, ambas, Orfismo e Pitagorsimo, muito influenciadas sem dúvida por doutrinas orientais (Índia). O Cristianismo, por sua vez, como fica fácil constatar, incorporará à sua teologia e à sua prática muitos itens das duas importantes seitas gregas.

O Orfismo se espalhou por todo o mundo grego. Textos órficos, muitos atribuídos a Orfeu, eram na realidade de autoria de Onomácrito, um adivinho da corte de Pisístrato (fig.esq.), de Atenas, a ele se devendo também uma coletânea de sentenças oraculares de Museu, poeta místico, trácio como Orfeu. Museu, amigo inseparável de Orfeu, era, como ele, grande músico, sendo capaz de curar enfermos com a sua arte. A ele de credita a criação do verso hexâmetro datílico e consta ter sido também discípulo de Lino.


Onomácrito (530-480) é uma figura importante do Orfismo. Foi um conhecido cresmólogo, compilador e falsificador de oráculos, que viveu na corte do tirano Pisístrato, em Atenas. Heródoto conta que o tirano requisitou os seus serviços para dar nova forma aos oráculos de Museu, poeta mítico trácio, uma espécie de porta-voz de Orfeu. Pausânias (fig.esq.), grande viajante e geógrafo, observador atento da sociedade do mundo greco-romano, atribui a Onomácrito muitos poemas falsificados sob o nome de Museu.
      
        O Orfismo permeou toda a filosofia, a arte e a literatura gregas. Píndaro, o poeta, acolheu o dogma reencarnacionista da seita. No teatro, os trágicos Ésquilo (fig.esq.) e Sófocles foram muito tocados pelas suas teses. A maior influência, contudo, está em Platão, sendo nele dominante mesmo, como se pode notar em importantes temas do platonismo, o do corpo como prisão da alma (Soma Sema, lema órfico) e o de sua queda e imortalidade.



Se o Orfismo no período clássico da história grega era ainda considerado com alguma seriedade, já no período helenístico a sua doutrina estava desacreditada. Inúmeros charlatães, em nome do Orfismo, percorriam a Grécia vendendo a salvação e lâminas que assegurassem uma boa viagem depois da morte. Diziam eles que, como conhecedores da magia órfica, poderiam limpar todas as impurezas das almas. Platão, aliás, em sua A República, já fustigara os charlatães que em nome do Orfismo vendiam a salvação. As lâminas órficas, lembremos, serviram, mais tarde, como fonte de inspiração para, no cristianismo, se estabelecer o sistema das indulgências.




A história trágica de Orfeu e de Eurídice, depois de Virgílio (As Geórgicas) e de Ovídio (Metamorfoses), deu origem a uma grande tradição literária, artística e musical. Muitos dos escritores e artistas que usaram o tema o deturparam ou o trataram ingenuamente, apesar do sucesso de crítica e de público. Esvaziaram-no sobretudo no que ele tinha de mais importante, o seu caráter político-social, como uma força apolínea de combate ao dionisíaco. Dentre as obras mais conhecidas podemos citar as óperas de Monteverdi, Gluck, Haydn, Offenbach, dramas coreográficos e balés diversos, como o de Angelo Policiano, de Lope de Vega etc. Nas artes plásticas: Bruegel, Tintoreto, Poussin, Delacroix etc. Filmes: de Jean Cocteau e de Marcel Camus.



O que se pode ressaltar de mais evidente na personalidade de Orfeu é que ele é, acima de tudo, um sedutor, um charmeur, como dizem os franceses. Orfeu é aquele que vence as resistências, dissipa-as. Seduzir é convencer com arte e astúcia, sob promessa de vantagens (vida eterna, no caso); exercer influência irresistível, fascinar; desencaminhar, atrair, encantar. Etimologicamente, seducere é chamar à parte, separar, desviar. Orfeu: um sedutor que apenas adormece o mal, mas que não o vence. A palavra seduzir comporta tanto uma ideia de encantamento, êxtase, como de descaminho. O sedutor, nesse sentido, está muito próximo do feiticeiro, do mágico, das Sereias.

ARGONAUTAS

Orfeu, na viagem dos argonautas, com a sua lira e canto, não só dava cadência musical às remadas e impedia que o canto das Sereias seduzisse os comandados de Jasão, como criava um ambiente de simpatia, afastando todas as possibilidades de desentendimento entre os participantes da expedição. Na Cólquida, adormeceu o dragão que guardava o Velocino de Ouro. Na sua descida ao Hades, encantou por completo o mundo subterrâneo. Foi transportado por Caronte, o barqueiro, que nada exigiu dele, quando da travessia dos rios infernais. Adormeceu Cérbero, que guardava os portões do Tártaro, tendo acesso assim ao palácio de Hades e de Perséfone, também seduzidos por sua arte. No pouco tempo que permaneceu no mundo ctônico, acalmou os monstros que lá viviam e aliviou o tormento dos condenados.

Orfeu foi aquele que perdeu Eurídice, a sua alma, a sua metade (o seu lado feminino), como ele mesmo proclamava. Teve a oportunidade de resgatá-la, de integrá-la à sua vida de uma outra maneira, mas falhou porque olhou para trás, transgredindo assim a lei das direções, negando o devenir, não sabendo tornar-se o que não era antes.

A alma, psikhe para os gregos, anima para os latinos, sempre foi considerada como um princípio vital, no qual se reúne o conjunto das atividades imanentes à vida (pensamento, afetividade, sensibilidade etc.) entendidas como manifestações de uma substância autônoma ou parcialmente autônoma em relação à materialidade do corpo. Daí animar, dar vida, imprimir movimento, impulsionar.

A alma é princípio de inspiração moral, como encontramos a palavra nas expressões “ter alma”, “não ter alma”, “criar alma nova”, “sua alma, sua palma”, “vender a alma ao diabo” etc. Princípio de vida, sede de pensamentos e de sentimentos, estes dois conceitos se distinguem desde a antiguidade hebraica (alma orgânica e alma pensante) e romana (animus e anima). A redução do segundo sentido ao primeiro constitui o vitalismo; a redução do primeiro ao segundo, o espiritualismo (Platão, Leibnitz, Hegel).

O problema da união da alma ao corpo foi tratado por Descartes, lembremos. Antes, porém, Platão já o havia abordado de modo excepcional no seu diálogo Phedon. A psykhe, entre os antigos gregos, de um modo geral, estava ligada à ideia de movimento, pois pela sua simples partida o corpo era transformado em algo (soma) sem movimento, um agregado de órgãos e membros inerte, que logo se desfazia.

Quando Orfeu se referiu à perda de sua alma (morte de Eurídice) o que temos é uma alusão clara ao lado feminino da sua personalidade. Tentou resgatá-lo, mas não conseguiu. A esse lado feminino os antigos romanos, como vimos, davam o nome de anima, conceito depois desenvolvido pela psicologia, por Jung principalmente, como índice feminino do inconsciente masculino.



O conceito de anima tem que ser entendido obviamente a partir da complementaridade entre consciente e inconsciente. Nessa perspectiva, resumidamente, e embora na realidade tudo não seja tão simples como aqui se coloca, pode-se dizer que o homem terá uma alma feminina. O que caracteriza a feminilidade da anima é o sentimento, alquimicamente, como se sabe, ligado ao elemento água. Já o animus estará ligado ao pensamento racional, essencialmente masculino, ligado aos elementos ar e fogo. Sentir e pensar, pois. No seu processo de individuação, os homens terão assim que integrar nele a sua anima, as mulheres o seu animus. A compreensão e a integração dessas imagens é bastante complexa e exige um entendimento com o sexo oposto. O cenário em que se dá esse diálogo é a vida de cada um de nós.

Orfeu tentou fazer a reintegração de Eurídice no novo ser em que deveria se tornar, mas não o conseguiu. É de se lembrar aqui, aliás, que os heróis gregos sempre tiveram grande dificuldade de ajustar o masculino e o feminino na sua personalidade. Heróis como Hércules e Aquiles, por exemplo, saturados de energia masculina (o elemento fogo, no caso), conhecidos como grandes guerreiros, foram muito atacados pelo lado feminino de sua personalidade.

Tétis, a mãe de Aquiles (de akhos, dor, aflição), o maior guerreiro da mitologia grega, sabia, por uma profecia, que Tróia só poderia ser vencida se Aquiles participasse da guerra, mas que o fim de Ilion (Troia) coincidiria com a morte de seu filho. Nosso herói aceitou com muita disposição e até entusiasmo, segundo alguns comentaristas, a iniciativa de Tétis de vesti-lo com hábitos femininos (uma espécie de odalisca oriental, mulher do harém de um sultão), levando-o para a corte do rei Licomedes (fig.esq.), na ilha de Ciros, onde passou a viver disfarçado, muito feliz, entre as filhas do soberano, com o nome de Pirra, a Ruiva, por causa de seus cabelos acobreados. Aquiles, nesse esconderijo, levava uma vida dupla, chegando a unir-se com uma princesa da corte, tornando-a mãe de um filho seu, ao qual será dado o nome de Pirro, mais tarde chamado de Neoptólemo.

Aquiles, como se sabe, teve como o maior amor de sua curta vida o herói Pátroclo (fig.dir.), morto pelo troiano Heitor. Tomado por imensa fúria, Aquiles, apesar da sua imensa dor e lágrimas, atacará furiosamente os troianos, decidindo a guerra favoravelmente aos gregos, e trucidará o corpo de Heitor, príncipe troiano, desfigurando o seu cadáver. Depois, então, mandará erguer a pira funerária de Pátroclo, a cuja memória sacrificou onze jovens troianos para a macabra cerimônia. Organizou então jogos fúnebres em honra do amigo e amante, do qual participaram todos os heróis gregos. Ao final, mandou que no local se erigisse um suntuoso túmulo para receber os restos de Pátroclo. Quando Aquiles morreu, as suas cinzas foram juntadas às de Pátroclo. Prossegue o mito nos informando que, restaurados no esplendor de seus corpos físicos, Aquiles, Pátroclo e outros heróis da guerra de Tróia foram transferidos para a Ilha dos Bem-Aventurados e que lá foram viver eternamente, divertindo-se com as suas armas, participando de “agones”, felizes, entre banquetes e festas.

Hércules, como se sabe também, tinha uma paixão enrustida pelo travestismo feminino, sendo muito conhecido um episódio em que nosso herói, exilado na corte de Ônfale (fig.esq.), rainha da Lídia, numa doce escravatura, viveu no ócio, nos banquetes e na luxúria. Apaixonada por ele, mas ao que parece homossexual, a rainha se divertia com a sua famosa túnica feita com a pele do Leão de Nemeia, brincava com as suas armas, especialmente a sua clava, enquanto ele, usando os longos e luxuosos vestidos orientais dela, maquiado, praticando a dança do ventre, passava grande parte de seu tempo fiando linho aos seus pés, soltando o seu lado feminino sem constrangimento algum.






Lembro que o cinema italiano, em 1959, com o brutamontes Steeve Reeves, antigo Mr. Universo, no papel de Hércules, criou um gênero cinematográfico (filme histórico de aventuras) ao qual se deu o nome de Peplum (túnica das mulheres gregas), sobre o episódio que relatamos. Titulo do filme: Ercole e la regina di Lidia.



Voltando ao nosso tema, Orfeu, como se disse, não soube ajustar o lado masculino ao lado feminino de sua personalidade. Perdido o seu lado feminino (Eurídice), fixou-se apenas no masculino, rejeitou companhias femininas, passou a andar vestido com longas túnicas brancas imaculadas, tangendo a sua lira e cantando, sempre acompanhado de rapazes.

A partir do séc. VI aC, como se disse, o orfismo passou a impregnar o pensamento de todas as gerações posteriores, inclusive o cristianismo. Píndaro retomou o tema da reencarnação em sua obra. Os trágicos gregos também foram muito influenciados por ele e as ideias que dominam todo o platonismo têm muito a ver com o orfismo.

Os orpheotelestes, apóstolos que vieram da Trácia para divulgar na Grécia o orfismo como “Boa Nova”, que seduziu muita gente da sociedade grega, já no período helenístico eram vistos como charlatães e mercadores. O próprio Platão, um pouco desiludido talvez, chegou a censurá-los veementemente por causa das promessas que faziam: a completa purificação dos pecados e a garantia de uma vida eterna paradisíaca. Como os metragyrthes (sacerdotes da Grande-Mãe frígia Cibele), eles iam de cidade em cidade mendigando, vendendo as suas purificações e os seus passaportes para a eternidade.

O mito de Orfeu ilustra também, sob um outro ângulo, a situação de alguém que, ao perseguir um ideal, ao adotar uma crença, não se “sacrifica” o bastante, mas que o faz apenas através de belos discursos, de aspectos exteriores. Ou seja, grandes aspirações e nenhum comportamento que as justifique. Orfeu é um personagem que se encaixa perfeitamente nas conclusões que podemos tirar do nono trabalho de Hércules (a morte das aves metálicas do lago Estinfalo) como lição de vida. Este trabalho, como se sabe, tem a ver com o nono signo astrológico de Sagitário, signo dos profetas.

As aves metálicas a que esse trabalho se refere, aves que ele precisava exterminar para que a luz do Sol voltasse a brilhar sobre o lago, representam o palavrório religioso que frequentemente usamos para falar de nossas crenças, da nossa espiritualidade, do nosso desejo de um mundo melhor. O grande problema, porém, é que são as nossas emoções que estão nessas palavras, mas não as nossas a ações. Ficamos muito ocupados com o nosso discurso, com conceitos, ritos, com o visual das cerimônias, usamos roupas vistosas, frequentamos templos, lugares sagrados, igrejas, sinagogas, terreiros, mesquitas, centros esotéricos etc., mas acabamos esquecendo de viver o que falamos. Uma lição do signo de Sagitário aplicável ao tema aqui discutido: devemos deixar de pensar e de falar tanto no “distante”, no “lá”, no “além”, para aprendermos a ser simplesmente no lugar em que nos encontramos, isto é, na terra, no nosso espaço, no nosso momento histórico.

Foi oferecida a Orfeu, quando da sua descida ao Hades, a possibilidade de ser restaurada a sua “unidade”. Por ter “olhado para trás” e não ter entendido que “a mulher é o futuro do homem”, Orfeu abriu mão de sua transcendência terrestre, afinal a única possível ao ser humano. Ou seja, rejeitou o “feminino” em nome do céu, o que aliás todas religiões patriarcais fazem.

O Hades, como sabemos, associa-se à obscuridade, às origens, sendo um símbolo da noite e dos terrores que inspiravam ao homem, desde a pré-história, o frio, a sombra, a solidão. A descida ao inferno da qual nos falam os mitos corresponde, acima, na superfície terrestre, no ciclo das estações, aos primeiros dias de decréscimo da luz, prelúdio do inverno, por oposição à ascensão, entre o primeiro dia da fase crescente seguinte, o equinócio da primavera e o dia 24 de junho.


No nível de vários esoterismos, essa descida representa uma morte alegórica, o abandono pelo iniciado de sua natureza profana nas obscuras câmaras de reflexão, a passagem do negro ao branco dos alquimistas. É o Hades nestes termos o mar noturno do inconsciente ao qual é preciso descer e atravessar, a partir de uma situação de vida consciente, para voltar de novo à luz, chegar a uma outra margem. Em muitas tradições, essa descida, como é aqui o caso, é tida por um processo de individuação que começa por uma descida que alguém faz ao seu mundo interior, uma regressão, uma volta sobre si mesmo, que Orfeu não soube fazer.

Orfeu faz parte da extensa galeria de profetas fundadores de religiões, de instauradores dos vários cultos religiosos que conhecemos. No geral, em todos, a transcendência nunca é terrestre; o que se oferece como salvação é uma vida eterna na bem-aventurança ao lado de um Deus, num paraíso. Os discursos desses profetas, como a história das religiões no-lo prova, são um fracasso quanto ao feminino.

Numa outra leitura, podemos considerar que Eurídice era o duplo de Orfeu, esse duplo que se torna o objetivo da eterna busca do ser humano, pois é ele e só ele que pode garantir a fecundidade do ser. Em todos os mitos, a alma é concebida como um duplo do ser vivo, que pode se separar do seu corpo na ocorrência da morte, pelo sonho ou por alguma operação mágica.


RENÉ MAGRITTE

Platão, em O Banquete, fala do andrógino como o alter ego da personalidade humana, seu complemento indispensável, ao qual todo homem ou toda mulher deverão voltar a se unir para ser recuperada a unidade original perdida. A partir do século XIX, o Romantismo alemão pôs em circulação a ideia do duplo sob uma outra forma, sob a inspiração do triunfo da subjetividade (tendência a encarar e a avaliar as coisas de um ponto de vista meramente pessoal). Os duplos (doppelgänger) que o Romantismo alemão nos revelou, são inquietantes, têm um caráter de fatalidade. Como exemplos desta tendência, podemos citar obras como A Mulher Sem Sombra (Hugo von Hofmannsthal), O Retrato de Dorian Grey (Oscar Wilde), Le Horla (Guy de Maupassant), A Sombra (Hans C.Andersen) etc.

Eurídice, como complemento indispensável, alter ego da personalidade humana, é a reconstituição da unidade original, sempre perdida e sempre reconquistada. Os mecanismos que nos desapossam de nós mesmos, conduzindo-nos a um desdobramento (fenomenologia do duplo, da sombra, da psicologia moderna), encontram, sem dúvida, no mito de Orfeu uma de suas melhores expressões.

Grande parte dos que se fixaram em Orfeu, mitólogos, estudiosos, exegetas, psicólogos, escritores, religiosos etc., optaram por considerá-lo sobretudo pelo seu gênero de vida segundo a seita que se formou a partir de seu mito. Na Grécia, os adeptos do orfismo eram chamados também de renunciantes e tinham como único objetivo a salvação. Exercitavam-se para a santidade, cultivavam técnicas de purificação a fim de se separar dos outros. Os órficos, em nome da humanidade, queriam ser absolvidos do sangue derramado nos altares por aqueles que haviam vivido a religião como sacrifício sangrento. Recusavam por isso o alimento vermelho, as “apetitosas emanações”, em nome da comensalidade vegetariana. Em momento algum de sua história, o orfismo tentou atuar politicamente ou imaginar a polis de outra maneira. O que pretenderam foi reescrever a gênese do mundo (cosmogonia) e a história dos deuses (teogonia).

O orfismo procurou dar uma outra forma à religião olímpica. Vindas de séculos anteriores, as comunidades órficastinham a sua existência perfeitamente atestada no séc. VI aC. Através de uma ascese, de mortificações e purificações que os levasse a uma rigorosa catarse, os iniciados defendiam a metempsicose, entrando muitas vezes em choque com a religião oficial da polis.

O ser humano era produto de um dualismo original, o titânico e o divino. A morte não punha fim à vida, pois, segundo a doutrina da transmigração das almas, o elemento divino teria que se reunir novamente com o seu antagônico titânico para recomeçar uma nova vida, sob uma outra forma. Assim, a alma é julgada e, conforme os seus méritos e as suas faltas, depois de uma permanência no além, retorna ao cárcere de um novo corpo humano, podendo inclusive descer ao nível animal e vegetal.

Os sepultamentos, para órficos, eram uma cerimônia simples e alegre, já que “as lágrimas se guardavam para os nascimentos”. Os criminosos e os sacrílegos estavam condenados a passar por penosas metempsicoses. A alma que não havia quitado as suas culpas devia, pois, retornar.

O orfismo procurou modificar arraigados e imemoriais princípios que estavam presentes na religião oficial da polis grega. Esta, como se sabe, falava de seculares maldições familiares segundo as quais cada membro do “genos” era corresponsável e herdeiro das violências (hamartiai) praticadas por qualquer um de seus membros. Para os órficos a culpa era sempre da alçada individual e por ela o criminoso pagaria no além e em outras reencarnações, até a sua catarse final. O orfismo, ao contrário da religião oficial da polis, que propunha o bem viver segundo os modelos apolíneos, era uma doutrina que falava do “bem morrer”. Nestas condições, “sorrisos para os que morrem, lágrimas para os que nascem.”